domingo, 22 de fevereiro de 2009

O Último Hotel, de Roberto Innocenti e J. Patrick Lewis

Celebração da literatura e homenagem aos poderes da imaginação, O Último Hotel (Ambar, 2002), de Roberto Innocenti e J. Patrick Lewis, é um álbum que deslumbra, em primeiro lugar, pelas suas imagens. Ilustrador premiado e internacionalmente conhecido (de O Quebra-Nozes de Hoffmann, dos Contos de Natal de Dickens, do Pinóquio de Collodi, todos eles editados pela Ambar), Innocenti constrói a atmosfera visual apropriada a este conto com laivos de narrativa policial, em que um artista em crise de imaginação se refugia num estranho hotel. Os hóspedes acabarão por evocar obras e personagens célebres – como Moby Dick de Herman Melville, A Pequena Sereia de Hans Christian Andersen, Huckleberry Finn de Mark Twain, e o inspector Maigret de Georges Simenon – ou vozes como as de Miguel de Cervantes, Emily Dickinson e Italo Calvino. Com esta «ajuda», a crise do artista dissipar-se-á.

Uma obra, em suma, que inevitavelmente convoca conceitos como os de intertextualidade e metatextualidade e que constitui um belo tributo à leitura literária e aos seus sortilégios.

A tradução de Isabel Ramalhete (que em 2001 assinara já uma bela versão de Alice no País das Maravilhas) merece destaque, até por se tratar de um texto de difícil transposição para português.  

José António Gomes

NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Um soneto de Marica Campo

Marica Campo nasceu em 1948, no Val do Mao, no concelho de Incio, a sul de Lugo. É professora e autora de narrativas, peças de teatro, poesia (Tras as Portas do Rostro. A Corunha: Bahía Edicións, 1992; Pediche Luz Prestada. A Corunha: Espiral Maior, 2001, entre outros) e de um belo livro de poemas para crianças Abracadabras (A Corunha: Ediciós do Castro, 2006).

Sobre a autora, consultar: http://bvg.udc.es/ficha_autor.jsp?id=MarCampo.

 

 

Soneto 17 de Pedinche Luz Prestada

 

 

Tu dizias «viver é andar nos portos,

cantar com os marinheiros desvairados,

beber com o rum da noite tristes fados

de amores que não há ou foram tortos».

 

Eu dizia «viver é carr’gar mortos,

fardos que ferem sempre e são pesados,

encher-se dos adeuses aguardados

a cortar rosas murchas pelos hortos».

 

Agora eu bebo rum nas altas horas

a cantar esse fado de tristura

que põe bagas de lume na garganta.

 

Tu não sei se és feliz nem onde moras,

se a vida te conforta ou se te é dura,

se te seduz a morte que te espanta.

 

 

Marica Campo. Pediche Luz Prestada.

A Corunha: Espiral Maior, 2001.

Tradução de José António Gomes.

Um soneto de Pablo Neruda

Oh amor, oh raio louco e ameaça purpúrea,

me visitas e sobes por tua viçosa escada

o castelo que o tempo coroou de neblinas,

as pálidas paredes do coração fechado.

 

Ninguém saberá que foi a delicadeza

construindo cristais duros como cidades

e que o sangue abria túneis inditosos

sem que sua monarquia derrubasse o inverno.

 

Por isso, amor, tua boca, teu pé, tua luz, tuas pernas,

foram o património da vida, os dons

sagrados da chuva, da natureza

 

que recebe e levanta a gravidez do grão,

a tempestade secreta do vinho nas cantinas,

a chama do cereal no solo.

 

 

Pablo Neruda

Cem Sonetos de Amor.

Porto Alegre – RS: L&PM Editores, 1979.

Tradução de Carlos Nejar

domingo, 8 de fevereiro de 2009

As «palavras velhas», segundo Baptista-Bastos

«(…) Desaprendeu-se (se é que, vez alguma, foi seriamente aprendido) o vocabulário da língua. Lê-se o por aí publicado e a pobreza lexical chega a ser confrangedora. Não se trata de simplicidade; antes, desconhecimento, incultura, ausência de estudo. «Foge de palavras velhas; mas não receies o uso de palavras antigas.» Recomendava Garrett. Palavras velhas, travestidas de «modernidade», são, por exemplo: expectável, incontornável, enfatizar, implementar, recorrente, elencar, factível, plafonamento, exequível, checar, fracturante, imperdível, abrangente, atempadamente, alavancar, empolamento – e há mais.

Reconheço o meu verdete por certas palavras e expressões. Não é embirração de caturra, nem rabugice de um recta-pronúncia. Será o gosto da palavra, a alegria de com elas trabalhar há longuíssimos anos, a circunstância de ser um leitor com fôlego, o facto de ter tido professores como o gramático e linguista Emílio Menezes, goês paciente, sábio e afável; e de haver frequentado alguns dos maiores escritores do século passado, para os quais o acto de escrever representava moral em acção. Lembro, com emoção e orgulho, Aquilino, José Gomes Ferreira, Miguéis, Sena, Mário Dionísio, Carlos de Oliveira, Manuel da Fonseca, Abelaira.»

Baptista-Bastos, «Crónica das palavras», Diário de Notícias, 4-2-2009 (excerto; itálicos nossos)