domingo, 31 de outubro de 2021

VIALE MOUTINHO: DADO O ADIANTADO DA HORA

José Viale Moutinho (Funchal, 1945) terá este ano um novo livro publicado em Itália: In Causa Propria (Em causa própria), edição bilingue, traduzida pelo poeta Emilio Coco. Raffaelli Editore, de Rimini, publica. 

O texto português integra o volume Os Cimentos da Noite 1975-2018 (Afrontamento, 2020), que recebeu o Prémio D. Dinis, da Fundação Casa de Mateus, de Vila Real, o qual foi entregue em 31 de Outubro de 2021.

Como leio a poesia de Viale Moutinho, eu que a não conheço suficientemente bem, mas reconheço, ao deambular por ela, detendo-me aqui e ali, uma poética de indesmentível qualidade de escrita e de singularidade inegável? Pois leio-a como um discurso em que o fundo dramático jamais deixa escapar a possibilidade da ironia, e em que a tensa meditação da voz que escutamos balança entre a sua própria existência-e-condição-no-tempo e a dos outros. Detecta-se um sentido emotivo eficazmente contido pela inteligência das estratégias verbais, designadamente a sintaxe, pelo modo hábil de usar/organizar a versificação (incluindo aqui o enjambement) e por pontuais desvios de atenção para os cenários em que o sujeito surge inscrito. Uma apreciação brevíssima, esta, que se centra em especial nos últimos livros. 

E é de uma dessas secções de Os Cimentos da Noite (“Dado o Adiantado da Hora – inéditos e dispersos”, pp. 342-343) que extraio este poema com algo de tempestuoso, mas que tanto me agrada. Recordo que a vírgula é a pontuação por excelência da poética de Viale Moutinho e que é com vírgula que o poema remata (remata?).  

 

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Todas as noites percorro a casa

em busca do quarto secreto

onde a tempestade guarda

os seus ovos de reserva,

 

ou o assobiar dos ventos, 

vejo como cai a chuva

grossa e se envolve a terra

nos seus mais densos rios,

 

ouço as palavras de meu 

pai, são sábias, loucas, belas, 

levando-me para onde serei

um dia um corredor de fundo,

 

a casa, às escuras, permite-me

ver os despojos do dia morto,

abro as portas dos quartos e nada,

nunca encontrei esse quarto

 

 

João Pedro Mésseder

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

A escrita de Domingos Lobo e Origens e Derivações do Neo-realismo Literário Português


Domingos Lobo (n. 1946) é natural de Nagozela, Santa Comba Dão. Em 1982 recebeu o Prémio de Melhor Encenador, do Festival de Teatro de Lisboa, distinção que se liga a uma das forças motrizes da sua vida: a actividade teatral, quer como encenador e actor quer como dramaturgo, adaptador de textos para teatro, crítico teatral e de cinema e membro de colectivos de jograis.

 

Director do jornal A Voz do Operário, Domingos Lobo é actualmente um dos poucos colaboradores da imprensa que se dedicam com assinalável regularidade à divulgação crítica, nas páginas do semanário Avante!, no quinzenário As Artes entre as Letras, na Vértice, na Gazeta Literária e noutros periódicos, tendo reunido, por exemplo no volume Palavras que Respiram – 30 olhares sobre a literatura portuguesa (Página a Página, 2016), uma selecção dos seus textos de crítica literária publicados nos últimos anos. 

 

No campo da história e da crítica literárias, Domingos Lobo publicou ainda, recentemente, com a chancela da Página a Página e o apoio da Associação Promotora do Museu do Neo-Realismo (da qual é indissociável o nome do Presidente da Direcção, António Mota Redol), a obra fundamental Origens e Derivações do Neo-realismo Literário Português – Percursos de Leitura (2021). Neste volume, reúnem-se textos vários, desde os que abordam a influência do marxismo no Neo-realismo português, até aos artigos sobre Redol, Soeiro Pereira Gomes, Mário Dionísio, Cochofel, Joaquim Namorado, Romeu Correia, Orlando da Costa, Manuel da Fonseca, Egito Gonçalves, Cardoso Pires e muitos outros, incluindo precursores do Neo-realismo como Aquilino, ou alguns dos seus críticos principais (Óscar Lopes) a par daqueles em cujas criações literárias se projecta ainda a luz do Neo-realismo (Sttau Monteiro, Ary, Fernando Miguel Bernardes, entre outros). 

 

Não me lembro de nenhuma recolha de artigos em volume que reúna um conjunto tão significativo e diverso (isto é, abrangendo tantos escritores e escritoras) de análises e leituras sobre esse movimento incontornável da literatura portuguesa do século XX. Por isso e por outros motivos, é esta uma obra fundamental para quem queria conhecer em maior profundidade as poéticas neo-realistas e os seus protagonistas.

 

Domingos Lobo é, além do que fica dito, um autor de ficções e de textos para teatro. No primeiro caso (ficcionalizando amiúde a partir do que foi a sua vivência angolana) editou Os Navios Negreiros Não Sobem o Cuando (1993, Prémio de Ficção Cidade de Torres Vedras), Pés Nus na Água Fria (1997), As Máscaras Sobre o Fogo (2000), As Lágrimas dos Vivos (2005), Território Inimigo (2009) e Largo da Mutamba (2015, Prémio Literário Alves Redol 2013).

No domínio teatral, é autor de Cenas de Um Terramoto (2010), Não Deixes que a Noite se Apague (2009, Prémio Nacional de Teatro Bernardo Santareno) e A Fome dos Corvos e Outros Pretextos Teatrais (2020). 

 

Lobo possui ainda uma obra vasta no campo da criação poética: Voos de Pássaro Cego (1998); As Mãos nos Labirintos (2003); Para Guardar o Fogo (2010, Prémio Literário Cidade de Almada 2009); Lisboa, Modos de Habitar (2014); A Pele das Sombras (2011); Os Dias Desarmados (2018); O Rosto em Ruínas (2020); e Quotidianos e Outras Noites (2020). 

 

Em síntese, uma obra ampla e com múltiplas facetas, que abarca os três modos literários fundamentais e que importa conhecer e reconhecer. 

 

José António Gomes

 

IEL-C – Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais da Escola Superior de Educação do Politécnico do Porto

 

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

NERVO N.º 12 – REVISTA DE POESIA A LER E A SEGUIR

Aí está o número 12, Setembro-Dezembro de 2021, da Nervo, a bela revista de poesia dirigida pela poetisa Maria F. Roldão, que principia com o editorial “Desobedecer ao cânone: a coragem da edição”. Entre outras coisas refere esses dois ‘heróicos’ editores/escritores que foram Vítor Silva Tavares (& etc.) e Luís Pacheco, o inesquecível autor de “Comunidade” e doutras pérolas (oh, como me lembro bem de, nos idos de 75 ou 76, o ver a tentar vender pedras da calçada no café Piolho, do Porto, estava eu nos alvores da juventude e a revolução na rua…). Se o título do texto de Maria F. Roldão remete para a pretensa “desobediência” a cânones destes senhores já é coisa mais discutível, porque na verdade todos os grandes autores que editaram já eram praticamente canónicos quando foram por eles publicados (Cesariny, Herberto, Natália e muitos outros). E se não eram, em breve o vieram a ser. Além do mais, a & etc. editou inúmeros clássicos do século XX e não só. Verdade também que ambos deram a conhecer autores novos e não canónicos, em especial Vítor Silva Tavares. No que talvez tenham sido menos “canónicos”, mais irreverentes foi nos modos de editar e distribuir, e nas belas aventuras editoriais que nos legaram (e louvados sejam por isso, ou também por isso). Isto mesmo destaca, e bem, Maria F. Roldão.


A capa de Cristina Troufa parece-me extremamente sugestiva, assim como os desenhos da mesma artista que ilustram esta Nervo, que continua a trazer-nos diversidade de latitudes linguístico-culturais: temos poetas portugueses e poetas traduzidos: Amparo Parra (Cuba), vertida por Zetho Cunha Gonçalves, menos interessante talvez que Hans Wap (Holanda), traduzido por Fernando Venâncio; e Ronaldo Cagiano, poeta brasileiro radicado em Portugal. São todos eles poetas que reclamam leitura, mas diferentes. Cagiano termina a sua série com esta graciosa “Dialética”: “Foi nos outlets do afeto / que ele encontrou um amor / sem defeitos.” Os poemas de Wap, que é também artista plástico, atraíram em especial a minha atenção de leitor – e a versão de Venâncio (a mim que não sei Neerlandês mas leio um pouquinho em Alemão) parece-me conseguida e convincente enquanto poema-em-português.


Acho muito bons os poemas de Maria Azenha (não obstante o tom depressivo mas cortante e a questão da morte que os assombram) – poetisa que integra, nesta “Nervo”, um leque de vozes já conhecidas e mais antigas da poesia portuguesa. Dele fazem parte Isabel de Sá, Nuno Dempster, Nunes da Rocha ou José Luís Borges de Almeida que exibem registos distintivos, o terceiro no poema em prosa. Nos mais jovens (chamemos-lhes assim, por comodidade de expressão), encontramos Amândio Reis, Cláudia Capela, João Cardoso Vilhena, João Silveira – todos eles poetas merecedores de leitura atenta (guardo para já uma certa vibração – incluindo um toque de erotismo – e um registo muito pessoal que me captaram o ouvido e não só em Cláudia Capela). Denominador comum a quase todas estas poéticas: o carácter egóico dos discursos e, em vários casos, uma linha de referencialidade a remeter para quotidianos-de-agora, mais ou menos depressivos, de vivências e coloração diversas, aqui e acolá com aspectos de ironia e humor subtis. Quanto a Amândio Reis, e como é sabido, foi considerado por António Guerreiro (a cujas opiniões importa sempre estarmos atentos) uma das revelações da literatura contemporânea, figurando aqui com um texto de difícil catalogação, entre o poema e a narrativa (a reler). Ah, e retenho, entre muitas outras passagens, estes versos na ‘mouche’ de João Cardoso Vilhena: “Demoro anos a perceber um poema / Ler é uma actividade alucinatória / O sentido chega como uma visão”.


Muito bem-vindo também é o ensaio final sobre Teixeira de Pascoaes, de Sofia A. Carvalho, estudante de doutoramento a ultimar tese sobre o poeta amarantino. Em boa hora. Intitula-se o texto “Teixeira de Pascoaes – ‘O Pobre Tolo’ e as ‘três pessoas dum poeta’ ”.

Caso para dizer: no meio dos dias agressivos e regressivos que vivemos, a Nervo é um oásis de cultura e de poesia, um bocadinho ao lado das capelas do costume (sem exagerar, porque já lá temos visto também um ou outro capelão). E vale mesmo a pena ser lida, ser seguida e divulgada.

 

João Pedro Mésseder