sábado, 30 de maio de 2009

«Escrever» por convite

Recentemente, tanto o Jornal de Letras (JL) como o Jornal de Notícias (JN) dedicaram artigos a certos autores portugueses de best sellers, oriundos sobretudo do mundo da televisão.

Jornalista do JN particularmente atento às questões literárias, Sérgio Almeida solicitou-me um depoimento sobre o assunto, do qual foram publicados excertos na edição de 24 de Maio, juntamente com testemunhos de autores e do crítico António Guerreiro. O resultado é um texto merecedor de releitura (v. Sérgio Almeida, «Escritores por convite», JN, 24-05-2009, disponível em  http://jn.sapo.pt/PaginaInicial/Cultura/Interior.aspx?content_id=1242189). Sérgio referia-se a «figuras públicas que, a convite de editoras, publicam romances que, por norma, ocupam os primeiros lugares das tabelas».

As perguntas que se seguem são, pois, do jornalista e, com a devida vénia ao seu autor, reproduzo-as, pela pertinência e não só. Reproduzo também as minhas respostas, com alguns retoques.

P – Como avalia este fenómeno? É um sinal da superficialização crescente no mundo da edição?

R – Creio que sim, uma «superficialização» em parte ditada pela razão comercial – que, nos dias que correm, tende a sobrepor-se a tudo; em parte decorrente da concentração da edição (aquela que comercialmente conta) em três ou quatro grandes grupos editoriais; e, por outra parte, motivada pela mediatização crescente da sociedade (daí o recurso às «figuras públicas» que, em boa verdade, só o são para gente que se deixa submergir no universo mediático, sobretudo o televisivo, convencida de que o mundo a isso se reduz, em geral pessoas menos letradas ou até menos alfabetizadas). No fundo, nada que não se esperasse, tendo em conta a evolução recente do mundo da edição em Portugal e noutros países desenvolvidos. Aliás cadeias como a Bertrand e certas grandes superfícies é sobretudo para isso que estão disponíveis ou preparadas. Ou seja, para aqueles livros que os editores pagam para estarem expostos, ou para figurarem nos pseudo-tops ou então nas escolhas de Natal, do Dia da Mãe, de Férias, etc.

P – Acredita que este segmento não tem nada que ver com a literatura propriamente dita?

R – Sim, acredito. Basta olhar para a história da literatura. Sem atingir as proporções e certas características que o fenómeno hoje tem, houve no passado casos que podemos considerar semelhantes ou próximos. Estão completamente esquecidos e relegados para o cemitério dos livros e da subliteratura. Tal como os de hoje, nada acrescentaram à literatura propriamente dita.

Isto não significa que não seja necessário ter um talento específico para a escrita de best sellers, ainda que rapidamente perecíveis, talento esse que merece até elogio. E, se todos o possuíssem, muitos mais se dedicariam a escrever este tipo de livros, pois proporcionam boas rendas e isso é importante para muita gente. Mas, como se vê, já não estamos a falar de literatura, mas sim de dinheiro – que é o rumo lógico de tudo isto.

P – A visibilidade de que estes livros gozam é injusta tanto para autores estreantes como para os consagrados, que não dispõem dos mesmos mecanismos de promoção?

R – Creio que não, porque hoje não há nada mais fácil do que qualquer um publicar um livro (refiro-me aos estreantes) e até crianças vêem os seus «livros» editados. Quanto aos consagrados, talvez seja um pouco injusto, mas creio que a maioria despreza as estratégias de promoção de que são objecto os best sellers – pois maculam-lhes a imagem – e quando embarcam em algo parecido é porque tem de ser e com grande sacrifício pessoal. Podem é ver-se um tanto prejudicados na calendarização dos planos editoriais. Por outro lado, alguém tem de vender muito para que pelo menos as editoras mais sérias que também publicam esses best sellers disponham de dinheiro suficiente para editar os que menos vendem.

P – Apesar de tudo, não podemos ver nesta tendência uma maior democratização na área da edição?

R – Não vejo a coisa nesses termos. Só se for no sentido que antes referi: existirem figuras que, ao venderem muito, permitem às editoras sérias dispor de capital para editar os que escoam menos e são claramente melhores, ou que são, pelo menos, escritores a sério.

As figuras públicas, por seu lado, não necessitam de democratização nenhuma, porque em geral pertencem já a um grupo social relativamente favorecido. Não lutam para editar os livros; são as editoras que lhos encomendam.

P – Julga que este fenómeno é passageiro ou irá acentuar-se?

R – Creio que irá acentuar-se. Aliás, certos industriais e comerciantes da edição vivem apenas para isso e em função disso. Para eles, é um negócio como outro qualquer. É gente que não encara a edição como produção de cultura, mas apenas como criação de mais-valias.

P – Ao venderem tantos milhares de exemplares, os títulos destas figuras públicas não estarão a criar leitores?

R – Depende do conceito de leitura de que estamos a falar. É que há a leitura literária, de fruição, e as outras – a leitura de simples entretenimento e a utilitária, por exemplo (científica, informativa, com fins pragmáticos, etc.).

Do ponto de vista da formação de leitores literários, os best sellers de que estamos a falar (e que não são Saramagos nem Lobos Antunes) pouco ou nada contribuem para a formação de tais leitores e até a prejudicam.

Se falarmos de outros tipos de leitura, menos exigente, o best seller talvez dê algum contributo para formar leitores – mas, seguramente, leitores menores, pouco críticos e incapazes de enfrentar um texto exigente, ou seja, um texto capaz de opor alguma resistência (no sentido produtivo e positivo do termo) ao leitor e capaz de o interpelar, propondo-lhe desafios à inteligência, à sensibilidade e ao seu conhecimento da língua.

 

José António Gomes

NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)  

domingo, 24 de maio de 2009

A pintura de Roberto Machado – as cores do desejo

Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra

e seu arbusto de sangue. Com ela

incendiarei a noite.

 

Herberto Helder

 

É como se dissesse, com Aragon, «l’avenir de l’homme, c’est la femme». Perseguir o feminino, os seus símbolos. Ramalhetes e árvores, flores e frutos. O feminino e seu enigma. E também o horizonte, oculto para nós, desses olhares perdidos no longe, abraçando a hora por vir – num qualquer ponto atrás e à esquerda de quem vê.

Como em Modigliani, há instantes em que a alegria é possível. Ruy Belo: «Quando as raparigas punham todo o peso da sua esmagadora juventude / no pé e o pé no pó das antigas estradas a caminho das fontes / onde a água corria pelos vagarosos caminhos desse tempo»… Há pois um lado solar nas figuras, nos cenários. Um lugar meridional onde vibram por vezes os vermelhos, amarelos e azuis. E onde o mar espreita ou se deixa adivinhar.

E há outro território, nocturno e lunar. A tábua, onde antes as tintas se (con)fundiram, converte-se em suporte. E a mão deixa-se conduzir pelas formas do acaso inscritas na madeira. Deslindando corpos, rostos, outras formas. Pintura sobre «pintura». Um quase palimpsesto.

Os corpos, sim. Aqui e além, em sua desamparada nudez. Corpos que olham, se olham, se perscrutam. Que esperam? O anjo de Chagall? Dir-se-ia que interrogam o tempo. Que buscam estes olhos-amêndoa de mulher? A alegria sonhada?

Uma voz podia perguntar: «De que cor é o desejo?» E uma outra podia responder: «Vermelho como um país recém-criado.»

 

José António Gomes

NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)