sábado, 30 de abril de 2011

Cantata em Dois Andamentos, texto de Serafim Ferreira e ilustrações de Alfredo Martins

Um primeiro olhar sobre Cantata em Dois Andamentos (Porto: Campo das Letras, 1998) oferece, na capa, e da autoria de Alfredo Martins, a bela e diluída imagem de um rapazinho de calções, com ar pensativo, à sombra de uma árvore frondosa à qual porventura confia os seus segredos ou da qual escuta a secreta voz, como acontecia em O Meu Pé de Laranja-lima, de José Mauro de Vasconcelos. Ligeiramente velada, a imagem parece representar cena antiga, qualquer coisa a que o tempo conferiu contornos vagos, como se se tratasse de episódio de infância desfocado pela passagem dos anos ou pela memória de um adulto.

Quando lemos o segundo dos dois textos (ou «andamentos») que compõem a Cantata, descobrimos que esse adulto, apenas pressuposto pela imagem da capa, tem 57 anos, daí que a obra ostente o seguinte subtítulo: Histórias de meninos opus 57. Ficaremos ainda a saber que o adulto em causa viu nascer dois netos no espaço de pouco mais de um ano, e que estes foram crismados com nomes de ressonâncias bíblicas e religiosas: David – como o que, no Antigo Testamento, enfrentou o gigante Golias – e Tomás – homónimo do santo autor da Suma Teológica. E assim temos apresentadas as três figuras nucleares da obra de Serafim Ferreira: um narrador que dirige a dois narratários distintos, primeiro um neto, depois outro, duas missivas, em que a reflexão sobre o destino humano se cruza com narrativas de acontecimentos protagonizados por esse mesmo avô-contador-de-histórias e pelas duas crianças. Verifica-se, portanto, a curiosa coincidência de tanto o narrador como os narratários (em pequenos) se constituírem em simultâneo como personagens da acção.

Deste modo, não se está propriamente ante um autor adulto que dirige uma obra a um público infantil (muito embora aceite enquadrá-la numa colecção para crianças), mas sim perante um Escritor que cria um universo ficcional (certamente com fundas raízes em experiências vividas), no âmbito do qual se estabelece um início de diálogo, ou pelo menos uma comunicação entre um avô-narrador e os seus netos, comunicação essa cuja iniciativa pertence ao primeiro. E é talvez apenas neste sentido que – um tanto impropriamente – Cantata em Dois Andamentos, de Serafim Ferreira, poderá ser admitido como texto «para crianças».

Mudando de plano, e se é legítimo neste caso aproximar o conteúdo da ficção da biografia do Autor empírico, direi que, quando vierem a ler a obra, é provável que os netos do Escritor (os verdadeiros David e Tomás da dedicatória) vejam nela projectados aspectos da sua existência «real», mas porventura apenas apreenderão o livro na plenitude do seu sentido, uma vez atingida a idade adulta. Ou seja, neste aspecto, Cantata em Dois Andamentos é uma obra para ir sendo lida e relida, à medida que se cresce. Cada leitura irá assim surpreendendo novas implicações semântico-pragmáticas, permitindo a construção em espiral de um sentido progressivamente mais amplo e matizado, como por certo o pretendeu o Autor.

Partindo do princípio de que um livro se lê na sua globalidade, isto é, considerando desde logo as relações entre texto e paratexto, é impossível ignorar o título que, de imediato, evoca uma peça musical, a «cantata», a qual se define como composição em que a voz ocupa lugar de relevo – e, de passagem, aproveito para chamar a atenção para o carácter oracular da voz deste avô. A cantata pode ser – e muitas vezes o foi – uma peça musical de celebração de um acontecimento ou até de exaltação religiosa, acepção indissociável do que constitui a singularidade do presente texto, tanto no plano das formas do conteúdo como ao nível das formas da expressão.

Com efeito, ambos os «andamentos» desta Cantata celebram o nascimento, o de David e o de Tomás, e fazem-no de forma quase ritual. No primeiro («O Menino, os Doutores e a Estrela»), estabelece-se como que um paralelo entre a vinda de David ao mundo e o nascimento e infância de Jesus, num texto que é sintomaticamente antecedido de uma epígrafe retirada do «Cântico dos Cânticos» do rei Salomão, em tradução de Herberto Helder. Nas entrelinhas, não se fica indiferente à leve ironia com que é observada a assistência hospitalar, sendo que os Doutores, neste caso, são os cinco médicos intervenientes em momentos sucessivos do atribulado processo de um parto. No segundo «andamento», evoca-se o filósofo S. Tomás de Aquino a propósito do nascimento do neto Tomás, recordando-se o facto de ter sido o dominicano quem proclamou: «existe nos homens uma lei natural que é a sua forma de participação na lei eterna, segundo a qual eles sempre sabem distinguir o bem e o mal» (p. 22) – e por aqui se começa a adivinhar uma certa dimensão perlocutória do discurso.

A coerência estrutural da obra não repousa apenas nos já citados paralelismos, alguns deles utilizados para relatar os nascimentos em tom quase bíblico, ainda que salpicado, aqui e acolá, de ironia e de alguns efeitos de carácter parodístico. Ela assenta também no recurso a uma esfera lexico-semântica que compreende palavras e expressões como «No princípio não se sabia bem ao certo se era o Verbo» (p. 10), «nova corrida a todos levou, não de Herodes para Pilatos, mas de um para outro hospital» (p. 12), «depressa chegaram as primeiras carícias e oferendas trazidas das Terras dos Vales» (p. 14), «Aleluia!» (pp. 14 e 31), «Olha, Tomás, diz-se que no princípio se criou os céus e a terra» (p. 30), «E alguém proclamou: "Faça-se a luz". E a luz foi feita» (p. 30). Em suma, tais termos de acentuada ressonância ritual e religiosa, pronunciados por alguém que quase parece enunciar uma narrativa mítica, denunciam certa preocupação com o sagrado, que não se esgota aliás nessas expressões particulares, abrangendo também o tom geral da prosa, especialmente em certas passagens cuja musicalidade e ritmo surgem mais apurados – o que, uma vez mais, remete o leitor para o título: Cantata. É em tais momentos que alguma coisa neste discurso traz à memória a harmonia poética das narrativas fundadoras ou dos salmos e das preces, como acontece, por exemplo, no parágrafo de abertura de «O Menino, os Doutores e a Estrela», onde também são visíveis infiltrações de discurso lírico (v. p. 10).

Mas se estes textos – em termos genológicos dificilmente classificáveis, pois neles se cruzam elementos do género epistolar, da narrativa autobiográfica e até da lírica – se estes textos, dizia, parecem perseguir qualquer coisa de sagrado, quer ao nível dos conteúdos quer em termos expressivos, neles existe também muito de profano, no sentido mais positivo da palavra que, neste caso, pretendo esteja próximo do do adjectivo «humano». Dito de outro modo, são sobretudo as voltas e reviravoltas da vida dos homens, fecundas de exemplos e de ensinamentos, que interessa ao narrador reter e, à boa maneira do contador de histórias tradicional, transmitir àqueles que prolongarão a sua estirpe – que é também, no fim de contas, a estirpe do próprio homem. Aproveite-se para assinalar que Alfredo Martins, nas suas ilustrações, soube captar bem relances e flashes dessa dimensão humana a que estou a referir-me (e que surge enfatizada nos 2.º e 3.º capítulos de cada andamento): as figurações do corpo de Vera prestes a dar à luz, do nascimento de David, do neto brincando com o avô, dos jogos e aventuras de infância que este último rememora para Tomás.

No final do segundo andamento, dedicado precisamente a este neto, pode ler-se: «acredita que não há nisto que te conto outra intenção que não seja a de te evocar desde o começo do mundo esta lição das coisas e deverás por ti saber inscrevê-la na Árvore da Vida que, estou certo, te acompanhará pelos anos em diante» (p. 31).

Que sentidos – perguntar-se-á – assume esta «lição das coisas» que o avô deixa em herança aos netos? Em primeiro lugar, a ideia de que existe um tempo próprio para cada coisa, nomeadamente «para nascer e para morrer» (p. 10) e de que a existência humana é uma sucessão de situações, sentimentos, atitudes, posicionamentos cívicos, por vezes contraditórios, que ciclicamente se repetem ao longo da História. Em seguida, e a propósito de Maio, o mês de nascimento de David, evocar-se-á o exemplo do cantor José Afonso, ou seja, o de alguém que ao longo da vida nunca deixou «de sonhar endireitar o mundo» (p. 15). Finalmente, e por ocasião de uma prevista visita à Expo '98 com David, o avô pronunciará esta frase lapidar: «– Não, David, este rio [o Tejo] não é nada maior que o mundo, porque o mundo, sabes, tem o tamanho que nós quisermos.» (p. 15).

Em «Tomás e a Árvore dos Segredos», o narrador alerta para a distância infinita que vai entre aquilo que somos e aquilo que nos sonhamos (lição para a qual a epígrafe de Fernando Pessoa, a pp. 21, logo remete). Daí que evoque a sua própria infância, como se verá, depois de sublinhar a necessidade de pervivência dessa lei natural segundo a qual sempre se saberá distinguir o bem do mal, e após augurar para o neto um mundo que deverá abrir-se «por horizontes de alegria e de esperança» (p. 22), em que o país «será com certeza mais aberto e disponível para outras formas de afirmação» (p. 23).

Muito mais se poderia afirmar a propósito dessas «lições das coisas» para que aponta o texto de Serafim Ferreira, mas talvez valha a pena salientar a que se prende com a evocação da própria infância do narrador, no Porto dos anos 40 e 50, uma das passagens mais belas do livro.

Marcada pelas dificuldades da vida e pela crueldade de uma escola repressiva, essa infância cujos dias se podiam iluminar também com o companheirismo e com o jogo, com as mil aventuras vividas com outros «catraios da beira-rio e mareantes de outros sonhos» (p. 24), essa infância sofrida, mas por vezes exaltante, é a mesma que descobrimos na terceira obra de ficção que Serafim Ferreira publicou: Litoral do Espanto (1.ª ed., 1968). E porque «tudo, (...) tudo está tomado de infância», como escrevia Grombrowicz em frase citada a abrir a narrativa de 1968, não poderia o narrador deixar de a convocar de novo para esta Cantata dirigida aos netos, por vezes com os mesmos nomes, os mesmos lugares – do Porto ribeirinho –, designadamente esse Jardim do Morro onde crescia a grande japoneira que era a Árvore dos Segredos, confidente dos meninos da beira-rio, «talvez só dos pequeninos segredos» que tinham «para encher o passar das horas, sem mais brinquedos que desafiassem a (...) [sua] imaginação» (p. 26).

Nesse quadro de infância exposto em «Tomás e a Árvore dos Segredos», se começaram a desenhar os destinos futuros de cada criança, entre os quais o do Luís que, nas brincadeiras, nunca queria ser ladrão mas acabaria, em adulto, a «malhar com os ossos na cadeia, por roubos e assaltos» (p. 28), até por fim se lançar um dia da ponte Dom Luiz para as «águas tristes do Douro» (p. 28). Do confronto entre o que foram os projectos e sonhos de infância e o que veio a ser realmente a vida de cada um, extrai o narrador a lição que poderia ser formulada com a quadra de Pessoa escolhida para epígrafe do segundo andamento: «Entre o sono e o sonho, / Entre mim e o que em mim / É o que eu me suponho, / corre um rio sem fim.» (p. 21).

A propósito da pintura de Alfredo Martins, o ilustrador de Cantata em Dois Andamentos, refere o próprio Serafim Ferreira um «processo expressionista de fixar a memória de todas as coisas em cores (...) depuradas» 1. Permito-me pensar que essa mesma fixação de memórias – neste caso as que o texto convoca filtradas pela própria memória do ilustrador – está presente nas imagens concebidas para a Cantata de Serafim Ferreira. São notórias, aliás, as afinidades entre a pintura de Alfredo Martins e as suas ilustrações. Dir-se-ia estarmos sobretudo ante representações – quase sempre de pessoas – que o tempo expurgou de elementos secundários, numa procura do essencial que leva o pintor-ilustrador a deixar em branco os espaços que a imaginação do leitor deverá ela própria preencher. Tal característica permite, ao mesmo tempo, que a atenção de quem observa se oriente para a centralidade das figuras e para a expressividade que as individualiza.

Tive já a ocasião de escrever que, em Alfredo Martins, o desenho é sempre cuidado e sugestivo e a composição, uma vez que não preenche a totalidade do espaço disponível, dá por vezes intencionalmente a impressão de imagem inacabada, em que o fundo branco se confunde com o próprio papel da página, como se não existissem fronteiras entre a ilustração, o texto verbal e o livro que lhes serve de suporte. Estamos assim ante quadros que envolvem o leitor, na medida em que deixam espaço para que este os complete mentalmente, neste caso com a orientação da palavra de Serafim Ferreira. O produto final é uma obra de qualidade, cujas imagens se articulam com os diferentes momentos da narrativa, abrindo contudo horizontes e inscrevendo-se na nossa memória – o mesmo tipo de razões que levaram à atribuição do Prémio Nacional de Ilustração de 1997 a outra obra de Alfredo Martins, também editada pela Campo das Letras: A Bruxa, o Poeta e o Anjo (Porto: 1997), com texto de Mário Cláudio.

Ambas, a narrativa de Serafim Ferreira e a ilustração de Alfredo Martins, constituem formas de celebração da existência ou, como diria o avô ao seu neto Tomás, pretendem tão-só despertar em nós o sentimento de um mundo a «abrir por horizontes de alegria e de esperança» (p. 22). Por isso, como diz com propriedade o mesmo avô, o livro que desse mundo fala não poderia senão ser uma «cantata de amor e louvação à própria vida» (p. 26).

Esta Cantata é, pois, um livro para os dias de hoje e para os tempos incertos de amanhã. Porque as nossas crianças necessitam ainda e sempre da nossa vigília.

Nota

1 Serafim Ferreira, «Alfredo Martins ou a alquimia da pintura», texto incluído em Alfredo Martins, catálogo da exposição individual de pintura de A. M., realizada na Galeria Inter-Atrium, Porto, Inter-Atrium, 1999, pp. 8-9.

José António Gomes

(NELA - Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Vergílio Alberto Vieira: 40 anos de escrita

Em A Imposição das Mãos (Porto: Campo das Letras, 1999; Grande Prémio de Literatura ITF/DST 2001), Vergílio Alberto Vieira reúne, em jeito de balanço, o melhor de vinte anos da sua produção poética (1977-1997), sujeita a um trabalho de selecção, eliminação e corte.

Às cinco secções iniciais, já editadas, vem juntar-se uma colecção de poemas então inéditos em livro («Cidade irreal e outros poemas») de uma voz revelada em 1971 (Na Margem do Silêncio, Braga: Pax), que viria a repartir o seu labor por outras formas de expressão literária: a narrativa de ficção, a escrita diarística, a literatura para a infância, o texto dramático e a crítica.

Contenção e minimalismo, um quase-apagamento intencional do eu, ligado também à recusa de um lirismo à-flor-do-verso, aproximam por vezes esta poética da do haiku japonês. Daí que, no posfácio que escreveu para este livro, Gil de Carvalho possa falar em «parcimónia». E é recorrendo a essa forma muito própria de exprimir a beleza ou o horror do real que o poeta desagua, por vezes, nessas «fulgurações» (título de uma das séries) de que é feita a sua poesia:

A uma ave

compete

A orla incandescente (p. 68)

Leia-se ainda:

Um ramo

de chuva

Cinge o coração (p. 69)

Ou ainda este outro exemplo:

Tangível à noite, uma figueira cega persiste junto à cal. (p. 95).

Registe-se, contudo, que esta parcimónia evoluirá, já em período posterior ao dos segmentos aqui citados, para uma discursividade de maior fôlego – e de evidente domínio das artes poéticas –, detectável, por exemplo, nas superiores séries de sonetos, por vezes de ressonância mirandina e mesmo camoniana, que abrem a súmula poética de Papéis de Fumar (Porto: Campo das Letras, 2006).

Uma poesia, pois, a reler. Uma singularidade a reavaliar, já que, a 20 de Maio, decorrerá, no Auditório Multimédia do Instituto de Educação da Universidade do Minho, um simpósio sobre a Obra do Autor, que, este ano, completa quarenta anos de vida literária. Organizado pela unidade curricular de Literatura para a Infância e Juventude (Instituto de Educação – Universidade do Minho) e a Tropelias & Companhia – Associação Cultural, o simpósio conta com a participação de José António Gomes, Ana Margarida Ramos, Sara Reis da Silva, João Manuel Ribeiro e as ilustradoras Teresa Lima, Marta Madureira e Anabela Dias, além do próprio autor homenageado.

José António Gomes

(NELA - Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)