domingo, 13 de dezembro de 2009

Dois poemas de Lope de Vega (1562-1635)

Yo vengo de ver

Yo vengo de ver, Antón, 


un niño en pobrezas tales, 


que le di para pañales 


las telas del corazón.

Lope de Vega

.

Las pajas del pesebre 


Las pajas del pesebre, 


niño de Belén, 


hoy son flores y rosas,

mañana serán hiel.

.

Lloráis entre las pajas 


de frío que tenéis, 


hermoso niño mío, 


y de calor también.

.

Dormid, cordero santo, 


mi vida, no lloréis, 


que si os escucha el lobo, 


vendrá por vos, mi bien.

.

Dormid entre las pajas, 


que aunque frías las veis, 


hoy son flores y rosas, 


mañana serán hiel.

.

Las que para abrigaros 


tan blandas hoy se ven 


serán mañana espinas 


en corona cruel.

.

Mas no quiero deciros, 


aunque vos lo sabéis, 


palabras de pesar 


en días de placer.

.

Que aunque tan grandes deudas 


en paja cobréis, 


hoy son flores y rosas, 


mañana serán hiel.

.

Dejad el tierno llanto, 


divino Emanüel, 


que perlas entre pajas 


se pierden sin por qué.

.

No piense vuestra madre 


que ya Jerusalén 


previene sus dolores, 


y llore con José.

.

Que aunque pajas no sean 


corona para Rey, 


hoy son flores y rosas, 


mañana serán hiel.

Lope de Vega

sábado, 21 de novembro de 2009

Assim são as Algas e Castália e Outros Poemas, de Albano Martins

Albano Martins recolheu toda a sua produção lírica publicada até 2000 em Assim São as Algas (Porto: Campo das Letras, 2000). Foram cinco décadas (1950-2000) de uma poesia de raiz helénica, culta, que, em A Voz do Olhar (1998) por exemplo, soube dialogar fecundamente com a pintura e com outras artes. Alguns textos foram rearrumados, ligeiras alterações introduzidas. O conjunto dá a ouvir uma voz intensa mas sempre depurada, tanto nas estruturas mais tradicionais da primeira fase, como sobretudo no poema em prosa, no haiku ou na versificação aparentemente mais livre dos últimos livros.

Recorde-se que a propensão dialógica da poesia de Albano Martins não se esgota num tu encarado como projecção ou substituto textual do próprio eu lírico; existe, com efeito, uma pulsão comunicante que caracteriza estes versos, vigiados e polidos numa oficina sempre atenta à musicalidade da frase, aos subtis rumores da língua. E é essa orientação que convida à meditação serena sobre a condição humana, potenciada pelo carácter gnómico de muitas composições, como acontece em vários dos livros reunidos em Assim São as Algas. Poesia a reler, para com ela se construir um «espaço partilhado» e para nela se reencontrar também o gosto da reminiscência, esse canto do melro inscrito para sempre na memória: «Há um melro que faz / o ninho na minha memória. Ouço-o / agora. Canta / a flor das giestas / e da cerejeira. Traz, / emoldurados no bico, / os meus dezoito anos.» (p. 142).

No ano que se seguiu ao da reunião em livro de toda a poesia até então publicada, um novo volume: Castália e Outros Poemas (Porto: Campo das Letras, 2001). Como o título indica, tratava-se de uma poesia fixada num espaço matricial: a Grécia, cuja cultura tão fecunda influência teve na obra de Albano Martins. Pela mão do poeta, é o leitor levado num périplo pelo Peloponeso e por algumas ilhas gregas. Viagem que lhe permite descobrir pequenas fulgurações, como esta, dedicada à mítica fonte da juventude, em Delfos: «Castália — Se desta água beberes, / morrerás, sem o saberes.» (p. 17). Na segunda parte do livro, desenham-se outros lugares míticos, os de uma vida; e, na terceira, algumas figuras humanas que nela deixaram seu rasto, através das artes que cultivaram (Carlos Paredes, Ruy Cinatti, David Mourão-Ferreira e outros). Na última secção, cinco poemas aparentemente soltos, cinco poemas de sabedoria, como são frequentemente os de Albano Martins. Quando sinestesicamente desvelam, por exemplo, o mistério de uma flor: «é que / no perfil / duma flor / está também pintado / o seu perfume.» (p. 77).

José António Gomes

NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)

domingo, 4 de outubro de 2009

No Silêncio da Terra, de Nuno Higino

Na década de 90 do século XX assiste-se a um surto de poetas que a essa condição juntam a do sacerdócio – casos de José Tolentino de Mendonça, Mário Rui Oliveira e, sobretudo, do malogrado Daniel Faria, prematuramente desaparecido e autor de uma poesia intensa e surpreendente, a que um outro poeta – precisamente o que motiva esta nota –, se tem empenhado em dar a divulgação merecida.

Nuno Higino, autor de No Silêncio da Terra (Porto: Campo das Letras, 2000), enquadra-se nesse conjunto, não obstante, a partir de certo momento da sua vida, se ter mantido apenas fiel à condição de poeta. Não se estranhará, contudo, que os sinais da divindade e do «mistério», o amor às criaturas, os valores do cristianismo surjam em filigrana nestes versos que souberam guardar, por vezes, um pouco da luminosidade de certos clássicos mas também da poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen («Nas ondas caminhei com pés de arado / ao largo muito ao largo me perdi. / Habitei a luz pura e sem degredo / (…)», p. 15).

Desengane-se, porém, o leitor que, em No Silêncio da Terra, busque qualquer dimensão apologética ou uma atracção obsessiva pela transcendência. Aqui «o silêncio deixa sempre saudade» e esta «é uma porta por onde se vê o mar» (pp. 34-5). Ou seja, a poesia de Nuno Higino (autor também de diversos livros de qualidade para crianças) dá, muitas vezes, a ilusão (literária, pois é disso que se trata aqui) de respirar o inominável (o «mistério» de Deus, mas também o frémito da Natureza). E este é um atributo da poesia de qualidade, a que nos deixa em suspenso, à escuta da terra e dos seus enigmas – leia-se o belo poema em prosa da contracapa, que é simultaneamente uma «arte poética»: «Quando era pequeno gostava de encostar o ouvido no chão e escutar a terra. Escutar as suas tremuras, imaginar os labirintos dos bichos e das raízes, sentir a ondulação dos magmas profundos, escutar o silêncio da terra. A terra pediu-me os ouvidos, os olhos e as mãos. Depois, o seu apelo feminino pediu-me o coração. À terra devo uma fidelidade primordial, a mais exigente, a mais densa de todas as fidelidades. Agora devo-lhe estas palavras. Elas não nasceram da terra. Nasceram no silêncio da terra.»

A poesia deste livro dá-nos, por outro lado, um sujeito à escuta de outros silêncios, rumores e clamores: os que se libertam da pintura, da arquitectura e das paisagens com História – uma poesia, em suma, que dialoga com outras artes. Porque este é um poeta em viagem: pelo mundo, pelo interior de si mesmo e por dentro das próprias palavras, com as quais estabelece por vezes uma relação ora lúdica, ora quase religiosa. Um poeta que, no entanto, sabe «o rosto do avesso / a alma em carne viva» (p. 39) patentes por exemplo na Guernica de Picasso — desesperada metáfora dessa terra que, apesar do horror, pode ser «uma casa digna de morar» pois, a crer nas palavras do poeta, «é lá que Deus repousa» (p. 60).

José António Gomes

NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)

domingo, 30 de agosto de 2009

Fronteiras, de Manuel Tiago: o simbolismo do cruzar das raias

Iniciada em 1974 com a publicação de Até amanhã, camaradas, a obra de Manuel Tiago, pseudónimo de Álvaro Cunhal, inclui, além deste romance inaugural, escrito alguns anos antes, durante a prisão do autor, mais três romances, a novela Cinco dias, cinco noites, cuja primeira edição data de 1975, e quatro edições de contos, a mais recente de 2003, altura em que sai a público Lutas e vidas. Um conto.

A questão do pragmatismo da obra literária de Cunhal não pode ser contornada, uma vez que, mais do que recriar o mundo, revisita o universo que tão bem conheceu e cada uma das suas personagens, associadas à resistência, representa as facetas múltiplas do militante comunista. Para alguns críticos, como é o caso de Eduardo Cintra Torres, o protagonista dos seus romances mais emblemáticos é sempre o PCP, centro de toda a acção e alvo dos maiores elogios, o que resulta, no caso de Até amanhã, camaradas!, num «romance de tese, didáctico e escrito num estilo realista apagado» (Torres, 2005).

Contudo, parece-nos que a obra, mesmo que ideologicamente marcada, mantém, como elemento estrutural mais relevante, a articulação de uma dimensão épica, claramente conotada com a exaltação da actividade da resistência comunista, com outra fortemente trágica, ligada à tradição, ao fascismo, à reacção e ao fatum que persegue a identidade portuguesa. Da leitura das obras, sobressai, com particular intensidade, a dimensão humana e individual da resistência que se esconde por trás do aparelho ou da máquina partidária. Através da atribuição de um nome, uma identidade e uma personalidade aos homens e mulheres anónimos, figuras da resistência e da clandestinidade, prefigura-se uma espécie de registo paralelo às crónicas oficiais e à historiografia, uma vez que as personagens são tomadas como exemplos de sacrifício e de altruísmo em prol de um ideal. Assim, os vários volumes sublinham com particular intensidade a (sobre)vivência do PCP na clandestinidade durante os anos difíceis da ditadura fascista, traçando, em paralelo, a história do país e a do partido, desde as lutas dos anos 30, com a participação na Guerra Civil Espanhola, à contemporaneidade, passando pelas reestruturações e desenvolvimentos ocorridos na década de 40 (designadamente a famosa «reorganização» da qual Álvaro Cunhal foi um dos protagonistas).

Neste sentido, é possível ler os textos assinados por Manuel Tiago à luz das tendências do romance histórico contemporâneo, na esteira das inovações introduzidas pela narração de acontecimentos históricos a partir de perspectivas originais, muitas vezes opostas às oficiais e ao discurso historiográfico por excelência. Assim, a conotação com uma certa marginalidade ou oposição em relação ao poder, contrária à versão oficial, parece funcionar como uma tentativa de redenção de uma história esquecida que, graças à ficção, é iluminada.

A mais homogénea das colectâneas de contos de Manuel Tiago é Fronteiras (1998), obra caracterizada pela persistência do tratamento do tema da transposição das raias. Os contos descrevem múltiplas viagens realizadas em diferentes sentidos (ida e regresso; Portugal / Espanha; França / Espanha; Países de Leste) e com objectivos também distintos.

No caso dos textos aqui reunidos, é necessário perceber como o simbolismo da ideia de fronteira se repercute na mensagem dos textos, surgindo associado à ideia de isolamento, fechamento e, claro, de Ditadura. As fronteiras representadas são fechadas à passagem das personagens que, desta forma, são obrigadas a contorná-las, procurando formas alternativas de as transpor. A viagem, por seu turno, associada à sua superação de obstáculos, é sinal de resistência, de busca de liberdade e da abertura perdidas e que se procura, a todo o custo e com sacrifício da própria vida, resgatar.

Em casos muito concretos, trata-se de viagens de fuga à perseguição fascista, a caminho do exílio. Outras são viagens claramente iniciáticas, de formação de militantes comunistas nos países de leste (ou do seu regresso a Portugal). Protagonizadas quer por personagens masculinas quer, em casos muito pontuais, por personagens femininas – veja-se como no conto «Mulheres pelo Soajo» elas são física e psicologicamente colocadas à prova e, apesar das enormes dificuldades, das quais saem vencedoras, são ainda capazes de sorrir e fazer humor. A dimensão humorística percorre vários textos e surge associada a situações imprevistas. Deste modo, o cariz anedótico que ressuma de um ou outro texto – veja-se o comentário da mulher que, depois de atravessar o Soajo a pé, lamenta o abandono do chapéu brasileiro, ou a troca da mala das peles e da roupa íntima pela dos materiais destinados à guerrilha – sublinha a humanidade que os caracteriza, narrativas de e sobre gente comum, muitas vezes imperfeita. A presença do acaso, do inesperado ou do acidental acentua essa dimensão pessoal, subjectiva e irrepetível que caracteriza os acontecimentos aqui descritos.

Parcialmente devedores da atmosfera da novela Cinco dias, cinco noites, alguns textos retomam, de forma sintética, a temática do «salto» a pé da fronteira realizado em condições muito difíceis. É o que acontece em «O passo dos Pirinéus», onde a resistência e a perseverança dos dois companheiros (assim como o companheirismo que os une) são postos à prova.

De comboio, a pé ou de barco, são várias as formas escolhidas para passar as fronteiras. Em comum, os cruzadores têm, para além do apoio do Partido e dos seus contactos e ligações, outros homens e mulheres que colaboram na fuga. Essa solidariedade aproxima os viajantes, mesmo quando as viagens são realizadas em total silêncio: «Notável compreensão e disciplina. Nem falavam nem fumavam, que um clarão, mesmo do morrão de um cigarro, brilha na noite escura como uma estrela e as palavras, mesmo ditas em voz baixa, atravessam as distâncias no silêncio da atmosfera parada. Não lhes via o rosto, mas sabia e sentia que aqueles homens eram trabalhadores, seus companheiros, talvez alguns seus camaradas. E, sonhador, se alguma coisa pesava no sentir da nova experiência que estava vivendo, era não poder conhecê-los, falar-lhes, viver com eles momentos de trabalho e luta das suas vidas.» (Tiago, 1998: 16). Nos contos, mesmo nos mais breves, cruzam-se muitas histórias e outros tantos mistérios. Há segredos que nunca são revelados como se uma espécie de código de silêncio permitisse a comunicação.

Os textos dão conta de momentos de fugazes encontros e separações. O contacto com outros países, os seus habitantes, outras línguas e culturas, permite constatar a existência de uma rede internacional organizada, capaz de colaborar no apoio aos movimentos dos comunistas pela Europa. Quando essa rede revela falhas é o momento de se porem à prova as competências individuais. Com maior ou menor esforço, cada um dos viajantes encontra forma de superar os obstáculos e prosseguir viagem e a luta em que está empenhado.

Assim, todas as narrativas compiladas em Fronteiras têm um final feliz. Funcionam, cada uma à sua maneira, como episódios exemplares do movimento de resistência comunista rumo à vitória sobre as ditaduras e a opressão. O seu agrupamento em livro sublinha a dimensão épica dos textos e a leitura destes homens e mulheres, anónimos na sua maioria, como heróis de uma resistência cuja história merece registo. Mais do que fugas, cada uma destas viagens simboliza um passo dado em relação à liberdade.

Referências bibliográficas

TIAGO, Manuel (1974). Até amanhã camaradas!. Lisboa: Edições Avante!.

TIAGO, Manuel (1975). Cinco dias, cinco noites. Lisboa: Edições Avante!.

TIAGO, Manuel (1998). Fronteiras. Lisboa: Edições Avante!.

TIAGO, Manuel (2003). Lutas e vidas. Um conto. Lisboa: Edições Avante!.

TORRES, Eduardo Cintra (2005). «Manual do Militante e Epopeia do PCP» In Público, [disponível em http://static.publico.clix.pt/tvzine/critica.asp?id=3102]

Ana Margarida Ramos

(Universidade de Aveiro; membro associado do NELA - Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

No aniversário (ontem) do seu assassinato, ler Lorca em português

Federico García Lorca (1898-1936) nasceu em Fuentevaqueros, perto de Granada, e é considerado um dos maiores poetas europeus do século XX. A sua influência fez-se sentir em muitos poetas portugueses dos anos 30, 40 e 50, nomeadamente nos neo-realistas, em Eugénio de Andrade – que o traduziu admiravelmente –, mas também em Matilde Rosa Araújo, já nos anos 60.

Na muita e variada poesia de Lorca (Canciones, 1927, Romancero Gitano, 1928, Llanto por Ignacio Sánchez Mejías, 1935, Poeta en Nueva York (1929-30), 1940, etc.), cruzam-se veios diversos: o simbolismo e os ritmos e temas tradicionais (designadamente de raiz popular e andaluza) mas também uma linguagem em que já são visíveis traços das poéticas de vanguarda das primeiras décadas do século XX (entre as quais se conta, por exemplo, o surrealismo, rótulo que todavia Lorca sempre rejeitou). Em boa verdade, a sua voz poética era verdadeiramente singular. Personalidade de grande encanto, simpatia e talento, Lorca era também músico e cantor, encenador, actor e desenhador, além de grande dramaturgo (exemplos: Bodas de Sangue; Yerma; A Casa de Bernarda Alba), tendo escrito alguns poemas para crianças. Conheceu ou foi amigo de artistas como o realizador de cinema Luís Buñuel, o poeta chileno Pablo Neruda, o pintor Salvador Dali.

Refugiando-se em Granada para fugir ao ambiente de agitação que se vivia em Madrid, acaba por ser surpreendido pelo levantamento fascista do General Franco (início da Guerra Civil em Espanha). Os franquistas prendem-no na tarde de 16 de Agosto de 1936 e, na madrugada de 18 para 19, fuzilam-no num campo dos arredores de Granada. O seu corpo nunca foi encontrado. Esta trágica circunstância, aliada à memória da própria personalidade de Lorca, viria a contribuir para tornar este poeta uma figura mítica.

Muitos outros poetas o prantearam, em particular companheiros seus do chamado “Grupo de 27” (Alberti, Manoel Altolaguirre, Luís Cernuda, Vicente Aleixandre, etc.), alguns dos quais viriam, eles também, a ser encarcerados, a morrer precocemente ou então a exilar-se para fugir à perseguição franquista.

José António Gomes

NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)

Para saber mais sobre o autor e ler poemas seus:

http://www.garcia-lorca.org/

http://www.terra.es/personal2/ortz74/Fgl/inicio.ht

ROMANCE DA LUA, LUA

A lua desceu à forja
com falsas ancas de nardos.
O rapaz a olha, olha.
O rapaz fica a olhá-la.
No espaço comovido
a lua move seus braços
e mostra, lúbrica e pura,
os seios de duro estanho.
Foge, lua, lua, lua.
Se viessem os ciganos,
de teu coração fariam
colares e anéis brancos.
Rapaz, deixa-me dançar.
Quando cheguem os ciganos
encontram-te na bigorna
com os olhinhos fechados.
Foge, lua, lua, lua,
que já sinto os seus cavalos.
Rapaz, deixa-me, não pises
o meu alvor engomado.
O ginete aproximava-se
tocando o tambor do plaino.
Dentro da forja o rapaz
está com os olhos fechados.
Pelo olival desciam,
só bronze e sonho, os ciganos.
As cabeças levantadas
e os olhos semicerrados.
.
Como canta o noitibó,
ai, como canta na árvore!
A lua vai pelo céu
com um rapaz pela mão.
.
Lá dentro da forja choram,
dando gritos, os ciganos.
Entretanto, o ar a vela.
O ar a está velando.

FEDERICO GARCÍA LORCA, Antologia Poética, Lisboa, Relógio d’Água, pp. 51-53 (trad. de José Bento)

sexta-feira, 17 de julho de 2009

O Planeta Desconhecido e Romance da que Fui antes de Mim, de Luísa Dacosta

Numa narrativa ficcional, mas de fundo parcialmente autobiográfico, O Planeta Desconhecido e Romance da que Fui antes de Mim (Quimera, 2000), de Luísa Dacosta, propõe-nos o percurso paralelo de duas mulheres, Ana e Luísa, vítimas da passagem do tempo e das «armadilhas do amor». Uma distância de muitas décadas as separa: encerrada na provinciana Vila Real do princípio do século XX, no interior da muralha formada pelo Marão, Ana é a avó de Luísa, que esta contudo não chegou a conhecer – apesar de ter herdado alguns dos seus objectos e, sobretudo, uma certa memória, fragmentária, da vida dessa avó, narrativizada pela personagem de tia Mercedes. Mas, não obstante viver num tempo diferente e poder dar voz ao que pensa e sente, Luísa («a que escreve», segundo o texto) revê-se nessa figura precocemente desaparecida em 1917, como que num jogo especular que não só introduz o motivo do duplo (de ressonâncias trágicas, herdadas do Romantismo) como condiciona a própria estrutura, também ela especular, da narrativa. Uma ficção que revela dois destinos de mulheres fixadas em mitos de amor eterno bebidos na infância, mas agredidas afinal por sociedades hipócritas, moralmente decadentes e claustrofóbicas, em que a incomunicabilidade dilacera e o poderio dos homens ainda é regra. Canto de dor e solidão, expressão de inadaptação a um mundo em declínio (no caso de Luísa, que nos vai fornecendo flashes de uma vida decorrida entre finais dos anos 20 e os anos 90 do século XX), O Planeta Desconhecido e Romance da que Fui antes de Mim é um pungente retrato do universo feminino e um exasperado gesto que aspira a manter viva a memória de tempos perdidos, através de um bordado de palavras perpassado pelo mito de Penélope.

Na literatura portuguesa de hoje, poucos escreverão com o nervo estilístico e com a poeticidade que tornaram singular a prosa de Luísa Dacosta (daí, também, falarmos em bordado). Uma prosa que se inscreve numa linhagem a que pertencem vozes tão nobres como as de Raul Brandão e Irene Lisboa, mas devedora também do magistério poético de Camilo Pessanha que, num dos episódios do livro, situado em Macau, é objecto de um sentido tributo.

José António Gomes

NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)

domingo, 28 de junho de 2009

Insignificâncias significantes de Augusto Baptista

Recorrendo a uma imagem certeira, o excelente poeta e estimável crítico e divulgador de livros que foi Fernando Assis Pacheco referia-se algures à «enxúndia» da escrita, indício certo da frouxidão e mediocridade dos textos de muito autor, encartado ou não: as pragas do adjectivo redundante, do floreado, do ornamento inútil.

Vem esta consideração a propósito de Histórias de Coisa Nenhuma e Outras Pequenas Significâncias (Porto: Campo das Letras, 2000), que se encontra nos antípodas do que acaba de ser dito. Se quisermos aliás, e desde já, apontar algumas das suas virtudes (quase princípios de composição do conjunto de micro-narrativas que o livro nos propõe), poderemos falar em economia de meios narrativos e linguistico-expressivos, culto da elipse e do fragmento. Mas há mais. A por vezes desarmante simplicidade de alguns textos desconcerta. E o modo inventivo como se recorre aos efeitos de «estranhamento» e de surpresa – na última frase, ou até palavra (p. 60), de cada enunciado – abre um sorriso na alma, faz-nos pensar que o humor (ainda que amargo e até negro) não se encontra tão arredado assim da literatura nacional. Ou que, pelo menos, já regressou do exílio.

Basta ler o título desta obra do escritor, cartoonista e fotojornalista Augusto Baptista (e meditar um pouco no paradoxo que ele nos propõe) para adivinhar que, sob a máscara da insignificância (para a qual remete a expressão Histórias de Coisa Nenhuma), o que se pretende, isso sim, é fazer passar algumas pequenas (ou grandes?) significâncias. Como esta: «Deus a rir é o Diabo.» (p. 72). Ou esta outra, de sufocante actualidade:

«Sonhava escrever com a leveza do voo de um pássaro, assinar ofícios com o fulgor de uma estrela cadente, luz apenas.

Naquela tarde, gozo de menino a rabiscar paredes, resolveu adestrar a mão. Ritmos poéticos, a Parker corria leve no papel. Autónoma, precisa. Refulgências de ouro por baixo de “O Administrador Geral”. Ele absorto, perdido, cabeça longe.

Fez trezentas assinaturas assim. Trezentos ensaios perfeitos. Trezentos despedimentos de sonho.» (p. 95).

Por estas micro-histórias – quase apontamentos poéticos – de escrita salutarmente enxuta, passam a vida política, um flash ou outro dos pantanais autárquico e empresarial, o mundo citadino e o provinciano, e ainda o veraneante, o editor e o escriba, o pequeno-burguês, o empresário (estes eufemismos!), o proletário e o intelectual de café, as cenas da vida conjugal. Estamos, em suma, ante as inumeráveis situações de um quotidiano assediado (também) pelo que podemos chamar – recorrendo a um lugar comum – o absurdo da existência e reelaborado por um olhar de fotógrafo poeta e por um talento de contador de histórias. Vem a vida e diz «presente!», vem a morte e diz «presente!»; Deus e o Diabo espreitam; o amor e o ódio picam o ponto-nosso-de-cada-dia; faz-se ouvir, nas entrelinhas, o convite à insubmissão e à revolta contra as injustiças.

Procurar a genealogia destas histórias de desconcerto (por que não também de proveito e exemplo?) conduz-nos a territórios tão diversos como os do pequeno poema em prosa e do conto jocoso de raiz popular, do aforismo, do nonsense anglo-saxónico e do surreal-abjeccionismo. Mas à lembrança vêm-nos também as poesias de um Manoel de Barros e de um O’Neill, ou as breves narrativas (de grata memória) de um Mário Henrique Leiria ou de um Pedro Oom.

Já que «a morte é um facto horizontal» (p. 75) que nos surpreende ao virar de qualquer esquina, cultivemos a arte de viver. De olhos e ouvidos abertos. Histórias de Coisa Nenhuma dá-nos uma preciosa ajuda. Em troca, nem sequer pede ao leitor uma gargalhada. Mas este talvez não resista a soltá-la.

Uma pergunta: agora que começa, em Portugal, a falar-se de (e a publicar-se) microficção, e a construir a sua genealogia, como é que os apressados fazedores de antologias dos seus contemporâneos não repararam que, antes deles, existiam estes breves prodígios de Augusto Baptista?

José António Gomes

NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)

sexta-feira, 12 de junho de 2009

António Variações (3/12/1944 – 13/6/1984) | 1984-2009: vigésimo quinto aniversário da morte

Não é raro os discursos da cultura de massas surgirem habitados por uma agudeza de observação e um sentido intuitivo surpreendentes, que de quando em vez encontram meios ideais de expressão, como acontece na canção pop e noutras modalidades da chamada «arte popular».

De aparência estilisticamente rudimentar, este modo sintético e muito eficaz de traduzir a «verdade» sociológica (ou até política) de um tempo impõe-se e fica a ecoar na memória.

Sob a forma de uma cantiga, por exemplo, e recorrendo a lugares comuns do linguajar urbano, a estribilhos que são autênticos achados, à anadiplose, à repetição, ao inevitável diminutivo e a jogos rimáticos elementares, restituem-se os essenciais contornos de um período histórico, uma dinâmica social, uma certa cultura, uma sensibilidade… Um arco que vai de Capri, c’est fini a Maria Albertina, passando por L’Amour en Fuite (de Alain Souchon) para nos atermos à esfera da canção dita popular.

 

Maria Albertina

Maria Albertina

Deixa que eu te diga

Esse teu nome eu sei que

Não é um espanto

Mas

É cá da terra e tem

Tem muito encanto

 

Maria Albertina

Como foste nessa

De chamar Vanessa

À tua menina?

 

Maria Albertina

Deixa que eu te diga

Esse teu nome eu sei que

Não é um espanto

Mas

É cá da terra e tem

Tem muito encanto

 

Maria Albertina

Como foste nessa

De chamar Vanessa

À tua menina?

Que é bem cheiinha

E muito moreninha

Que é bem cheiinha

E muito moreninha

António Variações | Humanos, As Canções que António Variações nunca Gravou, 2004

 

 

José António Gomes

NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)