quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Talvez, neste Natal

 

TALVEZ, NESTE NATAL 



Talvez este Natal nos anoiteça,

por momentos nos mergulhe

em águas fundas

e nos faça descrer do mundo que ideámos.


Mas talvez uma semente luminosa, 

chegada essa hora cor de terra, 

consiga germinar

no ileso fulgor duma lembrança.


Talvez ela dê fruto num sorriso, 

num gesto quase irmão,

num olhar de súbito sem sombra;


ou talvez se transforme em velho estábulo, 

em árvore luzente ou numa estrela

para guiar amanhã os nossos passos.



2020


Texto por João Pedro Mésseder 



A equipa da Inocência Descompensada deseja a todos os nossos leitores um Feliz e Santo Natal.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

A Musa Irregular, de Fernando Assis Pacheco: um belo presente de Natal


Um grande livro de poesia, unanimemente saudado, em vários momentos, é A Musa Irregular: edição aumentada (Tinta da China, 2019), de Fernando Assis Pacheco (1937-1995), com um excelente posfácio, arguto e iluminador, de Manuel Gusmão, e edição, rigorosa, da responsabilidade de Abel Barros Baptista. Inclui, como o subtítulo indica, textos que antes não figuravam em livro.


Além de notável jornalista, crítico e tradutor, Fernando Assis Pacheco foi poeta de excepção (ainda que o tenha sido em «tom menor», como assinala Gusmão) e novelista bem singular, quer em Walt (1978) quer na obra-prima Trabalhos e Paixões de Benito Prada (1993). Da geração de Manuel Alegre, Rui Namorado, António Manuel Lopes Dias, José Carlos de Vasconcelos, José Manuel Mendes (que no espaço coimbrão tiveram uma das suas matrizes literárias), foi talvez a voz poética que de modo mais intenso e dramático abordou a Guerra Colonial, e o consequente medo da morte, mas ao mesmo tempo foi lírico de inegável finura e rigor de expressão, além de voz satírica, de sentido de humor indeclinável (mesmo quando tocado pela amargura) e de peculiar criatividade linguístico-discursiva. 

Não é possível esquecer tal voz nem os seus poemas sobre a prisão política. Assis Pacheco foi um poeta que, além do mais, não quis dissociar escrita e vida (no fundo o tema maior da sua poesia) e que não se tomava demasiado a sério, sendo capaz de inteligentemente rir de si mesmo. Como nos rimos nós também – ou pelo menos sorrimos, quando não choramos – ao ler esta poesia que não faz lembrar nenhuma outra, e que proporciona um prazer de leitura que é tudo menos comum. 

 

José António Gomes

 

IEL-C (Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais da ESE do Porto)

 

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Companhia (I)limitada, de João Pedro Mésseder

Companhia (I)limitada é uma recolha de mais de duas dezenas de poemas, editada numa nova colecção da Página a Página, cujo nome é todo um programa: "Des-confina-mente". Marcados pela variedade formal, entre o longo e o muito breve, os poemas de Mésseder aludem criticamente a realidades sociais diversas, muitas delas dolorosas e politicamente perigosas, que a pandemia do COVID-19 agravou, nos planos nacional e internacional. Contra a epidemia do medo e a retórica do isolamento, contra as tentativas de silenciar o protesto e a reivindicação, estes versos deixam no ar uma nota de esperança, que se pode ler nos poemas "Prece" ou "Quando isto um dia passar". Poesia, em suma, para manter a mente desconfinada, como o nome da colecção sugere.

 

Revista Diagonal, 3.ª série, n.º 5, Novembro de 2020, secção Sugestões de Leitura. 

 

 

(…) Poemas da pandemia, a companhia que se torna ilimitada, pela resistência poética que nasce do saber, que, mesmo  num mundo rarefeito, por pouco mais que tenhamos, temos ao menos as palavras: e que podemos fazer delas sempre outras. Há sempre a hipótese de aduzir uma errata ao mundo, como no poema final. Um livro em que se transformam os tempos da pandemia verdadeiramente em resistência poética. (…)

 

Rita Taborda Duarte, 2020


O livro Companhia (I)limitada pode ser adquirido aqui.




terça-feira, 20 de outubro de 2020

Nos 100 anos de Castrim, um “novo” livro: Novelas

                                                Mário Castrim, Ria de Aveiro, 1968

Comemora-se, este ano, o centenário do nascimento de Manuel Nunes da Fonseca (Ílhavo, 31 de Julho de 1920 – Lisboa, 15 de Outubro de 2002), que usou o pseudónimo Mário Castrim, tendo sido escritor, jornalista, conhecido crítico de televisão (antes e depois do 25 de Abril de 1974), professor, e tendo alcançado merecido reconhecimento enquanto original autor de livros para a infância e a juventude. Várias efemérides, aliás, têm assinalado a comemoração dos seus 100 anos – mas, vá-se lá saber porquê, não se espere encontrar matéria publicada, ou áudio, nos media dominantes, mesmo nos media culturais. Esses mesmo media que têm aliás ignorado outros centenários importantes, como os de Mário Sacramento ou de Sidónio Muralha, igualmente assinalados este ano. 

Além de estimável, por vezes surpreendente (e militante) poeta (por exemplo em Do Livro dos Salmos (2007) ou em Mais Poemas do Avante! (2020), recolha recentemente publicada pelas Edições Avante!),  Mário Castrim foi um prosador/contador de muito mérito. Evidenciam-no as suas narrativas para jovens O Cavalo do Lenço Amarelo É Perigoso (1971), emblemática parábola sobre o direito à vida e à liberdade, O Caso da Rua Jau (1994), em torno da escola anterior ao 25 de Abril e da escola já em democracia, ou ainda Váril, o Herói (1994), misto de romance de aventuras e de conto maravilhoso tradicional de matriz mitológica que, declinando a condição todo-poderosa dos deuses, afirma a vontade humana de viver uma existência plena. E estes são apenas alguns exemplos dos seus livros em prosa.

 

Ora é, justamente, em torno do «ofício de viver» (vou buscar o título de Pavese) e de sobreviver, das voltas do amor e do desamor, dos conflitos relacionais, dos muitos e diversos quotidianos lisboetas, é em torno disso e de muito mais que se movem as prosas de Novelas (Página a Página, 2020) – recolha de textos curtos, não raro bem-humorados, como era timbre de Castrim, saídos, no final da década de 90, no jornal 24 Horas. 

 

O título é um pouco ludibriador, pois aqui o sentido de novela não remete propriamente para aquele género narrativo tradicional de todos conhecido, mais longo que o conto, menos extenso que o romance, mas sim para um certo sentido comum e popular do termo, quando, a propósito dum enredo, dum novelo amoroso ou doutro tipo, que se estende no tempo e evoca episódios telenovelescos, dizemos algo como: «Ui, foi cá uma novela!». 

 

Trata-se portanto de 145 narrativas breves mas não superficiais, de leitura prazerosa e fácil, situadas entre o conto e a crónica jornalística inspirada no real quotidiano, conjunto a que não falta sequer um episódio da clandestinidade comunista de meados da década de 60 e outras alusões à condição militante do autor. 

 

É isto o que Novelas essencialmente nos propõe. Em boa hora, pois, se resgatou este conjunto de textos à efemeridade do jornal e se lhe conferiu a dignidade, merecida, do volume impresso. A maneira ideal de comemorar o centenário de um antifascista e democrata, de alguém que sempre se preocupou ao longo da vida em estimular o pensamento crítico, e de um poeta e prosador de méritos reconhecidos. 

 

 

José António Gomes

 

IEL-C – Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais da ESE do Porto

 

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Louise Glück (n. New York, EUA, 1943) – Dois poemas da Prémio Nobel da Literatura 2020

 






 

 

 

Confissão

Dizer que nada temo

seria faltar à verdade.

A doença, a humilhação

assustam-me.

Tenho sonhos, como qualquer pessoa.

Mas aprendi a ocultá-los

para me proteger

da plenitude: a felicidade

atrai as Fúrias.

São irmãs, selvagens,

que não têm sentimentos,

apenas inveja.

 

 

Primeira recordação

 

Há muito tempo fui ferida. Vivi

para me vingar

do meu pai, não

por aquilo que ele era

mas pelo que fui eu: desde o começo dos tempos,

na infância, acreditei

que a dor significava

que eu não era amada.

Significava que eu amava.

 

 

 

Versão portuguesa: José António Gomes

 

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Paco Ibañez: o que a muitos revelou o que é a poesia


Em 2019, celebrou-se um aniversário bem especial: os cinquenta anos da inesquecível actuação de Paco Ibañez no Olympia, de Paris, a 2 de Dezembro de 1969, um ano e tal após o Maio de 68. A recente reedição do disco Paco Ibañez en el Olympia (Paris) tornou-se, por isso, um acontecimento.

Sobre o enorme Paco Ibañez explore-se o seu bem organizado sítio oficial na Internet e leia-se o que Saramago e outros acerca dele disseram.  Detestado pelo franquismo, pelas direitas e pelo corrupto PP, tolerado (mas mal) pelo PSOE, Paco Ibañez é das figuras maiores da cultura ibérica (eu diria europeia). É aquele que a muitos revelou o que era a poesia e, sobretudo, a grande lírica de língua castelhana, que ele musicou e cantou como ninguém: Góngora, Quevedo, Arcipreste de Hita, Jorge Manrique, Machado, Lorca, Hernández, Alberti, Cernuda, Celaya, Léon Felipe, José Agustín Goytisolo, Blas de Otero, Gloria Fuertes, o cubano Nicolás Guillén, o chileno Neruda e muitos, muitos outros – basta consultar a impressionante antologia de poemas em língua castelhana noutras línguas a que o génio do compositor/cantor/guitarrista valenciano deu inigualável moldura musical e voz.  

Não foram poucos os que, graças a Ibañez, começaram a conhecer a riqueza do Romanceiro popular espanhol, a poesia do Siglo de Oro (séculos XVI-XVII: Quevedo, Góngora…) ou as poéticas das Gerações espanholas de 98 (Machado, por exemplo) e de 27 (Lorca, Alberti, Cernuda…) – sobre as quais haveriam de tombar os espectros da Guerra Civil, da perseguição e do exílio. Mas o cantor foi, ainda é, excepcional veículo de divulgação de muitos daqueles poetas que ao franquismo se opuseram nos anos de brasa: décadas de 40 a 70 do século XX (como Celaya ou Goytisolo). Alguém que veio pôr em evidência a nobreza e grandeza estética do canto de luta e de protesto, dando a ver a criação poética como o acto de rebeldia que também é.

Leitor admirável de poesia, Paco Ibañez constitui a síntese genial de uma voz de timbre único e de um notável talento de compositor de canções e de tocador de guitarra, bem como de adequação da estrutura melódica ao conteúdo e ao perfil formal do poema, sem descurar o seu registo próprio, seja ele mais trágico, mais satírico ou mais interventivo. 

Nas suas canções cruzam-se tradições e veios diversos: Georges Brassens (a quem Paco chama o J. S. Bach dos cantautores), a ‘chanson’ francesa e a música de intervenção espanhola e sul-americana, o flamenco e o folcore musical ibérico. Filho de republicanos (pai exilado), Ibañez – que conheceu bem a chilena Violeta Parra em Paris, no início da década de 60, como aliás conheceu Luís Cília e admirou José Afonso – converter-se-ia num dos incontornáveis cantautores do nosso tempo, voz rebelde e interventiva, internacionalista e sempre firme no seu afrontamento do fascismo, das forças do capital e do imperialismo, empenhada voz, acima de tudo, na incitação ao sentido crítico e ao amor pela grande poesia.  

Escute-se este jogral dos tempos modernos, por exemplo, em duas das suas canções mais emblemáticas: «Lo que puede el dinero» poema do Arcipreste de Hita (c. 1284-c.1351), e «Don Dinero», de Francisco de Quevedo (1580-1645), que funcionam hoje como certeiras críticas e condenações do capitalismo burguês e dos seus mais perversos efeitos na alma humana.



José António Gomes

CIPEM | INET-md (IPP e UNL) e IEL-C – Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais da ESE do Porto

domingo, 30 de agosto de 2020

Sobre a poesia de Domingos Lobo (Quotidianos e Outras Noites)

 

Domingos Lobo possui uma obra já vasta no campo da criação poética: Voos de Pássaro Cego (1998); As Mãos nos Labirintos (2003); Para Guardar o Fogo (2010, Prémio Literário Cidade de Almada 2009); Lisboa, Modos de Habitar (2014); A Pele das Sombras (2011); Os Dias Desarmados (2018); O Rosto em Ruínas(2020); e Quotidianos e Outras Noites, título editado em 2020 pela AJHLP – Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto. 

São traços da poética do autor, por exemplo, o fôlego discursivo de muitas composições, bem como a atenção ao outro e a um certo real em que se intersectam a dimensão psicossocial do sujeito e o espaço sócio-económico e cultural em que se move. Com efeito, em vários destes poemas, existe com frequência a ficcionalização de um cenário deste tipo, em especial naqueles, mais extensos, que quase se constituem como monólogos enunciados por personae dramáticas, masculinas ou femininas. 

 

Isto mesmo ocorre em Quotidianos e Outras Noites. Nesta obra, poemas como «Agenda para os dias inúteis» (pp. 11-13), «Monólogo do burguês cansado» (pp. 13-16) ou «Certas mulheres  – 3. Blue velvet» (pp. 19-21) dão voz a diferentes personae: um trabalhador, um pequeno burguês entediado, uma prostituta. Outros exemplos poderiam ser apontados e é evidente que à dimensão dramática destas figuras e dos seus monólogos não é alheia a conhecida vocação dramatúrgica e teatral do autor. Noutras composições, o sujeito poético constrói o retrato vivo de um tipo humano popular, como sucede em «O meu primo» (pp. 49-52) ou «Poema das minhas mulheres tristes» (pp. 43-44) que, juntamente com o mais programático «Vou promover a realidade a coisa que se veja» (pp. 45-48) são dos poemas mais conseguidos do conjunto, no seu primeiro apartado (pp. 9-52). Programático é também, mais adiante, o não menos conseguido poema «Emboscadas» (pp. 82-83), um útil ponto de partida para uma reflexão sobre a poética de Domingos Lobo.

 

A segunda parte do livro, intitulada «e outras noites» (pp. 53-87), é dominada pela disforia e pela perda, mas sem renunciar a uma nota de esperança, por exemplo no curto poema «Fora de horas» (p. 87), de ecos drummondianos mas também neo-realistas, com que termina o poemário: «não declines / nem te ausentes / em subjectivos lastros / cantemos de voz túrgida / mas cantemos / os nossos mortos / não perdoam a cobardia e o silêncio / que teima em algemar-nos». Esta é uma atitude compreensível, parece-nos, num poeta que revela uma visão das coisas gauche e revolucionária – outro elemento nuclear da sua poética. Pois, do mesmo modo que não temos pejo em reconhecer que escritores de grande valor como Almada Negreiros, Pedro Homem de Mello, António Manuel Couto Viana, Agustina Bessa Luís ou Vasco Graça Moura eram estruturalmente vozes de direita – como objectivamente evidencia a sua escrita –, outros como Sidónio Muralha, Maria Lamas, Carlos de Oliveira, José Gomes Ferreira, Manuel da Fonseca, Ilse Losa, Eugénio de Andrade, Egito Gonçalves, Luiza Neto Jorge, Saramago, Maria Velho da Costa, Maria Teresa Horta, Mário de Carvalho, Manuel Gusmão, José Vultos Sequeira, Vale Moutinho, Francisco Duarte Mangas ou Ana Margarida de Carvalho constroem expressões autorais de esquerda – aspecto que a concreta produção literária de cada um deles permite ler e que, naturalmente, enquanto traço ideotemático, constitui elemento caracterizador da respectiva poética.   

 

Mas voltemos ao livro de Domingos Lobo. A vida nos subúrbios desumanizados da grande cidade, a exploração do homem pelo homem, o tédio e a solidão, o aparente absurdo da existência, a fadiga (que é também, com frequência, esgotamento dos corpos e do desejo) constituem algumas das linhas temáticas com que se cosem estes versos, sobretudo na primeira parte, intitulada «quotidianos». Já da segunda, são eixos estruturantes a disfunção relacional e a separação do par amoroso, a vibração erótica, a solidão do sujeito e a consciência da finitude, o topos do tempus fugit, mas também a memória na sua ligação ao espírito dos lugares (outro tópico a salientar neste poeta, que dedicou um livro a Lisboa e que insere, no presente volume, dois belos poemas em que o Porto é pano de fundo). Daí o título do segundo momento do livro: «e outras noites».

 

Jacques Brel, João José Cochofel, Manuel da Fonseca, Ruy Belo, Carlos de Oliveira (evocado em «Interpretação pessoal da Guernica de Picasso», pp. 84-86), Fernando Assis Pacheco e Joaquim Manuel Magalhães – de quem é citada a emblemática expressão «Voltar ao real (…)» –, mas também Orlando Neves, Cardoso Pires, Afonso Praça (três autores homenageados no pitoresco monólogo em lisboês cerrado «Subúrbio 2», pp. 29-31) são apenas algumas das vozes (quiçá tutelares, em alguns casos) com as quais a poesia de Domingos Lobo dialoga, através de uma estratégia citacional, mas não só. Certo, no entanto, é que o poeta possui uma mundivisão própria e uma dicção e uma linha imagética igualmente suas, além de uma retórica em que, por exemplo, a frase indutora reiterada e outros processos de anaforização / intensificação lírica revelam especial funcionalidade em termos estruturais e expressivos.

 

Uma palavra final merece o cuidado gráfico posto na edição de Quotidianos e Outras Noites, que se destaca pela capa belíssima da responsabilidade do fotógrafo, cartoonista, capista e escritor Augusto Baptista, com uma ilustração a preto e branco sobre um azul nocturno, gerada a partir de foto sua, e texto aberto a branco. Visualmente, talvez seja este o mais belo volume da colecção de poesia Explicação dos Pássaros da AJHLP.

 

Um par de notas biobibliográficas a terminar. Domingos Lobo (n. 1946), recorde-se, é natural de Nagozela,  Santa Comba Dão. Em 1982 recebeu o Prémio de Melhor Encenador, do Festival de Teatro de Lisboa, distinção que se liga a uma das forças motrizes da sua vida: a actividade teatral, quer como encenador e actor quer como dramaturgo, adaptador de textos para teatro, crítico teatral e de cinema e membro de colectivos de jograis.

 

Director do jornal A Voz do Operário, Domingos Lobo é actualmente um dos poucos colaboradores da imprensa que se dedicam com assinalável regularidade à divulgação crítica, nas páginas do semanário Avante!, no quinzenário As Artes entre as Letras, na Vértice, na Gazeta Literária e noutros periódicos, tendo reunido, por exemplo no volume Palavras que Respiram – 30 olhares sobre a literatura portuguesa (Página a Página, 2016), uma selecção dos seus textos de crítica literária publicados nos últimos anos. 

 

Mas Domingos Lobo é, sobretudo, um autor de ficções e de textos para teatro. No primeiro caso (ficcionalizando amiúde a partir do que foi a sua vivência angolana) editou Os Navios Negreiros Não Sobem o Cuando (1993, Prémio de Ficção Cidade de Torres Vedras), Pés Nus na Água Fria (1997), As Máscaras Sobre o Fogo (2000), As Lágrimas dos Vivos (2005), Território Inimigo (2009) e Largo da Mutamba (2015, Prémio Literário Alves Redol 2013).

No domínio teatral, é autor de Cenas de Um Terramoto (2010), Não Deixes que a Noite se Apague (2009, Prémio Nacional de Teatro Bernardo Santareno) e A Fome dos Corvos e Outros Pretextos Teatrais (2020). 

 

Em síntese, uma obra multifacetada e ampla, que abarca os três modos literários fundamentais e que importa conhecer e reconhecer. 

 

 

José António Gomes

 

IEL-C – Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais da Escola Superior de Educação do Politécnico do Porto

 

 

 

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

A poesia de Dímitra Mandá

O n.º 29 da revista de poesia e tradução de poesia DiVersos (Fev. 2020) dá-nos a ler, em tradução de José Carlos Marques, uma dezena de poemas da poeta grega Dímitra Mandá que, nascida na cidade de Trípoli, no Peloponeso, faleceu em Atenas, em Março de 2019.

Não são frequentes as edições de poesia grega moderna em português, se descontarmos os casos de poetas de excepcional estatura, como Konstantínos Kavafis (1863-1933) , Giórgos Seféris (1900-1971), Odysséas Elýtis (1911-1996), e de outras – poucas – vozes posteriores, que encontramos vertidas para a nossa língua. Vozes femininas menos fácil ainda é descobri-las no nosso panorama editorial.

 

É, por isso, de saudar a publicação, mais uma vez, de poemas de Dímitra Mandá (DiVersos, n.º 29, pp. 25-33), incluindo um com data de 2005. 

 

Já nesse ano de 2005 (e mesmo antes, na DiVersos) o editor e tradutor tinha prestado homenagem a esta figura feminina da poesia helénica, trazendo a lume O Momento do Amor (Edições Sempre-em-Pé, colecção UniVersos/Poesia). A edição, bilingue, era assim descrita em paratexto editorial disponível na página das Edições Sempre-em-Pé: «Um livro tão cintilante e luminoso como a luz do Mar Egeu onde ganhou vida e expressão. (…) Cerca de metade dos poemas deste livro, cuja autora reside em Atenas e na ilha de Siro, foram musicados pelo famoso compositor grego Mikis Theodorakis e gravados em disco (intitulado Mía Thálassa), pela cantora grega radicada em Paris, Angélique Ionatos.»

 

Entretanto Dímitra Mandá deixou-nos em 2019, mas fica a sua poesia, representada neste volume em grego e em português, edição graficamente cuidada que inclui algumas fotografias a cores de cenários gregos, colhidas pela própria poeta, além de uma nota biográfica, uma apresentação escrita pelo tradutor e partes de uma recensão crítica da obra assinada por Evangelos Roussos.

 

Data de Setembro de 1984, por exemplo, este curto poema de Mandá, intitulado «Inocência» (p. 57): 

 

Tua alma de menino
deixa que eu a embale
e tu dorme
a súbita chuva não a esperes

tão longínqua neste país dos sequiosos.

 

Estes versos permitem, desde logo, sinalizar alguns traços desta poética: a brevidade; a presença recorrente de um tu; e a vinculação das temáticas e da linha discursiva à questão do relacionamento amoroso. A par disto, o mar, a noite, a Lua, o vento, as paisagens gregas e, naturalmente, o desejo constituem elementos de presença forte numa escrita cuja associação a cenários helénicos é de imediato reconhecível por parte de qualquer leitor que esteja com eles familiarizado e, ao mesmo tempo, disponível para conviver, através da leitura, com o visualismo que estes poemas aqui nos propõem. 

 

Como escreve Evangelos Roussos, num texto incluído em apêndice, «a poesia de Mandá é exclusivamente poesia de amor», uma poesia «absoluta, auto-orientada para fora da historicidade, egocêntrica como criança inocente» («Apêndice – Memória dos Espelhos de Dímitra Mandá», pp. 109-112), uma poesia, refira-se, de frequente sugestão erótica.

 

Desconhecedores do grego moderno, acrescentaremos apenas que O Momento do Amor resulta, em português, numa bela dicção poética, que advirá, como é óbvio, da perícia do tradutor, mas que não é alheia, certamente, à sedutora dicção original da poeta. Leia-se, a terminar, «Se assim te falo» (p. 63), um segundo exemplo escolhido entre as dezenas de poemas deste livro: 

 

Se assim te falo
é do verão
que penetrou as minhas palavras
e os meus dias pequeninos
que cresceram até ser luz.
Se agora assim te falo é do sol
que se despenhou dos teus olhos
e dissolveram-se os relógios nas paredes
nas mesas
nas paragens

e muito mais dentro do meu coração. 

 
 

Momento do Amor pode ser adquirido aqui: https://sempreempe.pt/

 

 

José António Gomes

 

IEL-C – Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais da ESE do Politécnico do Porto

DiVersos: consagração da diversidade e da criação poética



Ninguém interessado pela criação poética, em Portugal, ignora a importância desta revista (ou série de volumes, se se preferir), conhecida pelo belo nome de DiVersos, e que, em Fevereiro de 2020, chega ao número 29, sendo editada em Águas Santas (Maia, área metropolitana do Porto) pelas Edições Sempre-em-Pé. (Estamos a falar de uma editora à qual se deve, é bom lembrar, a publicação de títulos de autores como Lanza del Vasto, Rachel Carson, Aldo Leopold e, no campo da literatura, Jules Supervielle, Ursula Wölfel, Elly Paionídou, Dímitra Mandá,Tobias Burghardt, José María Cumbreño, Afonso Cautela, Vítor Oliveira Jorge, Cristino Cortes, Jorge Vilhena Mesquita, Ruy Ventura e muitos outros. Uma chancela de orientação progressista/ecologista, que abarca interesses editoriais diversos, tais como o ensaísmo e os estudos nas áreas do ambiente e da sustentabilidade, da economia e doutras ciências sociais, publicando, além disso, poesia, narrativa de ficção e literatura para a infância e a juventude.)

 

Digamos desde já que, em qualquer país decente e em que a actividade cultural fosse devidamente prezada e apoiada pelos poderes públicos, uma revista que, entre 1996 e 2019, tivesse publicado poemas traduzidos de vinte línguas e mais de 180 autores, criando uma montra de qualidade para o inestimável trabalho de tradução literária de setenta tradutores (textos habitualmente apresentados na língua original e na versão traduzida e acompanhados de uma boa nota biobibliográfica), uma publicação desta natureza mereceria, como se compreende, dispor de um subsídio permanente da DGLAB, e ser adquirida por todas as bibliotecas públicas do país e por muitas bibliotecas universitárias e escolares.

 

DiVersos, recorde-se, foi criada em 1996 por gente ligada à poesia e à tradução especializada – designadamente nos directórios da União Europeia –, como Carlos Leite, Jorge Vilhena Mesquita, José Carlos Marques e Manuel Resende, com apoio de José Lima e Vasco Rosa, sendo hoje mantida com a coordenação de José Carlos Marques, tradutor e editor, e com colaboração solidária de vários poetas e outros tradutores.

 

Visualmente sóbria mas com um grafismo inconfundível, ainda que simples, a DiVersos resiste, apostando na diversidade poética e cultural, recusando grupismos e “capelas” e, não poucas vezes, surpreendendo-nos com o seu cosmopolitismo e com as propostas poéticas que apresenta. E isso só nos pode alegrar, não podendo um núcleo de investigação como o IEL-C da ESE do Porto deixar de recomendar vivamente a sua aquisição e fruição. 

 

Dedicado à memória do escritor e radialista Nuno Rebocho, o número 29 traz-nos muita poesia de qualidade, por exemplo do polaco Adam Zagajewski, dos gregos Dímitra Mandá e Thanassis Hatzopoulos, do francês Jean Hautepierre, do catalão Josep María de Sagarra, dos italianos Laura Garavaglia e Stefano Marino, e do dinamarquês Niels Hav. A poesia em língua portuguesa (de Portugal, do Brasil, de Angola, de Cabo Verde…) também marca presença, em registos desiguais, quer em termos estilísticos quer no plano qualitativo. No número 29, cremos que são de destacar os poemas de Carlos Sousa de Almeida (nascido em Angola), de Marcelo Benini e Renato Suttana (Brasil), de Ruy Ventura, Sara Santos e do homenageado Nuno Rebocho (1945-2020), entre outros, no que toca à representação lusa.


Cada volume da DiVersos é um tributo ao texto poético e à sua leitura, à diversidade linguística, étnica e cultural, ao multiculturalismo e ao diálogo intercultural – valores que importa defender e pelos quais importa lutar. O número 29 mantém a mesma linha, e ainda bem que assim é. 


DiVersos pode ser adquirida aqui: https://sempreempe.pt/

 

José António Gomes

 

IEL-C – Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais da ESE do Politécnico do Porto

quinta-feira, 9 de julho de 2020

A Quem Pertence a Linha do Horizonte?, de João Pedro Mésseder e Ana Biscaia


Uma entrevista aos autores, por Luís Ângelo Fernandes


Ana Biscaia e João Pedro Mésseder têm concretizado parcerias felizes em diferentes livros: por exemplo Lembro-me (2012) e Clube Mediterrâneo: doze fotogramas e uma devoração (2017) (neste trabalharam com a designer Joana Monteiro), obra poética distinguida com um diploma na 12.ª edição do Concurso Internacional de Ilustração e Design de Livros Image of the Book, da Feira Internacional do Livro de Moscovo, na categoria livro de autor. Na área do livro para a infância e a juventude são também diversas as colaborações: O Livro dos Meses (2012), Poemas do Conta-Gotas (2015), Versos que Riem (2016). 
Por seu lado, Que Luz Estarias a Ler? (2014) – nomeado para os XIII Troféus Central Comics / 2015 do Festival de Banda Desenhada de Beja, modalidade: Melhor Publicação Independente – tem como ponto de partida desenhos de Ana Biscaia para os quais Mésseder escreveu um curto texto narrativo. Tanto esta obra – dirigida a crianças, jovens, adultos – como Clube Mediterrâneo: doze fotogramas e uma devoração, o primeiro centrado no drama da Palestina ocupada, e o segundo na questão dos refugiados e migrantes do Mediterrâneo, constituem exemplos de uma estética que se não deseja alheada da realidade histórica e de questões sociopolíticas candentes. 
Um novo exemplo disto mesmo encontra-se no recente livro A Quem Pertence a Linha do Horizonte? (Página a Página, 2020), poemas de preferencial destinatário adulto, escritos por João Pedro Mésseder, com vinte e cinco desenhos de Ana Biscaia, além do da capa.

Para o sítio A Inocência Descompensada, do Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais da ESE do Porto (IEL-C), disponibilizou-se Luís Ângelo Fernandes (LAF) – professor-bibliotecário, promotor/gestor cultural e autor de diversas obras no âmbito da história local – a colocar algumas questões ao autor dos poemas e à ilustradora de A Quem Pertence a Linha do Horizonte?.

LAF – O livro é um grito acerca do drama do povo palestiniano. Que principais  emoções ou atitudes o moveram? Denúncia? Resistência? Combate? Solidariedade?

João Pedro Mésseder – Creio que tudo isso se entretece nestes vinte e sete poemas. Embora eles constituam sobretudo uma reacção humana, política, poética – ao longo dos anos tornada recorrente – ao que ia acontecendo na parte palestina de Jerusalém ocupada por Israel, ou na Cisjordânia, ou na Faixa de Gaza, ou nos campos de refugiados palestinos… Ontem um massacre, hoje não sei quantos adolescentes presos ou feridos; ontem uma manifestação palestina reprimida a tiro, hoje uma escola e um hospital pulverizados pelas bombas israelitas… Enfim, a morte servida dia após dia… Como é dito num dos poemas deste livro: «Gaza: / crescer pouco / e morrer.» (p. 36) ou, num outro, «pois instale-se / na Palestina ocupada / um contador / de mortes provocadas» (p. 28). Para mim, trata-se da impossibilidade de ignorar que isto acontece todos os dias. Não em Israel, mas nos territórios palestinos, seja nos ocupados seja nas zonas cercadas pelas forças militares israelitas, um dos mais poderosos e bem equipados exércitos do mundo. Escrevo também para que ninguém esqueça. Escrevo pela paz. E, embora a poesia disso não fale directamente, procuro intervir para que a ninguém falte a consciência de que este estado há muito actua à margem da legalidade internacional (violando todas as recomendações da ONU) e do respeito pelos direitos humanos.

LAF – O título, A quem pertence a linha do horizonte?, a propósito das restrições israelitas no acesso ao mar de Gaza, pretende ser um desafio acerca do condicionamento do destino, do sonho e da liberdade?

JPM – Sim, penso que pode ser lido dessa forma. A linha do horizonte que se vê da costa é quase sempre uma imagem de liberdade e de sonho. Em Gaza, porém, o horizonte não é palestino, embora devesse ser. A marinha e o exército de Israel não o permitem. Como tal, nem do seu mar os palestinos podem dispor. Logo, a liberdade de o explorarem, dele fazendo uma das bases da economia, está cerceada. Não é possível pescar para lá de um determinado número de milhas. Do mesmo modo que todos os dias a água e a luz são cortadas por Israel em Gaza. A linha do horizonte foi usurpada, neste território. Como se lê no poema «Pergunta» (p. 10), «a linha do horizonte / a quem pertence?».

LAF – Os poemas apresentam várias roupagens, inclusive glosando versos de Camões e da poesia popular. Foi uma forma de exprimir a multiplicidade de estados de alma perante um drama quotidiano e sem fim à vista?

JPM – Sim. Quando se está a escrever, muito do que lemos vem à mente. A intertextualidade é um elemento constitutivo, indissociável do próprio discurso literário. Ao pensar nos judeus abominavelmente, criminosamente perseguidos (designadamente pelo nazi-fascismo hitleriano e mussoliniano e, hoje em dia ainda, por grupos neo-nazis na Europa e nos EUA), ao pensar nesses que agora, em Israel, vêem os poderes por eles próprios eleitos perseguir outra gente, os palestinos (curiosamente semitas, tal como eles), é impossível para mim não pensar na estrutura dum certo verso de Camões: «Transforma-se o amador na cousa amada». Na Palestina, o perseguido parece ter-se transformado em perseguidor. Por outro lado, as mortes de crianças (em Julho de 2014, em Gaza, foram mais de quinhentas), ou aqueles miúdos baleados no decorrer da manifestação da Grande Marcha do Retorno ou todos os que se encontram encarcerados nas prisões israelitas trouxeram-me à memória a lengalenga popular do Tranglomango (que Cesariny também glosou num poema seu). E assim, recriando a sua estrutura, compus o poema «A bandeira» (p. 46), que constitui uma homenagem às crianças e jovens vítimas da violência, e à luta contra a ocupação, pela independência do estado palestino. 
LAF – Os poemas foram escritos ao longo das últimas duas décadas. A razão do lançamento nesta altura relaciona-se com a iminente confirmação por Israel da anexação de parte da Cisjordânia ou foi mera coincidência?

JPM – Foi coincidência, embora o plano do governo israelita com a cobertura de Trump tenha vindo conferir uma dramática actualidade ao livro. Refiro-me, em primeiro lugar, à provocatória transferência da embaixada norte-americana para Jerusalém, e agora à anunciada anexação de partes da Cisjordânia, incluindo os blocos de colonatos ilegais, em mais uma violação flagrante do direito internacional. Em relação ao livro A Quem Pertence a Linha do Horizonte?, os poemas na verdade foram sendo escritos desde 2002. É terrível pensar que passaram dezoito anos desde o primeiro. Desejaria muito não continuar a escrevê-los nos dias de hoje. Significa que, neste momento, o drama do povo palestino continua sem solução e que a sementeira diária de mortos e de violência não conheceu ainda um termo. Porque a paz continua a ser um sonho dos palestinos e de muitos israelitas que contestam o belicismo e a actuação ilegal do seu governo. Tal como é aspiração da maioria dos portugueses, representados pela Assembleia da República, que o nosso governo reconheça o estado da Palestina, como foi recomendado, numa decisão maioritária, pelo parlamento.

LAF – As ilustrações apresentam uma forte presença do negro. A Ana Biscaia
procurou, assim, tornar mais explícita a densidade dramática dos poemas e da realidade palestiniana?

Ana Biscaia – O negro é de carvão, material que é fácil de manusear para desenhar. A linha do pau de carvão é uma linha claramente assumida – vê-se, tem espessura, contrasta com o branco do papel, que tem textura e torna o exercício do desenho numa experiência sensorial, pois o carvão a marcar o papel encontra atrito e uma leve resistência. Isso é audível quando desenho. Para mim, mais do que ilustrações, estas imagens são desenhos, e alguns deles (poucos) não são ancorados em nenhum poema, mas nas ideias que os atravessam. 
O dramatismo de alguns desenhos tenta simbolizar o que sei e o que ouço e o que leio sobre a Palestina. Mais do que pensar no efeito de densidade dramática, pensei na urgência e na rapidez com que se pode fazer um desenho. No desenho como símbolo, no desenho como resposta ao poema escrito por João Pedro Mésseder. A realidade palestina, apesar de longínqua (a vários níveis) pode ser transmitida através do desenho, mas não creio que os desenhos sejam explícitos, nem explorem a realidade palestina. São, na minha opinião, mais simbólicos uns, mais expressivos outros, o da capa é claramente surrealizante, mas todos eles são muito gráficos.

LAF – Que questionamentos pretendeu lançar?

AB – Como se nasce com uma pedra na mão? Floresce nela a pedra? E como, como se semeia? Quais os objectos de resistência daquele povo? A quem pertence a linha do horizonte? O que é uma chave e para que serve? O que são colonatos? Porque se derrubam e matam oliveiras? Que leis protegem os algozes? NAKBA (que palavra é esta?). Porque é que aquele povo é tão forte? – questionamento pessoal. Como é possível uma injustiça tão grande? 
Pensei, quando desenhei, no elogio daquele povo, nos seus símbolos, nas suas memórias, nas suas casas devoradas e nas chaves que guardam para si como objectos mágicos. 

LAF – Já são várias as obras publicadas em conjunto com João Pedro Mésseder, algumas delas premiadas. Como nasceu e como caracteriza esta cumplicidade estética?


AB – A cumplicidade não é só estética, é sobretudo de outra ordem: tem raízes numa palavra preciosa. Somos amigos. E partilhamos ideias e valores de uma humanidade que ainda está por vir, que precisa ser ganha. Creio que esta identificação nos permitiu fazer juntos livros, como por exemplo o Que Luz Estarias a Ler? e outros. É esta cumplicidade, que vai para além dos livros, que nos permite ultrapassar a questão do livro por si só. Ou que nos permite contagiar o trabalho que fazemos com o lastro oriundo da amizade que sentimos. A contaminação é um corpo vivo. O sangue corre dentro das veias do mar e há vícios que são comuns, como por exemplo o vício de rio. (Julgo que posso falar pelos dois, quando escrevo estas palavras). Conhecemo-nos  em 2009, na Feira do Livro do Porto, onde apresentámos o livro Poesia de Luís de Camões para Todos – organizado e seleccionado por José António Gomes,  com ilustrações minhas. 

Luís Ângelo Fernandes


Pode adquirir um exemplar deste livro através da editora Página a Página:



quarta-feira, 24 de junho de 2020

Falemos de frutos – e de poesia: a de Francisco Duarte Mangas e Paulo Moreira Lopes

Aos frutos qual o poeta, qual o pintor capazes de resistir? Entre a beleza das formas e o sabor, há um complexo de sensações que passa pela percepção da(s) cores(s), pela avaliação da madurez do fruto ou da sua dureza ainda verde, pela apreciação da frescura, ou pela degustação dos açúcares e do sumo (do suco, dir-se-á no Brasil). O fruto é um inesgotável exemplo do poder de metamorfose, de transfiguração da natureza. A terra que através da árvore se transforma em folha, em flor e em fruto firma um dos prodígios da vida natural. Apetece chamar-lhe magia, mas não é. Porque a realidade é quase sempre mais extraordinária que a fantasia. E, por estas e outras razões, os frutos marcam presença constante na arte. E representam, frequentemente, a abundância, o desejo, as erogenous zones (vêm-me à memória os versos cantados por Peter Gabriel, em «Counting out time», dos Genesis: «Erogenous zones I question you / Without you, what would a poor boy do?»). 

Por estranho que possa parecer, escutamos a música dos frutos na música do «Verão» e do «Outono» das Quatro Estações, de Vivaldi (1678-1741). Na pintura – e passe o oxímoro – as naturezas-mortas imortalizaram os frutos. A escultura e a ourivesaria não resistiram a usá-los como temas ou motivos. Arcimboldo (1527-1593) utilizou-os, juntamente com as verduras e as flores, para compor as fisionomias humanas que pintou. E seria, certamente, possível organizar mil antologias de poesia do mundo centradas nos frutos, começando pelos romances tradicionais de origem popular, com as suas meninas sentadas à sombra de laranjais.

Nessas antologias reencontraríamos, com grande probabilidade, a célebre «Arte Poética III» de Sophia de Mello Breyner Andresen com o seu inesquecível início: «A coisa mais antiga de que me lembro é dum quarto em frente do mar dentro do qual estava, poisada em cima duma mesa, uma maçã enorme e vermelha. Do brilho do mar e do vermelho da maçã erguia-se uma felicidade irrecusável, nua e inteira. Não era nada de fantástico, não era nada de imaginário: era a própria presença do real que eu descobria.»

Com ilustrações de José Emídio, o belo livro infantil de Nuno Higino, A Maçã Vermelha: Viagem à infância de Sophia de Mello Breyner Andresen (2008) evoca esta relação da poeta de Livro Sexto com a eloquência de um real representado pela maçã vermelha pousada numa mesa. Nuno Higino, ainda, em A Rainha do País dos Frutos (2000) oferece aos leitores, com ilustrações também de José Emídio, uma poética narrativa em torno dos frutos e da sua rainha: a romã. Também João Pedro Mésseder dedica ao mirtilo e a outros frutos a obra de poesia para a infância, O Pequeno País dos Frutos (2018), que Paul Hardmann ilustrou admiravelmente, anunciando para breve a publicação de um livro de Poemas Tangerinos, ilustrados por Helena Mancelos. 

Mas na hipotética antologia atrás referida reencontraríamos certamente ainda Eugénio de Andrade, que tantas vezes recorreu ao fruto-metáfora e ao fruto-símbolo, a ponto de ter dado o título As Mãos e os Frutos (1948) a um dos seus livros, que marcaria a história da poesia portuguesa do século XX posterior a Pessoa, e de ter incluído a composição «Frutos» na colectânea de poemas para a infância, Aquela Nuvem e Outras (1986), onde, sobre uma ilustração em aguarela de Júlio Resende, se pode ler:

Frutos

Pêssegos, peras, laranjas,
morangos, cerejas, figos,
maçãs, melão, melancia,
ó música de meus sentidos,
pura delícia da língua;
deixai-me agora falar
do fruto que me fascina,
pelo sabor, pela cor,
pelo aroma das sílabas:
tangerina, tangerina.


Aqui, mais do que um fruto no sentido literal do termo, a tangerina é um fruto da Língua, uma palavra que sinestesicamente cativa «pelo sabor, pela cor, / pelo aroma das sílabas».

Foi justamente esse fruto e a palavra que o designa que Francisco Duarte Mangas e Paulo Moreira Lopes elegeram como objecto principal do seu livro de poesia pequena lua cheia de sol (Eufeme, 2020, colecção Poetas da Eufeme, série II).

Por constituir, por encerrar em si um pequeno mundo, o fruto facilmente se converte em símbolo e em matéria de metáfora e, naturalmente, de sinestesia (embora, e muito bem, um texto sentencioso trazido para a contracapa nos lembre, neste livro, que «uma tangerina / vale por mil metáforas»). 

E esses, a metáfora e a sinestesia, são talvez – ou não estivéssemos ante um livro de poesia – os principais caminhos expressivos desta escrita, trilhados numa imensa e luminosa liberdade: «A luz da tangerina é tangível» (p. 11); «Tangerina é uma rã bebé» (p. 18); «O gomo da tangerina / desenha um sorriso / na mão do poeta» (p. 27). Os exemplos poderiam multiplicar-se. Textos que inevitavelmente exploram todo esse poder de sugestão do signo, na sua materialidade significante, que já havia seduzido Eugénio de Andrade e que imediatamente faz pensar em música, quando o escutamos, quando o vemos escrito: «Jovem deusa da música» (p. 17) é de facto a tangerina.

Luminosa janela (repita-se, sem pejo, o adjectivo) aberta em tempos sombrios, como são aqueles que atravessamos, irrecusável espaço de liberdade, fantasia e graça, pleno de humanidade e de amor à Natureza e às suas oferendas, o pequeno livro de Francisco Duarte Mangas e Paulo Moreira Lopes é daqueles cuja leitura nos pode salvar o dia. 

Investindo, com naturalidade, em recursos como a metáfora, a comparação, a sinestesia, os quarenta poemas, quase todos sem título (há cinco excepções), propõem-nos, apesar da brevidade e da contenção/contensão que os caracteriza, uma assinalável variedade de formas poéticas, em que se destacam os poemas formados por um dístico ou um monóstico; aqueles outros que lembram o haiku; os provérbios poéticos e as greguerías; o texto em forma de canção («Canção da tangerina», pp. 48-49); ou ainda a composição com um pouco mais de fôlego, em verso branco e livre («Debaixo da tangerineira…», p. 35 – irrecusável declaração de amor ao «enredo íntimo» da árvore, a essa «alquimia de fazer húmus / na alegria alada»).

Escrito sobretudo no Inverno (como sugere o texto de abertura), dialogando, assumida e criativamente, com outras poéticas, tais como a lírica popular, a de Luís Veiga Leitão, a de Éluard (o seu famoso poema que alude à terra «azul como uma laranja»), pequena lua cheia de sol é uma boa surpresa e uma leitura alternativa, escrita ao arrepio de modas e tendências, e em contraciclo. Aos fantasmas e às sombras opõe a claridade. A luz da tangerina.

Aceite-se, pois, o convite para ler e degustar este livrinho – pequeno baú cujos principais tesouros deixo escondidos – publicado por uma das poucas chancelas militantes da poesia que vamos tendo: a muito interessante Eufeme, que edita também uma revista. Resta guardar um elogio para a sobriedade e o bom gosto gráficos do livro que, a páginas 51, inclui um desenho de Francisco Duarte Mangas e, na capa, um outro de Sérgio Ninguém, o editor.

A obra (7€) pode ser adquirida em http://eufeme.weebly.com  


José António Gomes

IEL-C (Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais da ESE do Politécnico do Porto)