segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

O Entrudo Carnaval




O Entrudo Carnaval era um brejeirote, alto, escanga­lhado, folião. Vivia à revelia. Comia, dormia e folgava.
Dormir é que lhe fazia proveito, dizia ele.
As irmãs, umas sensaboronas, andavam sempre em bicos de pés para o não incomodarem, e nem tos­siam.
Mas quando chegava uma certa altura do ano o En­trudo Carnaval renascia. Dava cada salto naquela cama! Cantava, ria, chalaceava, era outro. De noite, à socapa, fugia para os bailes e tanto se lhe dava levar o fato do direito como do avesso. Voltava sempre a horas mortas, ninguém mesmo o ouvia — metia-se na cama e ficava-se. Isto, durante noites e noites a fio. Depois, não se sabe porquê nem porque não, enchia-se de coragem, levan­tava-se cedo e punha a casa num rebuliço.
Queria que o lavassem e que o penteassem e queria sécias ricas, berloques, enfeites, novidades... Não deixava parar ninguém.
De uma certa vez acordou ainda mais alvoreado que nunca. Ralou as irmãs à procura de rendas e de fitas, desencantou um velho bastão de cabo de prata num sótão, polvilhou-se, mosqueou-se, ensaiou passos e mesu­ras e remirou-se em todos os espelhos da casa. Depois de bem adamado e composto saiu para a rua.
Era domingo, o primeiro domingo de Março, e fazia um sol lindo. As janelas estavam cheias de senhoras. O Entrudo Carnaval pavoneava-se, cumprimentando-as para a direita e para a esquerda. As crianças engraçavam com ele.
Ia o nosso Entrudo de cabeça no ar, todo alegre e satisfeito, quando esbarra com uma velha. A própria velha que tropeçou nele e se pôs a resmungar. O Entrudo Carnaval arremedou-a, mandou-a para o borralho, puxou-lhe pela ponta do xaile e por fim virou-lhe as costas Com quem é que há-de tornar a esbarrar meia dúzia de passos adiante? Com uma ama! Isto era no tempo em que os meninos de mama ainda não andavam de carrinho. As amas que os traziam ao colo eram uma espécie de andores com grandes laços na cabeça, de fitas a voar, capas rodadas e cheias de rendas e bordados pela dianteira.
O Entrudo Carnaval não se sente mais senhor de si. Joga-lhe as pernas à frente, pede-lhe um chocho, o menino, uma fita do topete. A mulher quer desenvencilhar-se dele e não pode.
Só um chocho, um chocho e mais nada!
A mulher, sempre a rir e às cabeçadas, lá se furta aos seus atrevimentos. Mete-se na escada mais próxima acolitada pela patroa. O Entrudo atira um pinote, larga o bastão e dispara atrás dos gatos. Depois furta o cabaz a uma sopeira, dá grandes gargalhadas, oferece o braço a duas meninas que vão passando, parece doido varrido. Os garotos da rua, atrás dele já gritavam:
Querem ver? Querem ver? Ulha, ulha, ele ali está, vamos lá ver o que é que ele agora faz...
Mas o Entrudo Carnaval, aborrecido, voltou para casa. Mudou de traje e tornou a sair. Diziam-lhe as irmãs, da porta:
Anda cá, Entrudo, espera aí! Olha que vais indecente!
Pois sim, pois sim. E continuava, sem se virar. Mas na rua é que foram elas...
Olha, olha, é o Entrudo é ele mesmo em carne e osso.
Que vergonha!
Prendam-no! Grande descarado!
A polícia, chamem a polícia, parece impossível!
Mas ele nada ouvia, nem se ralava.
Tinha-se vestido de bebé. Com um vestidinho curto e de peúgas — as grandes canelas peludas todas ao léu — uma coifa da mãe na cabeça e um arquinho na mão, só dizia tolices. Metia-se com quem passava, tinha birras, pedia bolos, fazia beicinho, chamava muitos nomes feios a toda a gente, queria brincar... Eu sou pequenino, repetia ele, sou muito pequenino, coitadinho do me­nino...
Por fim enfadou-se de ser bebé, entrou num algibebe e disfarçou-se de velho. Arranjou um grande chanfalho, que estava cheio de pó e de ferrugem, uma penca furi­bunda e umas barbas de chibo. Envergou uma casaca velha e entrou a arremeter com uns e com outros. Revirava os olhos, ameaçava com o chanfalho, corria atrás de quem se voltasse, metia medo... Arreda que te espeto, arreda que te espeto! regougava ele.
Apuparam-no, bateram-lhe e por fim até o levaram de rojo pelas ruas fora.
O triste, já todo enlameado e desfalecido, só o que fazia era pedir misericórdia. Deixaram-no como um lázaro, o olho muito mortiço, sem penca nem barbas, mal dando acordo de si. Começou a juntar-se povo à sua volta.
Está morto e bem morto! — dizia um.
Ó Entrudo que foste Entrudo!
Qual? Ainda não vai desta.
Pobre Entrudo! — choramingava uma mulher. Era lá coisa que se fizesse! Deixarem-no assim neste es­tado…
Patife! — resmungava um velho de cabeça pelada. Só tem o fim que merece. Mas sempre era bom ver se ele ainda bole.
Está morto e bem morto!
Vejam, vejam, teimava o velhote.
Está... não está... até que um rapazola, mais afoito se atreve a puxar-lhe por um pé. Chama-o pelo nome.
O Entrudo estremece. Esgazeia os olhos e tartamudeia: que diabo me quer toda esta malta aqui de roda?
O povo afasta-se um pouco.
Ah! seus malandros, rezavam-me o responso, hem? Eu já lhes digo!
Levanta-se de um salto e começa a apanhar pedras. Como vê tudo a fugir deita-as fora, entra a despir-se e a rir a bandeiras despregadas.
Ele está doido, ele está doido! Então não querem lá ver?
O Entrudo Carnaval, de cuecas e com a fralda de fora, atravessa a rua às cambalhotas. Rouba a capa a um estu­dante que seguia desprevenido, embrulha-se nela e desata a cantar. Põe os olhos em alvo, invoca as estrelas e vai piscando o olho às meninas janeleiras.
Assim andando passa à porta de um guarda-roupa de teatros. Olha para os belos trajes exibidos, apalpa-os, abana-os e propõe uma troca ao dono do estabeleci­mento: a sua capa por uns calções de seda e um gibão de veludo. Faz-se a troca, veste-se o Entrudo, põe uma peruca de rabicho, calça sapatos de fivela, estica as meias e sai. Logo se lembra de umas primas que tem por ali algures. Apressa o passo. Bate-lhes à porta de certo modo.
Ó Entrudo, meu rico Entrudo! bradam logo elas de dentro. Pois és tu?
Sou eu, sou.
Já nos tardavas.
Aqui me têm, não digam mais nada.
Mas que tens tu feito? Anda, conta...
Sei cá! Quem é que me dá um abraço, então, e quem é que me dá um beijinho?
Maroto!
Eu, maroto? Ah! ricas primas, Folias do meu coração. Já não podia mais com saudades. Vocês não me acredi­tam?
Acreditamos, pois.
Olha, olha, aquela... sempre tem uma boquinha... e tu, meu amor, estás tão bonita! Ai, primas, ricas Folias...
Brejeiro, tira a mão!
Folias da minha alma, não me fujam.
Pois não, pois não, meu traste, mas assim não vale...
Não vale, não vale? Mas se vocês estão uns amores! Há lá raparigas mais bonitas?
Beliscões é que não, meu atrevido.
Olha a tolinha com cerimónias. Então quem sou eu?
Safa-te, nada, deixa-nos. Estávamo-nos a arranjar...
Ninguém tem umas priminhas assim! Se não fossem elas. Eu juro...
Mas que é que tu nos queres?
Não sabem, ainda não sabem? Venham daí! Daqui não arredo pé sem vocês.
Patife! Todos os anos é isto. Pois sim, espera, vamos já.
E as Folias, entre risos e gritinhos encheram-se de gui­zos, fitas, pentes e flores e saíram com o primo. Correram becos e vielas sempre às gargalhadas e por último estaca­ram à porta de um fidalgo. O Entrudo levantou a grande aldraba com carranca de leão e deixou-a cair. Logo asso­mou ao pórtico um laico agaloado. Mandou-os entrar, dando sinal a outro lacaio com um volver de olhos. O Entrudo fazia as suas zumbaias a todos os lacaios que vira e as Folias, muito recatadas, nem sorriam.
O fidalgo e a sua família estavam no salão: pareciam, de facto, esperar os recém-chegados. Tanto que o dono da casa mal viu assomar o Entrudo Carnaval ao topo da escadaria, assim se manifestou:
Sede bem-vindo, nobre amigo, sois um festejado hós­pede, aqui e em toda a parte.
Mas o Entrudo irreverente circunvagou os olhos e meteu as mãos nos bolsos. As Folias, inquietas, deram aos guizos das saias, depois começaram a bater o pezinho.
Pôs-se então a dizer uma senhora de cabelos brancos, ou empoados:
Nobre Entrudo, acercai-vos de mim, já vos não distingo bem, éramos velhos amigos...
Não posso, não posso, minha avozinha!
Ele que diz?
Que não pode ser, avó.
Porquê? Já me não conhece, com certeza. Ou será um descendente...
Pois, minha avó. Não vê que este é um rapaz?
Mas tinha tanta graça! Naquele tempo...
Ora, ora, replicavam-lhe as netas, deixe-o connosco, connosco é que ele agora se entende.
O Entrudo, no meio da casa, de boca apertada, zom­bava delas com os olhos. Por fim explodiu:
Raparigas não se acanhem, então? Cá as minhas pri­mas não têm vergonha de ninguém.
E as Folias bateram as palmas de alegria.
As meninas, afoitas, foram-se aproximando dele. Uma lhe pediu versos, outra lhe pediu cantigas. Tratavam-no por tu...
O Entrudo Carnaval, meio trocista, fazia como os papagaios, cacarejava, revirava o olho e balanceava-se.
O fidalgo, muito amável, veio participar-lhe que tinha feito convites em sua honra e das gentis Folias e que se sentiria feliz de os ver à vontade.
O Entrudo fingiu que agradecia e entrou a cirandar pelas salas. Virava os quadros, despejava as jarras, empo­leirava-se nas cadeiras, espreitava a todos os cantos, dava espirros medonhos, assoava-se com estrondo, abria e fechava janelas e portas, não sossegava.
Entretanto chegam os convidados. O fidalgo a todos o apresenta com estas textuais palavras:
Ei-lo, o cavaleiro da Graça e da Bizarria, da antiga Casa da Festa e Senhor da Liberdade. Por divisa um guizo de oiro e por timbre uma gargalhada. E da mais velha nobreza. Toda a honra é minha em vo-lo apre­sentar.
O Entrudo, desentendido, virava-se para um lado e para outro. Derreava o ombro, arregalava o olho, assobia­va e cacarejava de novo como os papagaios.
As meninas à roda dele pareciam umas borboletas:
Ó Entrudo, não danças? Gostas de mim? Queres do­ces? Pareço-te bem? Estás cansado, ó Entrudo?
O Entrudo constipou-se! berra ele de súbito. E dando um grande atchim cai sentado. Que é das minhas pri­mas?
Ninguém sabia delas. A balbúrdia já era grande. An­davam nuvens de pó pelo ar e no chão só se viam papéis e flores pisadas.
O Entrudo desata a espernear e a gritar que lhe falta a respiração, que se está ali pior que numa casa de malta.
Levam-no em braços, mas ele estorce-se e continua a gritar que o matam, que tem muita fome, que não pode passar sem as suas ricas primas.
Depuseram-no no salão dos banquetes. A mesa estava posta e o Entrudo mandou logo que o servissem. Vieram as Folias, enfim, e os mais convidados.
O dono da casa parecia contente. Sorria e instava com o Entrudo para que gracejasse, animasse, aquela reunião. Chamava-lhe seu encantador amigo, seu velho compa­nheiro. O Entrudo impava e distribuía chufas a torto e a direito. As damas davam-lhe motes e ele glosava-os com uma brejeirice, mas oh! que brejeirice. Contava anedo­tas de fazer rir e morrer de vergonha, desengonçava-se na cadeira às gargalhadas... e por fim até metia as mãos no prato e bebia por todos os copos. Os fidalgos e fidal­gas imitavam-no. Não contente, o Entrudo Carnaval salta para cima da mesa e dá a mão às Folias que se derreavam, todas esbodegadas, nos braços de uns e de outros. As damas da casa têm cheliques e põem-se aos gritos.
Vamo-nos embora, ordena o Entrudo às primas, que lhe resistem. Isto já não presta! E dispara por uma janela fora.
As Folias lá se desembaraçam como podem dos fidal­gos e meio despidas e esgadelhadas descem de escantilhão pela escadaria abaixo. Os lacaios, muito tontos, também as querem abraçar, mas elas sopraram-lhes na cara e saltam para a rua. Dão as mãos ao Entrudo, que as esperava, e põem-se a andar subtilmente. Falam baixinho. Pois sim, pois sim, respondem elas a tudo que ele lhes propõe. Iam assim, com vozes e passos disfarçados, quando dão com uma janela aberta, numa rua deserta, e lá ao fundo de uma grande sala um velhote a escabecear sobre um cartapácio.
O Entrudo faz sinal às primas. Ali param e ficam que tempos a olhar. O velho nem os pressente.
Ó tiozinho! brada-lhe finalmente o Entrudo em tom de falsete, dê uma fala à gente...
Que é, que é? tartamudeia o velhote, estremunhado.
Tem à sua porta o Entrudo e mais as Folias! Então não sabia?
Que é, que é? torna ele.
As Folias, aborrecidas, puxam pelo braço do Entrudo. Vamo-nos embora! É mouco.
Priminhas, esperem, eu sempre quero ver...
Já me não conhece, ó tiozinho?
Eu sou o Entrudo, por antonomásia também o Car­naval.
Que é, que é?
E o velhote de mão no ouvido, a fazer de corneta, punha a cabeça de banda e piscava os olhos.
O Entrudo! O Entrudo Carnaval, deve saber quem é.
Eu estudo, pois estudo... estudo sempre.
Não pisque, tiozinho, não pisque e vá para a cama que são horas! brada uma das Folias já impaciente.
Olha, olha, bradou outra, traz a lua à cabeça; como ele pode!
Mouco, vai para a cama! Ginja, deixa os livros! E tanta algazarra as Folias e o Entrudo ali fizeram, debruçados pela janela dentro, que o velho apanhou um livro do chão e fez menção de lhes arremessar com ele.
Não se arrependa, tiozinho! Mande, mande, que este é que é o tempo.
Mas o homem, desinteressado, virou-se para a sua banca e continuou a escabecear. O Entrudo e as Folias abandonaram-no. Dali seguiram para os bailes das socie­dades. Pelo caminho miavam e ladravam o melhor que podiam. O resto da noite levaram-no a dançar. As sopei­ras e os magalas deliravam com a companhia. Ninguém se fartava de gozar. Já luzia o buraco quando o Entrudo desaparece. Onde estará, onde não estará? Que seria feito dele? Não se sabia. Pelo dia adiante é que umas saloias deram fé de o ter bispado.
O grande mafarrico! Não querem lá ver? Mas aquilo é que ele tem graça! Do que ele se havia de alembrar? Foi-se à porta da ti'Ana... sempre lhe encheu aquela porta de chavelhos! e borrou para aí tudo de cal. Nem um postigo ficou sem a marca dele. É um traste! E ao depois, embrulhou-se numa coberta de chita... se o que­riam ver a fugir... Agarra, agarra! Até deitaram os cães atrás dele, com latas atadas aos rabos... era uma barulheira lá no sítio!
Pelo meio-dia torna o Entrudo à cidade. Vinha carre­gado de flores. Todos o reconhecem e cumprimentam, mas ele não dá troco a ninguém. Chega à Avenida e mete-se por entre os mirones. Põe-se a atirar flores às raparigas, por fim já as atira a torto e a direito. E confeitos, serpen­tinas, milho, tremoços... Arranja uma mão cheia de rabos e vai-os espetando nos traseiros das pessoas sérias. As Folias, que tinham surgido de qualquer banda, ajudavam-no. Entra a aparecer gente com trajes ridículos.
Ó mãe! ó mãe! diziam as crianças. O que é que aquele parece? Aquilo o que é? Tão bonito!
E diziam os velhos: isto já não é nada, antigamente, sim... eu cheguei a arranjar uma capa só de caracóis... e eu então? de feijão de carinhas... Este não é o verdadeiro Entrudo. Pois não, está muito mudado, falta-lhe azougue.
As Folias, dentro de um trem enfeitado, batiam a Avenida sem parar, para cima e para baixo, às palmadas e às risadas. E o Entrudo, como se fazia noite foi andando para as portas dos teatros. Puxavam-no daqui, puxavam-no dali, mas ele em parte nenhuma se demorava.
Não presta, não presta... era o seu estribilho.
E desaparece de novo. Onde teria ele ido parar?
Aos bairros românticos, muito velhos, com uma jane­linha iluminada aqui, outra além, perdidas pelos altos da noite.
O Entrudo Carnaval, de guitarra ao peito, fazia dim dim dom e cantava.
Ouviam-se suspiros no ar e o Entrudo então pigarrea­va, depois largava uma piada das suas.
Malcriado!
Mas ele ria, ria...
Patetinhas, julgam-me apaixonado. Não queriam mais nada?
Quando amanheceu, era uma terça-feira, o sol muito enjoado não esteve para ajudar mais à festa.
E o Entrudo, encostado às esquinas, não fazia senão carpir-se:
Tanta barraquinha de flores, tantos arcos pelas ruas, tanta janela enfeitada! tudo, tudo em minha honra, que se vai perder...
Uma chuvinha impertinente fazia de contínuo ping, ping, ping. Era uma tristeza. Atrás dela veio o vento. Os garotos impiedosos pegavam em chapadas de lama e atiravam-nas às paredes. Os festeiros debandavam. Umas gaitinhas muito chochas fé fé fé, ainda se ouviam pelos cantos. Já tudo soava a falso. Das Folias não havia mais notícia. A chuva engrossava. Montões de papelinhos recortados à tesoura entupiam os canos das ruas, ser­pentinas muito desbotadas caíam pelas paredes abaixo e corriam nos fios eléctricos.
O Entrudo, indignado, batia o pé:
Eu racho! Eu quero, eu quero...
Mas ninguém sabia o que ele ainda queria. Viram-no por mais alguns sítios, muito murcho, e por fim perderam-no. Parece que foi ter à porta da mãe, todo lambuzado de lágrimas, a gaguejar e a tremer. As irmãs puxaram-no logo para dentro, mas ele resistia-lhes.
Em que estado tu nos vens! — chamavam elas. Não tarda nada que te dê o acidente.
Lá lhe arranjaram a cama e a muito custo o deitaram nela. Ele ainda escabujava e só dizia, com a língua enta­ramelada: não tenho sono, não tenho sono, larguem-me, amanhã, amanhã...
Mas amanhã o quê, meu rico filho? perguntava-lhe a mãe.
Amanhã, amanhã.
Senhores, nunca vi o meu filho tão mal! Que é que tu sentes, anda, fala...
Tinha-o ela acabado de tapar quando entra pela porta dentro uma dama vestida de preto, a dar aos braços e aos ais.
Que é dele? Que é dele? Que é feito do meu amor? – brada.
Está ali, indica-lhe uma das irmãs.
Eu sou a Leviandade, sabem...
Sabemos, sabemos.
E sem ele não posso viver! Morro sem o meu amor. Até já me carreguei de luto.
Entretanto o Entrudo dava grandes estremeções e por fim tornou-se hirto.
Ai, que o meu filho se me vai desta! — clamava a mãe. E as irmãs: Entrudo, Entrudinho...
Foi-se juntando a vizinhança à porta; na rua a alga­zarra já era medonha.
E o Entrudo? Dizem que está mal... Pobre diabo! Também... nem parecia o mesmo. Tempos, tempos...
Os jornalistas entraram açodados, sem mesmo pedir licença.
Ele como se chamava?
Entrudo, era o Entrudo Carnaval. Toda a gente o conhecia.
Idade?
Mas ninguém atinava com a data do seu nascimento.
Tão lindo! — chorava a mãe. E tão ladino! Quando ele queria... até fazia rir as pedras... não havia outro assim. E um mãos rotas, dava tudo... Muito estróina, mas um coração! Entrudo, meu rico filhinho! Quem me diria que tu havias de morrer um dia?
Não morreu, mãe, não morreu! — grita uma das irmãs, lá abriu agora um olho.
Ele é cataléptico, na verdade.
Os jornalistas assentavam: muito generoso, grande alma, cataléptico.
E a mãe, sempre a carpir-se: fica assim um ror de tem­po, eu é que julgo que ele morre... mas ali onde o vêem tem uma vida! Tem-me é dado muitas penas.
Deixem-me em paz, mascou ainda o Entrudo, e começou-lhe a vir a saliva à boca.
Não morras, não morras! — gritavam todos à uma.
O Entrudo apalpava a roupa com as mãos trémulas.
Acendam as velas, implorou a mãe, agora é que me parece...
Uma vizinha veio com uma vela de cera e foi pô-la à cabeceira do Entrudo.
As minhas fitas...
Mãe, ele pede...
A minha mascarilha...
Dêem-lhe tudo, vão buscar tudo, filhas, é a sua última vontade.
Iam-lhe pôr a mascarilha, julgando que o satisfaziam, quando ele se senta de repente na cama e brada:
Súcia, rua, que é tempo!
E atira uma grande cuspinhada à vela. Torna a cair para trás e adormecer profundamente.

Irene Lisboa, Uma Mão Cheia de Nada Outra de Coisa Nenhuma (1955)