sexta-feira, 17 de julho de 2009

O Planeta Desconhecido e Romance da que Fui antes de Mim, de Luísa Dacosta

Numa narrativa ficcional, mas de fundo parcialmente autobiográfico, O Planeta Desconhecido e Romance da que Fui antes de Mim (Quimera, 2000), de Luísa Dacosta, propõe-nos o percurso paralelo de duas mulheres, Ana e Luísa, vítimas da passagem do tempo e das «armadilhas do amor». Uma distância de muitas décadas as separa: encerrada na provinciana Vila Real do princípio do século XX, no interior da muralha formada pelo Marão, Ana é a avó de Luísa, que esta contudo não chegou a conhecer – apesar de ter herdado alguns dos seus objectos e, sobretudo, uma certa memória, fragmentária, da vida dessa avó, narrativizada pela personagem de tia Mercedes. Mas, não obstante viver num tempo diferente e poder dar voz ao que pensa e sente, Luísa («a que escreve», segundo o texto) revê-se nessa figura precocemente desaparecida em 1917, como que num jogo especular que não só introduz o motivo do duplo (de ressonâncias trágicas, herdadas do Romantismo) como condiciona a própria estrutura, também ela especular, da narrativa. Uma ficção que revela dois destinos de mulheres fixadas em mitos de amor eterno bebidos na infância, mas agredidas afinal por sociedades hipócritas, moralmente decadentes e claustrofóbicas, em que a incomunicabilidade dilacera e o poderio dos homens ainda é regra. Canto de dor e solidão, expressão de inadaptação a um mundo em declínio (no caso de Luísa, que nos vai fornecendo flashes de uma vida decorrida entre finais dos anos 20 e os anos 90 do século XX), O Planeta Desconhecido e Romance da que Fui antes de Mim é um pungente retrato do universo feminino e um exasperado gesto que aspira a manter viva a memória de tempos perdidos, através de um bordado de palavras perpassado pelo mito de Penélope.

Na literatura portuguesa de hoje, poucos escreverão com o nervo estilístico e com a poeticidade que tornaram singular a prosa de Luísa Dacosta (daí, também, falarmos em bordado). Uma prosa que se inscreve numa linhagem a que pertencem vozes tão nobres como as de Raul Brandão e Irene Lisboa, mas devedora também do magistério poético de Camilo Pessanha que, num dos episódios do livro, situado em Macau, é objecto de um sentido tributo.

José António Gomes

NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)