sábado, 16 de janeiro de 2010

Individualidade e universalidade: notas para uma leitura de Mau Tempo no Canal

Romance dominado, simultaneamente, pela individualidade da pessoa humana e pelo contexto insular em que se integra, Mau Tempo no Canal, de Vitorino Nemésio, frequentemente transborda as fronteiras do pessoal e do regional, já para não dizer do temporal, tratando, afinal, a alma humana, realidades universais e valores intemporais. O romance atribui um relevo muito especial ao Universo feminino, à volta do qual se polariza parte substancial da intriga, com especial destaque para a figura de Margarida Dulmo. É o seu percurso que o narrador acompanha com particular atenção, são os seus sentimentos que analisa com pormenor, são as suas relações afectivas e as opções feitas que são descritas e comentadas com assiduidade. Além disso, a opção pelo destaque ao feminino, além do simbolismo que encerra, permite colocar em cena questões ligadas à condição da mulher, às diferenças sociais existentes, aos condicionalismos que lhe são impostos, frutos de convenções sociais extremamente apertadas e castradoras.

Neste sentido, a personagem Margarida revela simultaneamente (o que atesta a sua grandeza do ponto de vista moral e ético) uma atitude de independência e de revolta em relação a tudo o que lhe é imposto contra a sua vontade (educação, hábitos, comportamentos, posturas, linguagem, etc.), agindo sobretudo de acordo com a sua maneira de ser e adquirindo fama de anti-convencional, ao mesmo tempo que, com o tempo, acabará por aceitar algumas das imposições contra as quais lutara, rendendo-se, ainda que parcialmente, e submetendo-se a rituais e a normas, como é o caso do casamento necessário com André.

Mas Margarida não é a única mulher que aparece no romance. A visão do feminino perpassa diferentes estratos sociais, desde os mais elevados aos mais humildes, sendo a imagem que é construída pelo narrador extremamente abonatória, mesmo quando trata de mulheres humildes ou de algumas cujo comportamento não é o mais abonatório. A questão do pecado, por exemplo, é referida de forma insistente, nomeadamente na questão do adultério feminino e na vivência dos problemas do casamento, como é o caso da infidelidade masculina ou os maus tratos e o abandono. As relações homem/mulher (dentro e fora do casamento) são alvo de uma atenção particular e são dados exemplos de situações claramente diferenciadas, com vista à obtenção de um retrato, tão completo quanto possível, da sociedade açoriana.

O amor que, numa primeira leitura, parece ser a mola impulsionadora da narrativa, acaba por, à medida que o romance avança, revelar mais fraquezas do que virtudes. Nenhuma das personagens centrais do romance se realiza através da concretização amorosa plena. Neste sentido, parece lícito afirmar que no texto pululam relações complicadas e imperfeitas. Dentro das ligações de tipo afectivo, convém não esquecer as relações extraconjugais e a forma como são julgadas quer quando são praticadas por homens quer quando o são por mulheres (ligada a este aspecto temos a presença de filhos fora do casamento) e as alusões à homossexualidade do tio de João Garcia, alvo de comentários críticos e que salientam o seu carácter vicioso (alvo de castigo divino, por acção do fogo redentor) e doentio.

A questão da insularidade é outra das características que são apontadas a propósito do romance de Nemésio com mais insistência. É, contudo, redutor efectuar uma leitura da obra exclusivamente à luz da presença dos elementos insulares, por muito fortes que sejam e condicionem a leitura de Mau Tempo no Canal. A presença de elementos fortemente contextualizados no âmbito de uma cultura particular de tipo regional não limita o romance nem particulariza a interpretação que dele se pode realizar porque, simultaneamente, se estabelecem laços com ideias perfeitamente universais e até intemporais, como é o caso da condição feminina ou das questões afectivas. De qualquer forma, existe claramente uma preocupação de reconstituição de um conjunto de práticas que caracterizam uma vivência específica da sociedade açoriana e que aproximam a narrativa de um documento de valor sociológico, histórico e até cultural, pelo relevo que lhes é atribuído. É o caso da pesca/caça da baleia; são as personagens populares e a recriação fiel das suas características (nomeadamente do seu falar típico); são os passeios pelas ilhas; é a paisagem avassaladora e o peso que revela sobre os Homens; é também o clima e as suas particularidades; enfim, é a reconstituição de todo um conjunto de elementos que pertencem ao passado da ilha e que fazem deste romance também uma leitura da História e das estórias dos Açores. Esta questão da insularidade ultrapassa, no entanto, a mera localização espacial do romance. Mais do que cenário, o ambiente das ilhas açorianas interfere activamente com as personagens, alterando-lhes a forma de pensar e de agir, com os acontecimentos e o seu desenrolar, e até o com ritmo do texto, pautado pelos nevoeiros, as tempestades e as manifestações vulcânicas.

Ana Margarida Ramos

(Universidade de Aveiro; Membro associado do NELA Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)