sábado, 18 de setembro de 2010

José Gomes Ferreira: a juventude aos 110 anos

«Parece que faz parte das leis da literatura alguns grandes autores terem de passar por um período de imersão, não sei em que águas paradas, para ganharem lá no fundo os louros, com que regressam para sempre à superfície.» Assim se refere Mário de Carvalho 1 a José Gomes Ferreira, poeta nascido há cento e dez anos em Santo Ildefonso, no coração da cidade do Porto e do velho bairro popular da Fontinha, palco de alguns dos primeiros passos do movimento operário portuense em meados do século XIX. Não obstante as suas origens burguesas, viu a luz no meio da que viria a ser a «sua» gente: esses pobres que invectiva no poema «Pobres, gritai comigo: / Abaixo o D. Quixote (…)» («A Morte de D. Quixote», Poeta Militante, I, 4.ª ed., pp. 74-5), ou seja, os explorados e oprimidos pelos quais combateria, por palavras e actos, ao longo da vida. Curiosamente a rua em que nasceu tem o nome de Rua das Musas, lugar que dir-se-ia ter fadado este homem para se tornar voz marcante da poesia portuguesa do século XX. Apesar de, em 1904, se ter mudado com os pais para Lisboa, não esqueceu nunca o lugar de origem que evoca por mais do que uma vez na sua escrita: «Na rua das Musas / onde nasci já aos gritos / (que nunca acordaram / ninguém); / foi na Rua das Musas / onde ainda hoje as lágrimas / fabricam lama / nas lajes de granito / que jurei por ti, mãe, / tornar o sol menos imundo» (Poeta Militante, III, 4.ª ed., p. 202).

Morreu, em 1985, então «com a idade do século». Para trás ficara uma vida de diplomata (entre 1926 e 1930, após concluir em 24 o curso de Direito), de colaborador na imprensa, cronista e tradutor (trabalhou na legendagem de filmes) mas, sobretudo, uma vida de escritor e «vagabundo de sonhos», de democrata e lutador antifascista que, tendo convivido com muitas das principais figuras intelectuais do século XX português, foi grande amigo e por vezes colaborador de artistas como Ofélia e Bernardo Marques, Fernando Lopes-Graça, Carlos de Oliveira, João José Cochofel, Mário Dionísio, Augusto Abelaira, Maria Velho da Costa e tantos outros. Além da poesia (hoje reunida nos três volumes de Poeta Militante, da Dom Quixote), publicou ficções, crónica, diário, teatro, ensaios e literatura infantil. Refiro-me, neste caso, a esse «panfleto mágico em forma de romance» que é As Aventuras de João Sem Medo.

Em 1933, num tempo em que vivia sobretudo de colaborações na imprensa escrita assinadas com os mais diversos pseudónimos (aquilo a que mais tarde vem a chamar «literatura alimentícia») e durante um período de intensa convivência com figuras como Eduardo Chianca Garcia ou Ofélia e Bernardo Marques (seus compadres), José Gomes Ferreira aceita um convite de António Lopes Ribeiro para colaborar semanalmente num conhecido jornal infantil da época chamado O Senhor Doutor.

Nessas páginas viu a luz a primeira versão de As Aventuras de João Sem Medo, assinada com o pseudónimo «O Avô do Cachimbo» e ilustrada por Ofélia Marques, obra que o poeta apenas editaria em livro, após revisão profunda, em 1963, com uma dedicatória aos filhos, o arquitecto Raul Hestnes Ferreira e o poeta Alexandre Vargas, este último ainda criança no início dos anos sessenta.

Sujeito a posteriores revisões de título, subtítulo e texto, o livro tornar-se-ia a obra mais lida de José Gomes Ferreira (em Abril de 1999, atingira a 19.ª edição, na Dom Quixote) e alguns críticos, como Alexandre Pinheiro Torres, considerá-lo-iam até a obra-prima do autor. Este nutria por ela particular ternura e, nas revisões do texto, feitas já depois dos sessenta anos, sempre se esforçara «por lhe conservar toda a frescura do improviso dos 30 anos», aquela mistura dos seus dois retratos de Fred Kradolfer e de Ofélia Marques: «o dos “passarinhos” e o do “lobo”» – como afirma na Nota Final da 2.ª edição.

E o livro é com efeito notável, evidenciando o tão injustamente esquecido talento de José Gomes Ferreira para a escrita de ficção. Os conhecedores da sua obra lírica (em particular, das inventivas imagens e da rêverie poética de-pés-assentes-na-terra que tornam modernos e inesquecíveis muitos dos seus versos) não estranham o poder de reinvenção verbal, a cativante oralidade do discurso narrativo, a metáfora surpreendente, a arte de contar e o humor desarmante que singularizam a escrita de As Aventuras de João Sem Medo.

A matriz da obra encontramo-la no maravilhoso popular que o autor conhecia bem (nos anos cinquenta, organizou com Carlos de Oliveira uma imprescindível antologia de Contos Tradicionais Portugueses em quatro volumes, ilustrados por Maria Keil). Invertendo e subvertendo a lógica desse maravilhoso, propõe uma narrativa que constitui, em simultâneo, uma sátira social (por vezes vêm à memória Jonathan Swift e Lewis Carroll), uma alegoria política (numa das versões o subtítulo escolhido é «panfleto político em forma de romance») e um libelo contra o conformismo. Figuração desse conformismo é a aldeia de «Chora-Que-Logo-Bebes», de onde o indómito João Sem Medo resolve esgueirar-se, cansado da «chorinquice» e «da miséria que gelava as casas» e cobria «de verdete» os homens que viviam na povoação – grotesca imagem do Portugal amordaçado e bafiento do salazarismo.

A viagem empreendida pelo herói permite-lhe viver uma série de movimentadas aventuras (nas quais se confronta com figuras tão estranhas como o homem sem cabeça, a árvore dos dez braços, o gramofone com asas, o príncipe das orelhas de burro, o ciclope, o João Medroso – duplo do protagonista – e a menina dos pés ocos), aventuras que terminam com o regresso a Chora-Que-Logo-Bebes, onde «provisoriamente» e enquanto espera pela ocasião propícia para «secar as lágrimas» da terra, João Sem Medo «montou uma fábrica de lenços e enriqueceu».

Conhecedor das estruturas do conto maravilhoso, José Gomes Ferreira (muito antes da divulgação de A Morfologia do Conto de Vladimir Propp) cria situações que são «quase sempre doutrinariamente, o reverso ou “avesso” delas», como assinalou Alexandre Pinheiro Torres; e «a série de interdições características no conto tradicional não deixa de se encontrar representada (…), sendo transgredidas por automatismo, mas enquanto no conto tradicional de raiz folclórica as “propostas enganosas” dos variados inimigos que o Herói tem de enfrentar são sempre aceites (segundo nos declara Propp), João Sem Medo nunca as aceita» 2. Pinheiro Torres mostra ainda como, partindo do tema do «desconcerto do mundo» e do topos do «mundo ao revés», de larga tradição literária, Gomes Ferreira constrói a sua alegoria, virando do avesso, por assim dizer, símbolos mítico-populares ou étnico-proverbiais ou mesmo «seres literários ou do mundo da fábula» (a Fada representada como um homem vestido de mulher, as «inversões de funções do tipo dos travestis dos pares Eurídice-Orfeu, D. Quixote-Dulcineia, ou a Cigarra e a Raposa, a Rã e o Boi, a Raposa e o Corvo, etc.») 3.

Alegoria política «da má-consciência que aflige o cidadão português apolitizado, mas que aceita sem rebelião activa a sua imanência como objecto», João Sem Medo suplanta, na opinião de Pinheiro Torres 4, outras narrativas alegóricas de fundo político, como as de Karel Capek ou Animal Farm de Orwell.

Com notáveis incursões na novela, no romance (O Sabor das Trevas, 1976), na narrativa curta (entre o irónico e o comovido – lê-se em testemunho 5 de Urbano Tavares Rodrigues) e na crónica-conto (O Mundo dos Outros, 1950), José Gomes Ferreira legou-nos ainda saborosas páginas quer de memórias (A Memória das Palavras ou o Gosto de Falar de Mim, 1965, e outros títulos) quer de diário e, vale a pena lembrá-lo, deu-nos um dos mais sentidos relatos da manhã do 25 de Abril de 1974 – que hoje podemos ler no terceiro volume de O Poeta Militante (4.ª ed., 1998, pp. 319-22).

A escrita de Gomes Ferreira pertence a uma linhagem que entronca em vozes tão diversas como as de Raul Brandão e Teixeira de Pascoaes, mas passa também pelo neo-realismo de que foi contemporâneo (e a que também estiveram vinculados alguns dos seus amigos dilectos, como Carlos de Oliveira, que a seu modo romperia os limites dessa corrente estética). No hoje mal tolerado neo-realismo quiseram alguns, apressadamente, arrumar a obra de José Gomes Ferreira, sem atentarem no encanto e na graça de uma prosa alicerçada no vivido, e na sua permanente e já referida rêverie poética traduzida em inventivas imagens e cachos de metáforas que, de algum modo, ligam também a sua poesia à escrita surrealista, como bem notou Jorge de Sena em carta dirigida ao poeta: «(…) pelo carácter intempestivo e visual das suas constantes imagísticas, em que como que um surrealismo nominalista surge a evocar, a fixar, a definir, a tornar significativos os momentos líricos que outra poesia menos rica se limitaria a registar com embevecida melancolia. É isto mesmo, a recusa ao embevecimento perante o próprio lirismo que mais caracteriza o seu e lhe dá uma força simultaneamente moderna e clássica» 6.

Pensando nas palavras de Sena, direi que essa «mulher de carne azul, / semeadora de luas e de transes» que «atravessou o vidro / e veio, voadora, / sentar-se ao meu colo / na nudez reclinada / dum desdém de espelhos» (Poeta Militante, I, 4.ª ed., p. 313), essa imagem de sonho cantada no belíssimo conjunto de poemas que é Eléctrico (1956), assumiria outras e variadas formas ao longo do singular percurso poético de José Gomes Ferreira. Tal caminho, feito de ousadas imagens inscritas no onírico, não o impediu de manter bem assentes na terra os seus pés de homem e de escritor, incapaz de dissociar a sua actividade de criador dos seus compromissos morais e cívicos, mas tendo sempre presente que «a poesia não é um dialecto / para bocas irreais. / Nem o suor concreto / das palavras banais» (Poeta Militante, II, 4.ª ed., p. 307).

Comprovam esta atitude, entre muitos outros, os versos que escreveu a partir de numerosos acontecimentos sociais e políticos do seu tempo e também, por exemplo, na sequência da prisão, em 1955, do filho, Raul Hestnes Ferreira, encarcerado nos calabouços da PIDE à Rua do Heroísmo. Aí o visitava o pai, experiência dolorosa de que falam os poemas da série «Comboio», «canto de amor (…) pelo Porto e pela liberdade», no dizer de Manuel António Pina, esse Porto que é «presença constante na poesia de José Gomes Ferreira» 7: «Porto / – cidade de luz de granito. // Tristeza de luz viril / com punhos de grito.» (Poeta Militante, II, 4.ª ed., 1991, p. 285).

Em Janeiro de 1971, escreve no seu diário: «Confesso o meu pecado: tenho utilizado a Poesia como arma de combate, a minha única arma possível, embora sem ilusões, pois sempre a considerei uma débil espada de papel. Mas com esta sinceridade que nunca me larga, quero também ter a franqueza de dizer que, na maioria dos casos, a poesia-arma-de-combate me tem soado muitas vezes como um estratagema – inconsciente, claro – para evitar os verdadeiros combates e fingir que não se foge8. Sabemos, no entanto, que José Gomes Ferreira não era dos que fugiam. Quem apaixonadamente atravessou o século, experimentando angústias e júbilos, mas também com sentido crítico e auto-crítico e espírito revolucionário; quem, como o poeta, viveu os sobressaltos da 1.ª República e fez a travessia da longa noite salazarista/marcellista; ou, após a Guerra de 14-18 e a Revolução Socialista de Outubro na Rússia, assistiu, de Lisboa, ao esmagamento da República Espanhola, à ascensão do fascismo na Europa, à Segunda Grande Guerra e ao Holocausto e, por fim, à vitória sobre o nazismo – não poderia manter-se indiferente aos dramas e convulsões do seu tempo histórico.

Escrita como se de um diário se tratasse, a escrita poética de José Gomes Ferreira 9 é vivo e ininterrupto testemunho de um tempo de luta pela liberdade e pela dignidade humana, sem paralelo na poesia portuguesa do século XX. Um século cujos sofrimentos, ilusões e certezas ele viveu intensa, implicada e fraternamente, até experimentar a alegria de ver ruir, numa manhã de primavera, quarenta e oito anos de ditadura em Portugal: «Ainda assisti, ainda assisti à morte deste maldito meio século de opressão imbecil» – escreve em 25 de Abril de 1974. Mas a inquietação e o sonho não o abandonam e a sua luta prossegue. Ante aquilo a que chamou a agonia da Revolução («A Revolução agoniza», Poeta Militante, III, p. 371), ele, que sempre havia sido um activo companheiro das lutas pela democracia e pela liberdade, toma a decisão de se filiar, em idade já avançada, no Partido Comunista Português, «modo de eximir-se definitivamente – escreve Paulo Sucena – a uma posição contemplativa, ainda que crítica, (…) e assumir-se como poeta militante não só da poesia mas também da luta pela abolição das classes» 10.

Sonhando com «combustões / de novas flores / com pétalas de asas de liberdade / que só nascem e crescem regadas pelos gritos e lágrimas / das multidões», irmanado, assim, com poetas como Maiakóvski, Neruda, Éluard, Aragon, Brecht, Hickmet, Guillén, Carlos de Oliveira, Ary e tantos outros, José Gomes Ferreira deixaria aos que lhe sobreviveram, e aos que depois dele vieram, um testamento poético tocante, interpelador, que muitos ainda hoje conhecem de cor: «Não traio. / Porque insistes? / Não traio. (…) Povo, continua! Não pares a tua tempestade.» (pp. 377-8) 11.

Notas

1 Mário de Carvalho, texto sem título in Óscar Lopes et alii (org.): Recomeço Límpido: No Centenário de José Gomes Ferreira. Porto: Sector Intelectual do Porto do PCP, 2000, p. 66.

2 Alexandre Pinheiro Torres. Vida e Obra de José Gomes Ferreira. Venda Nova: Bertrand, 1975, p. 267.

3 Id., ibid., p. 266.

4 Ibid., pp. 277-8.

5 Urbano Tavares Rodrigues, «José Gomes Ferreira: a vida e o sonho», in Óscar Lopes et alii (org.), op. cit., p. 82.

6 Jorge de Sena, carta inédita publicada no Jornal de Letras de 31/5/2000, p. 19.

7 Manuel António Pina, «Luz de granito», Jornal de Notícias, 12/5/2000.

8 Páginas inéditas publicadas no Jornal de Letras, ed. cit., p. 16.

9 Para os não iniciados na poesia de J. G. Ferreira, sugere-se a leitura dos três belíssimos poemas incluídos por Eugénio de Andrade na sua Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa. Porto: Campo das Letras, 1999, pp. 397-9. Aos estudiosos recomenda-se a leitura de A Militância Melancólica ou a Figura de Autor em José Gomes Ferreira (Faro: 2006), de Carina Infante do Carmo (tese de doutoramento apresentada à Universidade do Algarve).

10 Paulo Sucena: «Nascimento de um poeta», in Óscar Lopes et alii, op. cit., p. 72.

11 Partes do presente artigo foram publicadas, em primeiras versões, nas edições de O Primeiro de Janeiro (Suplemento «Das Artes das Letras») e do Diário de Notícias, respectivamente de 7/6/2000 e 9/6/2000.

José António Gomes

NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)