sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

José Soares Martins, poeta de ruínas e bastiões

José Soares Martins é um poeta que importa ler. Um poeta que cria desde muito jovem, mas arreliadoramente inédito, tão inédito que apenas se conhecem os quatro livros breves que editou, três em co-autoria (Setembro, em 1984, na Plenilúnio; Ménage à Trois, em 2011, na Cordão de Leitura; e Bicho da Seda, em 2020, na Poética Editora) e um quarto, de sua exclusiva responsabilidade: Ruínas e Bastiões, publicado pela Chiado em 2021. Conhecem-se-lhe, além disso, não poucos poemas dispersos em várias publicações periódicas e colectâneas de poesia, vindas a lume desde finais da década de setenta do século XX. Mas José Soares Martins é, noutra vertente, um poeta das letras, na esteira de Dylan, Keith Reid, Carlos Tê e tantos outros cultores da lírica de qualidade em moldura musical: escreveu letras para as bandas Jafumega (dois álbuns e um single, com o popular tema “Ribeira”), João C. Bom e Johnny Johnny. De assinalar ainda a presença no Festival da Canção de 1986 com uma letra de canção defendida pela voz de Gabriela Schaaf. 

Enquanto guionista e em colaboração autoral, participou na sitcom “Clube Paraíso”, produzida e realizada pela RTP/Porto. Ainda em co-autoria, escreveu um tema do musical de Carlos Tê “Amor solúvel”, tendo participado com Carlos Tê e João Monge na canção “Mágoa das pedras”. Saíram da sua pena crónicas e folhetins publicados nos jornais Expresso, na revista do Jornal de Notícias, no Comércio do Porto e n’O Primeiro de Janeiro

Enquanto psicólogo, investigador doutorado e professor universitário com especialização em criminologia, publicou e participou em diversos livros, dicionários temáticos e revistas científicas. 

Dos seus folhetins narrativos (designadamente os saídos no Comércio do Porto) destacam-se elementos detectivescos e cómicos, burlescos, muito enraizados no conhecimento duma certa realidade portuense pequeno-burguesa e/ou de meios populares, com seus sociolectos, seus pequenos mitos e fantasias, suas fixações futebolísticas. 

Começando por aparecer em revistas portuenses algo marginais dos anos setenta, como AvatarQuebra-NozPé de Cabra, a poesia de Soares Martins, caracteriza-se em geral por certo fôlego discursivo, por um registo amiúde elegíaco e de tom exclamativo, e por uma musicalidade e ritmo singulares, girando em torno de um conjunto de núcleos temáticos: o enamoramento, a paixão e a separação; o topos do tempus fugit; a memória de lugares míticos percorridos efectiva ou imaginariamente pelo eu; a infância e a adolescência; a sensação de ruína de um certo mundo e o desencanto provocado pelo “falhanço de todas as revoluções”, na óptica de um sujeito lírico que, hiperbolicamente, se auto-representa quase como uma espécie de “viajante” do século XX. Trata-se também duma poética culta e povoada de alusões culturais (oriundas da literatura, da música, das artes visuais…), num frequente vaivém presente/passado no qual ecoam, por vezes, vozes referenciais: ora de românticos ingleses e de alguns portugueses, ora de um Cesário Verde, um Pascoaes, um Pessoa, a que se juntam ressonâncias imagistas e sinais de leituras juvenis de poetas da Beat Generation norte-americana, como Ferlinghetti, Ginsberg e outros.

Por ocasião da saída de Ruínas e Bastiões, o seu quarto título de poesia, A Inocência Descompensada foi entrevistar José Soares Martins (de quem podem ser lidos poemas recentes em Sobre o Lado Esquerdo – Poesia & Textos Afins). 

A Inocência Descompensada (AID) – És um poeta e homem do Porto, mas a tua infância está ligada também a uma certa meridionalidade (Lisboa, Almada...). Que reflexos na experiência de vida e na escrita?


José Soares Martins – De facto sou um poeta atlântico, habituado às brumas e aos nevoeiros. Nasci no casco histórico do Porto. Numa velha casa da Rua dos Ingleses, propriedade da minha Bisavó, que era enfermeira parteira e tinha uma clínica, em que fazia os seus partos e acompanhava as suas pacientes. Chegou a comprar um prédio em frente, onde hoje se encontra um pub tipo irlandês. No entanto, por motivos profissionais do meu pai, fui com um ano para Lisboa e daí para Almada, onde vivi até aos meus nove anos e meio, tendo descoberto a minha existência banhado pela luz do sul  e pelo sotaque alfacinha. O primeiro rio que conheci foi o Tejo, que atravessava todas as segundas feiras, quando ia a  Lisboa acompanhar o meu pai, que na volta me comprava Dinky Toys num bazar de Barros Queiroz e passarinhos na rua do Arsenal. As idas ao Coliseu e ao Chiado com a minha mãe e os lanches na confeitaria Garrett, as amizades que travei na vizinhança e no Colégio Frei Luis de Sousa, em Almada, foram determinantes para a minha costela do sul e lisboeta. Penso que a vinda para o Porto não me conseguiu moldar por completo. Sou alguém de dois locais, de duas geografias e de duas luminosidades. Vivo entre o Sol e as Brumas. Por isso sou simultaneamente um poeta lunar e solar. Gosto do Tejo como gosto do Douro. Gosto do mar da Caparica ou de Sesimbra como gosto do mar da Foz do Douro ou de Leça, ou de Caminha.

 

AID – Despertas cedo para a leitura? Como? Lendo o quê? 

JSM – Desde que me recordo de mim, que sei ler. Muito cedo tomei contacto com os livros. Os meus pais levavam-me à Feira do Livro e compravam-me  histórias infantis em pano, não em papel, para eu não as rasgar. Li os livros da Majora, a colecção Tonecas toda, bem como a Manecas. Já com cinco ou seis anos devorava às quintas feiras o Mundo de Aventuras e o Falcão Gigante, bem como o Capitão Trovão. Descobri cedo os heróis do oeste, Bufalo Bill, Kit Carson, Daniel Boone, David Crockett, Matt Dillon, Buck Rogers, Kansas Kid, Red Ryder entre muitos outros, a par do Tarzan, Jeff Jackson  ou do Mascarilha e o seu amigo Índio, o Tonto. Mais tarde foi a influência dos super-heróis sobretudo o Batman. Da banda desenhada passei aos Westerns da Agência Portuguesa de Revistas e da editorial Íbis, para desaguar nos policiais da Vampiro, da Xis, da Enigma, da Máscara, da Escaravelho de Ouro e da Rififi. Poirot, Sherlock Holmes, Perry Mason, Rouletabile, Philip Marlowe ou Sam Spade despertaram em mim o desejo de vir a escrever novelas policiais. Não descurar o papel de Júlio Verne, de Alexandre Dumas, pai, de Emilio Salgari. Mas acima de tudo a maior influência recebi-a da minha avó materna, natural de Macedo e de origem judia, que me contava histórias tradicionais portuguesas comigo sentado ao seu colo. E do meu avô materno que me fascinou com as suas histórias de África passadas durante a Primeira Guerra de má lembrança no norte de Moçambique, em Cabo Delgado. Só mais tarde descobri Walter Scott, Daniel Defoe, Charles Dickens, Eça, Camilo, Júlio Dinis, e os poetas Camões, Cesário, Pascoaes, Junqueiro, Pessoa, Bocage (que só conhecia das anedotas muito populares na minha infância) ou Soares de Passos. Depois foi o que se sabe, e que não cabe no escopo desta entrevista. 

 

AID – Quais os períodos das grandes experiências de vida e revelações? Em que lugares? 

JSM – O período das grandes descobertas opera-se com alguns encontros fundamentais. Com o Alonso, colega de longa data do [Liceu] Alexandre [Herculano] e que me abriu as portas para a literatura russa, sobretudo Gogol, Turgenev,Tchekhov, Lermontov. E o Mondego, que me fez descobrir filósofos como o Heidegger, o Kierkegaard, ou o Schoppenhauer, ou o Nietzsche. O Zé Tó [José António Gomes] com quem partilhei descobertas na música pop, rock, folk, no jazz, no cinema, sobretudo o italiano, e a literatura lida então, sobretudo Rimbaud, Baudelaire, Poe, os românticos ingleses, os imagistas e os Beat. Foi um período de aprendizagens múltiplas que coincidiu com os últimos anos da “primavera marcelista” e o 25 de Abril, marcados por intervenção política e pelas manifestações contra o regime, começadas na crise académica de 1969. Líamos Marx, Bakunine, Reich, Marcuse, Debord, Baudrillard, Sartre e tutti quanti. A pintura foi também uma descoberta fundamental, bem como alguns grandes romancistas então em voga: Celine, Steinbeck, Hemingway, Kerouac, Huxley, García Marquez, Jorge Luis Borges, Proust,  Kafka, Beckett, e os pintores, os impressionistas, os expressionistas e os surrealistas e mesmo a pop arte. 

 

AID – Há um certo novi-romantismo pós-moderno, não raro irónico, nos teus poemas. Concordas? Mescla-se com um desencanto em relação ao presente e com uma lamentação do que já foi e não volta a ser, até porque ligado ao tempo das grandes esperanças e de todos os sonhos. Melancolia? Descrença? Idade?

JSM – Penso que é um pouco de tudo. A idade, em que a ética da convicção, como diriam Max Weber ou Kant, cede lugar à ética da responsabilidade. Ou seja, à ideia de que é preciso ceder para se conquistar coisas. De facto, a psicologia social das minorias activas mostra-nos que as mudanças sociais ficam comprometidas com posições radicais. A história da Europa está cheia de boas ideias que se transformaram em pesadelos. Basta analisarmos a história do IRA, da Acção Directa, das Brigadas Vermelhas ou da Fração do Exército Vermelho ou da ETA, para já não falarmos das grandes Revoluções de 89 ou 17.  Depois, não basta a radicalidade, as vanguardas, sejam de que tipo forem, têm de estar em consonância com o ZeitGeist hegeliano. Ou seja, com o Espírito do Tempo. As sociedades precisam de estar maduras. Tem de existir um sentimento de fim de ciclo, de que algo está mal, uma certa estranheza de que falava o Freud e que o Kafka exibiu tão bem nos seus magníficos romances. A Idade e uma certa sabedoria, a que eu chamaria a patine do tempo. Como tu dizes e bem, há ainda o desencanto. O mundo não é um sítio seguro para ninguém. Às alegrias do 25 de Abril ou do Maio de 68 sucedeu o regresso à normalidade. Todas as revoluções desembocam no quotidiano sem história. O mesmo acontece com as paixões. É impossível viver-se infinitamente uma paixão. Daríamos em doidos!  Como diria o Vinicius, que o amor seja eterno enquanto dure.

Nas minhas influências existe a  presença de um pós-romantismo difuso, a busca do passado, do que já não existe mais. Daí a melancolia, a ideia de um "regresso" a locais e tempos onde fui de alguma forma feliz. A linguagem reflecte essas influências. 

Por fim o sentimento ou sabedoria de quem já se encontra no outono da vida e olha para trás  e vê que a vida passa rápida e que chegamos a "velhos sem dar por isso" como dizia a minha avó materna.  A isto tudo soma-se o estado do mundo. O tema da mudança e do desconcerto. O sentir que este mundo já é dos novos e não nosso.

A leitura dos românticos ingleses, sobretudo o Coleridge, com quem me identifico como poeta e como pessoa (na adolescência, cheguei a pensar que poderia ser uma reincarnação dele...), o Blake, o Shelley e o Keats tal como os alemães, Büchner, Novalis e Hölderlin ou Goethe, marcaram-me muito e abriram-me as portas para um certo novi-romantismo como tu muito bem  detectas, perfeitamente integrado na minha congénita melancolia, herdada da neurose da minha mãe e das minhas tias-avós irmãs do meu avô materno, algo esotéricas, amantes do ocultismo, de mesas pé-de-galo, de gatos e de cartas do destino e da minha avó materna médium, e da minha avó paterna, leitora da Kabala ou do meu pai com as suas capacidades de prever o futuro... Se em Almada já era acometido de momentos mais ou menos longos de melancolia, agravados quando a minha mãe esteve a morrer do parto da minha irmã, esses estados de espírito, com pânicos e insónias ensombraram-me a puberdade e a adolescência, a que o catolicismo não foi indiferente. Foi um longo período em que fiquei dependente dos psiquiatras e de valium, que ia roubar todas as noites ao cofre do meu avô. Ora isto coincidiu com as minhas primeiras paixões e o despertar da puberdade ou da primavera, para citar Frank Wedekind, e da poesia, quando li os poetas da Fénix Renascida, sobretudo Jerónimo Baía. A descoberta, como já referi, dos românticos foi decisiva para mim e continuou com a literatura gótica do Poe, com o simbolismo do Baudelaire, e do Rimbaud ou Pessanha. A Beat foi apenas o sucedâneo inevitável, tal como o surrealismo e os pré-rafaelitas na pintura. Ou o Bergman no cinema, que foi fundamental para mim, tal como o Resnais ou o Visconti e Fellini. Foi o tempo das viagens, das namoradinhas de praia, e das primeiras bandas de música na cave do meu tio Manecas que sempre me entendeu ou não fosse um irmão gémeo da minha neurose existencial.

 

AID – A tonalidade melancólica de alguns textos teus, no plano expressivo, vai beber a diferentes tradições, que aliás o poema assume nas suas múltiplas alusões literárias, culturais. Queres falar um pouco disso? E qual o lugar do Porto, cidade literária por excelência, nesse universo?

JSM – O Porto tornou-se o lugar geométrico das minhas deambulações diurnas e nocturnas. Com os seus nevoeiros e a sua chuva outonal, os seus granitos, os seus sinos, as suas igrejas e torres e o casco velho onde se situavam as casas dos meus avós e tios-avós, a Igreja de São Nicolau, com o velho turíbulo oferecido pela minha bisavó e onde os meus avós e pais e irmã se casaram, e onde eu fui baptizado. O Porto, a minha cidade, foi desde sempre o meu aleph borgeano. O centro e o umbigo do mundo. O cenário da minha poesia e de alguns contos fantásticos que escrevi. Já que as histórias de fantasmas, e de poltergeistsacompanharam toda a minha infância e adolescência, fizeram parte do meu quotidiano familiar. Daí a minha forte ligação a esta cidade e a este rio. Descobri mais tarde em Bruges, local do filme Malpertuis com o Orson Wells e a Susan Hampshire, algo parecido com a atmosfera londrina do Porto. Por isso a minha atracção pelo detective de Baker Street, pelo Jack the Ripper, que o  esotérico de Blake, Lovecraft e Pessoa mais aprofundaram. Já na faculdade e pouco depois da morte do meu avô materno, dei por mim num grupo de ocultistas de que faziam parte uma colega minha, a Guilhermina, o António Telmo e o Castro Ferreira, e dei por mim a ler Rudolf Steiner, Gurdjieff, Helena Blavatski, António Quadros e outros. Quanto a escritores que cantaram o Porto, tirando Soares de Passos um portuense ilustre e grande poeta, tivemos o Garrett, o Nobre, o Júlio Dinis, o Raul Brandão e o Camilo a que se juntaram as notáveis Sophia e Agustina Bessa-Luis. Claro que temos o Echevarría, o Guimarães, o Leonardo Coimbra, o Óscar Lopes, o Sena e o Agostinho da Silva. E mais próximos de nós o Eugénio, o Resende, o Pina… Mas eu senti sempre que nunca houve um poeta do Porto, como houve de Lisboa, por exemplo (Cesário, Gomes Leal ou Pessoa)...


Da esquerda para a direita: Miguel Cameira, José António Gomes, José Soares Martins, José Pinto Leite, António Torres. Café Piolho (Âncora d'Ouro), 1977.

AID – A ficção narrativa, e não apenas a poesia, também te atraiu. E logo desde a juventude. Que experiências te ocorre evocar neste domínio?

JSM – A narrativa sempre foi a minha grande paixão, herdada da minha avó paterna e do meu avô materno. No entanto, tirando umas tentativas de romance nunca acabadas, não passei de short stories, com influências diversas, desde o Lovercaft, passando pelo Gogol, pelo Bulgakov, e mais tarde pelo Raymond Carver. Claro que os diálogos eram inspirados no Hemingway, a estrutura no Faulkner, e a deriva psicológica na Virginia Woolf. Mas ainda estão por escrever os contos que gostaria de concretizar e que estão na minha cabeça há anos. E não sei se os escreverei um dia, mas tenho pena. Muita pena. 

 

AID – Outro campo da tua criação tem a ver com o texto dramático. Refiro-me ao guionismo...

JSM – Sim o guionismo foi a forma que encontrei para substituir o teatro, quer como dramaturgo, quer como actor. Aliás, houve sempre três ou quatro profissões que me atraíram: escritor, actor, historiador, e professor/investigador. Foi nesta última que mais apostei e consegui fazer alguma coisa de importante no âmbito das ciências sociais, psicologia social, sociologia e criminologia. Mas o guionismo foi uma boa experiência adquirida com o Afonso Grisolli, realizador brasileiro da Globo e autor d’”O Sítio do Picapau Amarelo”, da “Malu Mulher” e da “Teresa Baptista Cansada da Guerra” que foi um mestre para mim. Aprendi muito nesses dois anos de escrita televisiva com a companhia do Tê e do Álvaro Magalhães, tendo-me ocorrido a ideia peregrina de me dedicar à escrita de guiões para a televisão e para o cinema. Mas aquele ainda não era o tempo para essas aventuras. Quase não havia produção portuguesa e a que havia era em Lisboa. O Tê ainda escreveu um guião para um filme do Fernando Ávila, rodado no Porto, “Os Corações Periféricos”, onde eu fiz uma perninha como actor.

 

AID – Também foste desafiado para a escrita de letras de canções. Que memórias guardas dessa actividade? Que influências? E, já agora, que pensas da atribuição há anos do Nobel a Dylan?

Como sabes, o Carlos Tê foi o grande responsável pelo rock cantado em português. Até aí, havia tentativas tímidas e algo descoloridas, porque pouco urbanas, de um movimento idêntico ao que se tinha passado na Itália com os Area, por exemplo. Com o “Ar de Rock” e com o “Chico Fininho”, tudo mudou para surpresa do próprio Carlos, que havia escrito e composto o “Chico Fininho” para demonstrar o ridículo que era cantar em português temas urbanos em ritmo rock. O que aconteceu foi exactamente o contrário e de repente eram as editoras a exigirem letras em português. E foi aí que ele me apresentou aos Jafumega, para eu escrever letras para eles. Eu nunca tinha escrito uma linha a pensar em canções e descobri que fazer letras é difícil como o diabo. Uma letra tem uma difusão para um público vastíssimo, e tem de estar em sintonia com  a música. Mas tendo algum ouvido para a música e algum jeito para a escrita vai-se lá. E foi o que me aconteceu. Sobretudo com três temas, “Ribeira”, “Nó cego” e “Romaria”, para não falar de uma letra que escrevi para a Gabriela Schaaf, “Cinza e mel”, entre outras. Foi uma experiência curta, pois só colaborei num Single e em dois LPs. Depois foi uma colaboração esparsa com outras bandas, e a Gabriela Schaaf, como já disse, e o André Sarbib. 

É evidente que sofri a influência de muitos autores do meu tempo, sobretudo Dylan, Ray Davies, Phil Ochs, Keith Reid (o letrista dos Procol Harum), Paul Simon, Brassens, Fernando Brandt, Ferré, Godinho, Zeca, Zé Mário, Cohen, Fausto, Vitorino, Joni Mitchell, Jim Morrison... Mas as minhas maiores influências foram o Carlos Tê e o João Monge. 

Quanto ao prémio do Dylan absolutamente de acordo. Há poetas magníficos na música, desde o Dylan, passando pelo Cohen, pelo Nick Drake, pela Suzanne Vega ou pela Janis Jan. Aliás tanto a poesia grega, como o teatro eram cantados. A poesia provençal e sobretudo a galaico-portuguesa era cantada pelos jograis e segréis, que interpretavam os trovadores de então. Mesmo na grande tradição erudita, a música sempre procurou servir as palavras – vejam-se os madrigais de Monteverdi, ou as baladas de William Bird ou John Dowland. No romantismo os lieder de Schubert e Schumann são um dos pontos altos destes compositores, já para não falarmos nas Paixões do Bach, nas óperas do Haendel, do Purcell ou do Vivaldi. Ou nos grandes dramas de Wagner. Outro autor que mereceria o Nobel, em meu entender, seria o Chico Buarque.

 

AID – Falei do Bob Dylan, também porque sei como as referências musicais e músico-literárias são relevantes tanto na tua vida como na tua escrita. Verdade?

JSM – A minha poesia encontra-se muito ligada à música, sobretudo no seu início, anos setenta. Agora, embora reconheça a sua influência no meu percurso, gosto de escrever em silêncio e cada vez mais cultivo o silêncio, num mundo em que o silêncio é visto como uma maldição. A música como ruído atravessa a nossa vida, desde que nos levantamos até quando nos deitamos. Música ao telefone, música nos call centers, música nos elevadores, nas salas de espera dos consultórios médicos, nos supermercados, nos hiper, nos corredores das universidades, no WC... Parece que o homem tem medo de enfrentar-se diante do silêncio do Universo e da sua condição essencial de solidão.

 

AID – Para terminar com música: para onde te levam hoje as tuas escutas?

  

JSM – Bach, Haydn, Mozart, Beethoven, Schubert, Wagner, Mahler, Alban Berg, Luciano Berio, György Ligeti, Varese, alguns músicos de jazz, Jarrett, Evans, Miles, Coltrane, Chet Baker. Alguns pop como os Beatles, os Beach Boys, os Birds, os Doors, os Velvet, os Joy Division e alguns cantautores, como o Nick Drake, o David McWilliams, a Laurie Anderson, a Virginia Astley, e os grandes Frank Zappa, Bob Dylan, Cohen, ou Crosby, Stills, Nash & Young, sem esquecer o Little Richard e o Jimmi Hendrix. Não posso esquecer os franceses como Brassens, Ferré, Brel (na verdade belga), ou os italianos como Eugenio Finardi, Vinicio Capossela, os cantores da Ibéria como o Joan Manuel Serrat, o Paco Ibañez, os brasileiros, Milton, Chico Buarque, Caetano, João Gilberto ou Jobim. E os sul-americanos como a Violeta Parra, a Mercedes Sosa, ou o Atahualpa Yupanki. Ou o Pablo Milanés. Finalmente os portugueses: Sérgio, Zé Mário, Zeca e Fausto, sem esquecer a Amália e, mais recentemente, a Cristina Branco.



Entrevista conduzida por José António Gomes