sexta-feira, 24 de abril de 2020

Géneros e formas breves: uma reflexão também ela breve

Com longa tradição na literatura – a qual remonta a tempos tão antigos que nem mesmo a palavra literatura era ainda utilizada –, com um número de cultores que surpreende, os géneros breves têm merecido estudos diversos. De que falamos quando nos referimos a estes géneros? De modalidades em verso ou em prosa como as que enumeraremos, e que podem pertencer à literatura escrita institucionalizada ou provir do património literário oral de raiz popular. Mas podem também alguns desses textos não ser dotados de uma intencionalidade estética, mas deles ser feita uma leitura, digamos, literária. Traço comum a tais composições: a brevidade textual, com todo um conjunto de implicações (formais, semântico-pragmáticas, intertextuais…), que não serão abordadas porém neste curto texto.

Em verso, mencionemos o epigrama da Antiguidade Clássica (presente na Antologia Palatina, com poemas dos períodos clássico e bizantino da literatura grega; leia-se também a poesia latina de um Catulo ou de um Marcial…), o epitáfio ou epicédio (com origem também na Antiguidade Clássica) e ainda o haiku japonês (começando pelos quatro mestres: Bashō, Issa, Buson, Shiki…).

Mas refira-se, já agora, o haiku tal como o cultivaram os ocidentais, depois de o terem descoberto em finais do século XIX. Exemplos: os espanhóis Antonio Machado, José Luis Parra, Susana Benet, Juan Kruz Iguerabide (basco); os argentinos Jorge Luis Borges e Andrés Neuman, e tantos outros hispano-americanos como o uruguaio Mario Benedetti e os mexicanos José Juan Tablada e Octavio Paz; o sueco Tomas Tranströmer; os canadianos Leonard Cohen e George Swede; os norte-americanos Ezra Pound, Richard Wright, Steve Sanfield, Kerouac e outros escritores da Beat Generation; os franceses Paul Claudel, Julien Vocance, Paul Éluard, Eugène Guillevic, Paol Keineg (bretão); os brasileiros Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa, Mário Quintana, Paulo Leminski, Millôr Fernandes, Paulo Franchetti e muitos outros. E, pensando em Portugal, teríamos igualmente de apontar muitos nomes de poetas que deliberadamente cultivaram o haiku ou que se abeiraram do género e da sua forma tradicional, mesmo sem o assumirem de forma directa. São os casos de Celestino Gomes, Fernando Pessoa, David Mourão-Ferreira, Luís Pignatelli, Eugénio de Andrade, António Ramos Rosa, Albano Martins, Liberto Cruz, Luísa Freire, Pedro Tamen, Casimiro de Brito, Yvette K. Centeno, João Carlos Raposo Nunes, Flor Campino, Bernardette Capelo, Francisco José Craveiro de Carvalho, Vergílio Alberto Vieira, David Rodrigues, Leonilda Alfarrobinha, Hercília Agarez, Ana Mafalda Leite, Manuel Silva-Terra, José Soares Martins, José Pinto Leite, João Pedro Mésseder, Adília Lopes, Jorge Sousa Braga, Francisco Duarte Mangas, João Rasteiro, José Tolentino Mendonça, Inês de Barros Baptista, João Bosco, José Efe, Catarina Nunes de Almeida, João Manuel Ribeiro, e outros. Mesmo na própria escrita preferencialmente destinada à infância e à juventude, será possível encontrar exemplos em livros de Teresa Guedes, Jorge Sousa Braga, Nuno Higino ou João Pedro Mésseder.

Mas géneros breves, em verso, são-no ainda o tanka japonês – que igualmente tem os seus cultores no ocidente –, o limerick de origem popular, oriundo das “nursery rhymes”, mas depois cultivado por esse mestre do “nonsense” vitoriano que foi Edward Lear (igualmente ilustrador) e por muitos outros poetas. Próximos do haiku encontram-se o senryū (que vai buscar o nome ao do poeta japonês do século XVIII, Senryū Karai) ou mesmo o poetrix, criado pelo brasileiro Goulart Gomes e, em Portugal, cultivado por Anthero Monteiro.

Consideremos também a quadra, não enquanto tipo de estrofe, que é, mas enquanto poema uno com essa forma (Pessoa e as suas quadras de cariz popularizante; os poemas de quatro versos compostos por Emily Dickinson ou por José Bergamín – poeta espanhol da Geração de 27; as quadras de António Aleixo; as quadras populares…). Ao mesmo nível do poema com a forma de quadra única, encontram-se os de apenas uma quintilha, ou um terceto, ou um dístico ou mesmo um monóstico (quer no espanhol Bergamín quer em Luís Veiga Leitão ou nos últimos livros de Alberto de Lacerda e de Adília Lopes encontramos exemplos destes poemas de muito curta extensão).

As “rimas infantis” mais breves do património literário oral (certos trava-línguas, adivinhas, canções de berço, rimas de jogos e outras) podem ser também consideradas como géneros poéticos breves, assim como muitas fábulas em verso (por exemplo de La Fontaine ou de Bocage – quase sempre versões das de outros fabulistas), ainda que neste caso estejamos perante textos do modo narrativo, ao passo que, na maioria dos exemplos antes apontados, o modo dominante é o lírico.Embora coloquem por vezes em questão a própria noção de verso, muitos poemas concretistas e visuais, por seu lado, têm a brevidade em comum com as modalidades poéticas que mencionámos.

Passemos aos géneros breves em prosa. Embora possa, por vezes, recorrer a uma estratégia narrativa, lírico é também, em geral, o poema em prosa breve – leiam-se os de Almada, Carlos de Oliveira, Luís Veiga Leitão, Eugénio de Andrade, Ana Hatherly, Luís Miguel Nava ou Mário Castrim (na escrita para a infância) –, género que tem no Baudelaire de Le Spleen de Paris um dos seus fundadores. E possuem igualmente certo cunho lírico todas aquelas práticas discursivas de entrecruzamento da filosofia e da moral com a literatura, em cuja esfera se inscrevem o aforismo (veja-se em Portugal o caso de Marcello Duarte Mathias), nomeadamente o aforismo poético (Pessoa, Drummond, António Osório, Eugénio Roda…), a máxima (o magnífico La Rochefoucauld), o pensamento (Marco Aurélio, Pascal) ou a greguería – esta inventada pelo espanhol Ramón Gómez de la Serna, mas cultivada também por autores como Enrique Jardiel Poncela, Mário Quintana ou José Jorge Letria (neste caso, na escrita para a infância). É sabido que abundam os filósofos (Nietzsche, Wittgenstein, Cioran…) que fizeram uso do aforismo como forma expressiva preferencial de reflexão. E muitos são também aqueles prosadores em cujas narrativas e textos dramáticos se encontram segmentos aforísticos, alguns deles brilhantes (Oscar Wilde, Pascoaes, Vergílio Ferreira, Saramago, Agustina…), dos quais, amiúde, se organizam recolhas antológicas – neste caso, não de textos unos mas de fragmentos.

Também podem ser englobados neste conjunto o provérbio, prática de sabedoria do património literário oral muito usada em contextos argumentativos, e com estrutura semântico-formal característica, bem como o provérbio reinventado no âmbito da escrita para a infância e a juventude (Francisco Duarte Mangas, Vergílio Alberto Vieira, Teresa Marques…). Porém, no caso dos aforismos, pensamentos, máximas, provérbios, importará distinguir textos de intenção literária de outros que, não a tendo à partida, não deixam de possuir amiúde elementos de fruição estética.

Frequente, por outro lado, é deparar com narrativas breves ou muito breves situadas na fronteira entre conto e poema em prosa. São os casos de certos micro-contos e contos breves de autores como Augusto Monterroso (guatemalteco de origem hondurenha), Eduardo Galeano (Uruguai), Mário Quintana e muitos outros latino-americanos. E, em Portugal, de um Mário-Henrique Leiria – ligado ao segundo grupo surrealista de Lisboa –, de um António Torrado, de um Henrique Manuel Bento Fialho, e de um Augusto Baptista, cartoonista e fotógrafo além de notável autor de contos breves e micro-contos.


José António Gomes


IEL-C (Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais da ESE do Porto)