domingo, 30 de agosto de 2020

Sobre a poesia de Domingos Lobo (Quotidianos e Outras Noites)

 

Domingos Lobo possui uma obra já vasta no campo da criação poética: Voos de Pássaro Cego (1998); As Mãos nos Labirintos (2003); Para Guardar o Fogo (2010, Prémio Literário Cidade de Almada 2009); Lisboa, Modos de Habitar (2014); A Pele das Sombras (2011); Os Dias Desarmados (2018); O Rosto em Ruínas(2020); e Quotidianos e Outras Noites, título editado em 2020 pela AJHLP – Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto. 

São traços da poética do autor, por exemplo, o fôlego discursivo de muitas composições, bem como a atenção ao outro e a um certo real em que se intersectam a dimensão psicossocial do sujeito e o espaço sócio-económico e cultural em que se move. Com efeito, em vários destes poemas, existe com frequência a ficcionalização de um cenário deste tipo, em especial naqueles, mais extensos, que quase se constituem como monólogos enunciados por personae dramáticas, masculinas ou femininas. 

 

Isto mesmo ocorre em Quotidianos e Outras Noites. Nesta obra, poemas como «Agenda para os dias inúteis» (pp. 11-13), «Monólogo do burguês cansado» (pp. 13-16) ou «Certas mulheres  – 3. Blue velvet» (pp. 19-21) dão voz a diferentes personae: um trabalhador, um pequeno burguês entediado, uma prostituta. Outros exemplos poderiam ser apontados e é evidente que à dimensão dramática destas figuras e dos seus monólogos não é alheia a conhecida vocação dramatúrgica e teatral do autor. Noutras composições, o sujeito poético constrói o retrato vivo de um tipo humano popular, como sucede em «O meu primo» (pp. 49-52) ou «Poema das minhas mulheres tristes» (pp. 43-44) que, juntamente com o mais programático «Vou promover a realidade a coisa que se veja» (pp. 45-48) são dos poemas mais conseguidos do conjunto, no seu primeiro apartado (pp. 9-52). Programático é também, mais adiante, o não menos conseguido poema «Emboscadas» (pp. 82-83), um útil ponto de partida para uma reflexão sobre a poética de Domingos Lobo.

 

A segunda parte do livro, intitulada «e outras noites» (pp. 53-87), é dominada pela disforia e pela perda, mas sem renunciar a uma nota de esperança, por exemplo no curto poema «Fora de horas» (p. 87), de ecos drummondianos mas também neo-realistas, com que termina o poemário: «não declines / nem te ausentes / em subjectivos lastros / cantemos de voz túrgida / mas cantemos / os nossos mortos / não perdoam a cobardia e o silêncio / que teima em algemar-nos». Esta é uma atitude compreensível, parece-nos, num poeta que revela uma visão das coisas gauche e revolucionária – outro elemento nuclear da sua poética. Pois, do mesmo modo que não temos pejo em reconhecer que escritores de grande valor como Almada Negreiros, Pedro Homem de Mello, António Manuel Couto Viana, Agustina Bessa Luís ou Vasco Graça Moura eram estruturalmente vozes de direita – como objectivamente evidencia a sua escrita –, outros como Sidónio Muralha, Maria Lamas, Carlos de Oliveira, José Gomes Ferreira, Manuel da Fonseca, Ilse Losa, Eugénio de Andrade, Egito Gonçalves, Luiza Neto Jorge, Saramago, Maria Velho da Costa, Maria Teresa Horta, Mário de Carvalho, Manuel Gusmão, José Vultos Sequeira, Vale Moutinho, Francisco Duarte Mangas ou Ana Margarida de Carvalho constroem expressões autorais de esquerda – aspecto que a concreta produção literária de cada um deles permite ler e que, naturalmente, enquanto traço ideotemático, constitui elemento caracterizador da respectiva poética.   

 

Mas voltemos ao livro de Domingos Lobo. A vida nos subúrbios desumanizados da grande cidade, a exploração do homem pelo homem, o tédio e a solidão, o aparente absurdo da existência, a fadiga (que é também, com frequência, esgotamento dos corpos e do desejo) constituem algumas das linhas temáticas com que se cosem estes versos, sobretudo na primeira parte, intitulada «quotidianos». Já da segunda, são eixos estruturantes a disfunção relacional e a separação do par amoroso, a vibração erótica, a solidão do sujeito e a consciência da finitude, o topos do tempus fugit, mas também a memória na sua ligação ao espírito dos lugares (outro tópico a salientar neste poeta, que dedicou um livro a Lisboa e que insere, no presente volume, dois belos poemas em que o Porto é pano de fundo). Daí o título do segundo momento do livro: «e outras noites».

 

Jacques Brel, João José Cochofel, Manuel da Fonseca, Ruy Belo, Carlos de Oliveira (evocado em «Interpretação pessoal da Guernica de Picasso», pp. 84-86), Fernando Assis Pacheco e Joaquim Manuel Magalhães – de quem é citada a emblemática expressão «Voltar ao real (…)» –, mas também Orlando Neves, Cardoso Pires, Afonso Praça (três autores homenageados no pitoresco monólogo em lisboês cerrado «Subúrbio 2», pp. 29-31) são apenas algumas das vozes (quiçá tutelares, em alguns casos) com as quais a poesia de Domingos Lobo dialoga, através de uma estratégia citacional, mas não só. Certo, no entanto, é que o poeta possui uma mundivisão própria e uma dicção e uma linha imagética igualmente suas, além de uma retórica em que, por exemplo, a frase indutora reiterada e outros processos de anaforização / intensificação lírica revelam especial funcionalidade em termos estruturais e expressivos.

 

Uma palavra final merece o cuidado gráfico posto na edição de Quotidianos e Outras Noites, que se destaca pela capa belíssima da responsabilidade do fotógrafo, cartoonista, capista e escritor Augusto Baptista, com uma ilustração a preto e branco sobre um azul nocturno, gerada a partir de foto sua, e texto aberto a branco. Visualmente, talvez seja este o mais belo volume da colecção de poesia Explicação dos Pássaros da AJHLP.

 

Um par de notas biobibliográficas a terminar. Domingos Lobo (n. 1946), recorde-se, é natural de Nagozela,  Santa Comba Dão. Em 1982 recebeu o Prémio de Melhor Encenador, do Festival de Teatro de Lisboa, distinção que se liga a uma das forças motrizes da sua vida: a actividade teatral, quer como encenador e actor quer como dramaturgo, adaptador de textos para teatro, crítico teatral e de cinema e membro de colectivos de jograis.

 

Director do jornal A Voz do Operário, Domingos Lobo é actualmente um dos poucos colaboradores da imprensa que se dedicam com assinalável regularidade à divulgação crítica, nas páginas do semanário Avante!, no quinzenário As Artes entre as Letras, na Vértice, na Gazeta Literária e noutros periódicos, tendo reunido, por exemplo no volume Palavras que Respiram – 30 olhares sobre a literatura portuguesa (Página a Página, 2016), uma selecção dos seus textos de crítica literária publicados nos últimos anos. 

 

Mas Domingos Lobo é, sobretudo, um autor de ficções e de textos para teatro. No primeiro caso (ficcionalizando amiúde a partir do que foi a sua vivência angolana) editou Os Navios Negreiros Não Sobem o Cuando (1993, Prémio de Ficção Cidade de Torres Vedras), Pés Nus na Água Fria (1997), As Máscaras Sobre o Fogo (2000), As Lágrimas dos Vivos (2005), Território Inimigo (2009) e Largo da Mutamba (2015, Prémio Literário Alves Redol 2013).

No domínio teatral, é autor de Cenas de Um Terramoto (2010), Não Deixes que a Noite se Apague (2009, Prémio Nacional de Teatro Bernardo Santareno) e A Fome dos Corvos e Outros Pretextos Teatrais (2020). 

 

Em síntese, uma obra multifacetada e ampla, que abarca os três modos literários fundamentais e que importa conhecer e reconhecer. 

 

 

José António Gomes

 

IEL-C – Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais da Escola Superior de Educação do Politécnico do Porto

 

 

 

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

A poesia de Dímitra Mandá

O n.º 29 da revista de poesia e tradução de poesia DiVersos (Fev. 2020) dá-nos a ler, em tradução de José Carlos Marques, uma dezena de poemas da poeta grega Dímitra Mandá que, nascida na cidade de Trípoli, no Peloponeso, faleceu em Atenas, em Março de 2019.

Não são frequentes as edições de poesia grega moderna em português, se descontarmos os casos de poetas de excepcional estatura, como Konstantínos Kavafis (1863-1933) , Giórgos Seféris (1900-1971), Odysséas Elýtis (1911-1996), e de outras – poucas – vozes posteriores, que encontramos vertidas para a nossa língua. Vozes femininas menos fácil ainda é descobri-las no nosso panorama editorial.

 

É, por isso, de saudar a publicação, mais uma vez, de poemas de Dímitra Mandá (DiVersos, n.º 29, pp. 25-33), incluindo um com data de 2005. 

 

Já nesse ano de 2005 (e mesmo antes, na DiVersos) o editor e tradutor tinha prestado homenagem a esta figura feminina da poesia helénica, trazendo a lume O Momento do Amor (Edições Sempre-em-Pé, colecção UniVersos/Poesia). A edição, bilingue, era assim descrita em paratexto editorial disponível na página das Edições Sempre-em-Pé: «Um livro tão cintilante e luminoso como a luz do Mar Egeu onde ganhou vida e expressão. (…) Cerca de metade dos poemas deste livro, cuja autora reside em Atenas e na ilha de Siro, foram musicados pelo famoso compositor grego Mikis Theodorakis e gravados em disco (intitulado Mía Thálassa), pela cantora grega radicada em Paris, Angélique Ionatos.»

 

Entretanto Dímitra Mandá deixou-nos em 2019, mas fica a sua poesia, representada neste volume em grego e em português, edição graficamente cuidada que inclui algumas fotografias a cores de cenários gregos, colhidas pela própria poeta, além de uma nota biográfica, uma apresentação escrita pelo tradutor e partes de uma recensão crítica da obra assinada por Evangelos Roussos.

 

Data de Setembro de 1984, por exemplo, este curto poema de Mandá, intitulado «Inocência» (p. 57): 

 

Tua alma de menino
deixa que eu a embale
e tu dorme
a súbita chuva não a esperes

tão longínqua neste país dos sequiosos.

 

Estes versos permitem, desde logo, sinalizar alguns traços desta poética: a brevidade; a presença recorrente de um tu; e a vinculação das temáticas e da linha discursiva à questão do relacionamento amoroso. A par disto, o mar, a noite, a Lua, o vento, as paisagens gregas e, naturalmente, o desejo constituem elementos de presença forte numa escrita cuja associação a cenários helénicos é de imediato reconhecível por parte de qualquer leitor que esteja com eles familiarizado e, ao mesmo tempo, disponível para conviver, através da leitura, com o visualismo que estes poemas aqui nos propõem. 

 

Como escreve Evangelos Roussos, num texto incluído em apêndice, «a poesia de Mandá é exclusivamente poesia de amor», uma poesia «absoluta, auto-orientada para fora da historicidade, egocêntrica como criança inocente» («Apêndice – Memória dos Espelhos de Dímitra Mandá», pp. 109-112), uma poesia, refira-se, de frequente sugestão erótica.

 

Desconhecedores do grego moderno, acrescentaremos apenas que O Momento do Amor resulta, em português, numa bela dicção poética, que advirá, como é óbvio, da perícia do tradutor, mas que não é alheia, certamente, à sedutora dicção original da poeta. Leia-se, a terminar, «Se assim te falo» (p. 63), um segundo exemplo escolhido entre as dezenas de poemas deste livro: 

 

Se assim te falo
é do verão
que penetrou as minhas palavras
e os meus dias pequeninos
que cresceram até ser luz.
Se agora assim te falo é do sol
que se despenhou dos teus olhos
e dissolveram-se os relógios nas paredes
nas mesas
nas paragens

e muito mais dentro do meu coração. 

 
 

Momento do Amor pode ser adquirido aqui: https://sempreempe.pt/

 

 

José António Gomes

 

IEL-C – Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais da ESE do Politécnico do Porto

DiVersos: consagração da diversidade e da criação poética



Ninguém interessado pela criação poética, em Portugal, ignora a importância desta revista (ou série de volumes, se se preferir), conhecida pelo belo nome de DiVersos, e que, em Fevereiro de 2020, chega ao número 29, sendo editada em Águas Santas (Maia, área metropolitana do Porto) pelas Edições Sempre-em-Pé. (Estamos a falar de uma editora à qual se deve, é bom lembrar, a publicação de títulos de autores como Lanza del Vasto, Rachel Carson, Aldo Leopold e, no campo da literatura, Jules Supervielle, Ursula Wölfel, Elly Paionídou, Dímitra Mandá,Tobias Burghardt, José María Cumbreño, Afonso Cautela, Vítor Oliveira Jorge, Cristino Cortes, Jorge Vilhena Mesquita, Ruy Ventura e muitos outros. Uma chancela de orientação progressista/ecologista, que abarca interesses editoriais diversos, tais como o ensaísmo e os estudos nas áreas do ambiente e da sustentabilidade, da economia e doutras ciências sociais, publicando, além disso, poesia, narrativa de ficção e literatura para a infância e a juventude.)

 

Digamos desde já que, em qualquer país decente e em que a actividade cultural fosse devidamente prezada e apoiada pelos poderes públicos, uma revista que, entre 1996 e 2019, tivesse publicado poemas traduzidos de vinte línguas e mais de 180 autores, criando uma montra de qualidade para o inestimável trabalho de tradução literária de setenta tradutores (textos habitualmente apresentados na língua original e na versão traduzida e acompanhados de uma boa nota biobibliográfica), uma publicação desta natureza mereceria, como se compreende, dispor de um subsídio permanente da DGLAB, e ser adquirida por todas as bibliotecas públicas do país e por muitas bibliotecas universitárias e escolares.

 

DiVersos, recorde-se, foi criada em 1996 por gente ligada à poesia e à tradução especializada – designadamente nos directórios da União Europeia –, como Carlos Leite, Jorge Vilhena Mesquita, José Carlos Marques e Manuel Resende, com apoio de José Lima e Vasco Rosa, sendo hoje mantida com a coordenação de José Carlos Marques, tradutor e editor, e com colaboração solidária de vários poetas e outros tradutores.

 

Visualmente sóbria mas com um grafismo inconfundível, ainda que simples, a DiVersos resiste, apostando na diversidade poética e cultural, recusando grupismos e “capelas” e, não poucas vezes, surpreendendo-nos com o seu cosmopolitismo e com as propostas poéticas que apresenta. E isso só nos pode alegrar, não podendo um núcleo de investigação como o IEL-C da ESE do Porto deixar de recomendar vivamente a sua aquisição e fruição. 

 

Dedicado à memória do escritor e radialista Nuno Rebocho, o número 29 traz-nos muita poesia de qualidade, por exemplo do polaco Adam Zagajewski, dos gregos Dímitra Mandá e Thanassis Hatzopoulos, do francês Jean Hautepierre, do catalão Josep María de Sagarra, dos italianos Laura Garavaglia e Stefano Marino, e do dinamarquês Niels Hav. A poesia em língua portuguesa (de Portugal, do Brasil, de Angola, de Cabo Verde…) também marca presença, em registos desiguais, quer em termos estilísticos quer no plano qualitativo. No número 29, cremos que são de destacar os poemas de Carlos Sousa de Almeida (nascido em Angola), de Marcelo Benini e Renato Suttana (Brasil), de Ruy Ventura, Sara Santos e do homenageado Nuno Rebocho (1945-2020), entre outros, no que toca à representação lusa.


Cada volume da DiVersos é um tributo ao texto poético e à sua leitura, à diversidade linguística, étnica e cultural, ao multiculturalismo e ao diálogo intercultural – valores que importa defender e pelos quais importa lutar. O número 29 mantém a mesma linha, e ainda bem que assim é. 


DiVersos pode ser adquirida aqui: https://sempreempe.pt/

 

José António Gomes

 

IEL-C – Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais da ESE do Politécnico do Porto