quarta-feira, 24 de junho de 2020

Falemos de frutos – e de poesia: a de Francisco Duarte Mangas e Paulo Moreira Lopes

Aos frutos qual o poeta, qual o pintor capazes de resistir? Entre a beleza das formas e o sabor, há um complexo de sensações que passa pela percepção da(s) cores(s), pela avaliação da madurez do fruto ou da sua dureza ainda verde, pela apreciação da frescura, ou pela degustação dos açúcares e do sumo (do suco, dir-se-á no Brasil). O fruto é um inesgotável exemplo do poder de metamorfose, de transfiguração da natureza. A terra que através da árvore se transforma em folha, em flor e em fruto firma um dos prodígios da vida natural. Apetece chamar-lhe magia, mas não é. Porque a realidade é quase sempre mais extraordinária que a fantasia. E, por estas e outras razões, os frutos marcam presença constante na arte. E representam, frequentemente, a abundância, o desejo, as erogenous zones (vêm-me à memória os versos cantados por Peter Gabriel, em «Counting out time», dos Genesis: «Erogenous zones I question you / Without you, what would a poor boy do?»). 

Por estranho que possa parecer, escutamos a música dos frutos na música do «Verão» e do «Outono» das Quatro Estações, de Vivaldi (1678-1741). Na pintura – e passe o oxímoro – as naturezas-mortas imortalizaram os frutos. A escultura e a ourivesaria não resistiram a usá-los como temas ou motivos. Arcimboldo (1527-1593) utilizou-os, juntamente com as verduras e as flores, para compor as fisionomias humanas que pintou. E seria, certamente, possível organizar mil antologias de poesia do mundo centradas nos frutos, começando pelos romances tradicionais de origem popular, com as suas meninas sentadas à sombra de laranjais.

Nessas antologias reencontraríamos, com grande probabilidade, a célebre «Arte Poética III» de Sophia de Mello Breyner Andresen com o seu inesquecível início: «A coisa mais antiga de que me lembro é dum quarto em frente do mar dentro do qual estava, poisada em cima duma mesa, uma maçã enorme e vermelha. Do brilho do mar e do vermelho da maçã erguia-se uma felicidade irrecusável, nua e inteira. Não era nada de fantástico, não era nada de imaginário: era a própria presença do real que eu descobria.»

Com ilustrações de José Emídio, o belo livro infantil de Nuno Higino, A Maçã Vermelha: Viagem à infância de Sophia de Mello Breyner Andresen (2008) evoca esta relação da poeta de Livro Sexto com a eloquência de um real representado pela maçã vermelha pousada numa mesa. Nuno Higino, ainda, em A Rainha do País dos Frutos (2000) oferece aos leitores, com ilustrações também de José Emídio, uma poética narrativa em torno dos frutos e da sua rainha: a romã. Também João Pedro Mésseder dedica ao mirtilo e a outros frutos a obra de poesia para a infância, O Pequeno País dos Frutos (2018), que Paul Hardmann ilustrou admiravelmente, anunciando para breve a publicação de um livro de Poemas Tangerinos, ilustrados por Helena Mancelos. 

Mas na hipotética antologia atrás referida reencontraríamos certamente ainda Eugénio de Andrade, que tantas vezes recorreu ao fruto-metáfora e ao fruto-símbolo, a ponto de ter dado o título As Mãos e os Frutos (1948) a um dos seus livros, que marcaria a história da poesia portuguesa do século XX posterior a Pessoa, e de ter incluído a composição «Frutos» na colectânea de poemas para a infância, Aquela Nuvem e Outras (1986), onde, sobre uma ilustração em aguarela de Júlio Resende, se pode ler:

Frutos

Pêssegos, peras, laranjas,
morangos, cerejas, figos,
maçãs, melão, melancia,
ó música de meus sentidos,
pura delícia da língua;
deixai-me agora falar
do fruto que me fascina,
pelo sabor, pela cor,
pelo aroma das sílabas:
tangerina, tangerina.


Aqui, mais do que um fruto no sentido literal do termo, a tangerina é um fruto da Língua, uma palavra que sinestesicamente cativa «pelo sabor, pela cor, / pelo aroma das sílabas».

Foi justamente esse fruto e a palavra que o designa que Francisco Duarte Mangas e Paulo Moreira Lopes elegeram como objecto principal do seu livro de poesia pequena lua cheia de sol (Eufeme, 2020, colecção Poetas da Eufeme, série II).

Por constituir, por encerrar em si um pequeno mundo, o fruto facilmente se converte em símbolo e em matéria de metáfora e, naturalmente, de sinestesia (embora, e muito bem, um texto sentencioso trazido para a contracapa nos lembre, neste livro, que «uma tangerina / vale por mil metáforas»). 

E esses, a metáfora e a sinestesia, são talvez – ou não estivéssemos ante um livro de poesia – os principais caminhos expressivos desta escrita, trilhados numa imensa e luminosa liberdade: «A luz da tangerina é tangível» (p. 11); «Tangerina é uma rã bebé» (p. 18); «O gomo da tangerina / desenha um sorriso / na mão do poeta» (p. 27). Os exemplos poderiam multiplicar-se. Textos que inevitavelmente exploram todo esse poder de sugestão do signo, na sua materialidade significante, que já havia seduzido Eugénio de Andrade e que imediatamente faz pensar em música, quando o escutamos, quando o vemos escrito: «Jovem deusa da música» (p. 17) é de facto a tangerina.

Luminosa janela (repita-se, sem pejo, o adjectivo) aberta em tempos sombrios, como são aqueles que atravessamos, irrecusável espaço de liberdade, fantasia e graça, pleno de humanidade e de amor à Natureza e às suas oferendas, o pequeno livro de Francisco Duarte Mangas e Paulo Moreira Lopes é daqueles cuja leitura nos pode salvar o dia. 

Investindo, com naturalidade, em recursos como a metáfora, a comparação, a sinestesia, os quarenta poemas, quase todos sem título (há cinco excepções), propõem-nos, apesar da brevidade e da contenção/contensão que os caracteriza, uma assinalável variedade de formas poéticas, em que se destacam os poemas formados por um dístico ou um monóstico; aqueles outros que lembram o haiku; os provérbios poéticos e as greguerías; o texto em forma de canção («Canção da tangerina», pp. 48-49); ou ainda a composição com um pouco mais de fôlego, em verso branco e livre («Debaixo da tangerineira…», p. 35 – irrecusável declaração de amor ao «enredo íntimo» da árvore, a essa «alquimia de fazer húmus / na alegria alada»).

Escrito sobretudo no Inverno (como sugere o texto de abertura), dialogando, assumida e criativamente, com outras poéticas, tais como a lírica popular, a de Luís Veiga Leitão, a de Éluard (o seu famoso poema que alude à terra «azul como uma laranja»), pequena lua cheia de sol é uma boa surpresa e uma leitura alternativa, escrita ao arrepio de modas e tendências, e em contraciclo. Aos fantasmas e às sombras opõe a claridade. A luz da tangerina.

Aceite-se, pois, o convite para ler e degustar este livrinho – pequeno baú cujos principais tesouros deixo escondidos – publicado por uma das poucas chancelas militantes da poesia que vamos tendo: a muito interessante Eufeme, que edita também uma revista. Resta guardar um elogio para a sobriedade e o bom gosto gráficos do livro que, a páginas 51, inclui um desenho de Francisco Duarte Mangas e, na capa, um outro de Sérgio Ninguém, o editor.

A obra (7€) pode ser adquirida em http://eufeme.weebly.com  


José António Gomes

IEL-C (Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais da ESE do Politécnico do Porto)

sexta-feira, 5 de junho de 2020

Para os 90 anos de Albano Martins – um poeta a reler

No próximo dia 6 de Agosto, comemorar-se-ão noventa anos do nascimento do poeta Albano Martins (Fundão, 1930 – V. N. de Gaia, 2018). E, a 6 de Junho de 2020, passarão dois anos sobre a sua partida.

A publicação, em 2017, de Poemas Escolhidos – 99 poemas (A.23 Edições, 2017) revelava-nos toda a beleza da sua poesia sóbria, elegante, mas apaixonada – uma antologia que o próprio autor de Secura Verde (1950) e de Rodomel, Rododendro (1989) ainda organizou, com um espírito desafiadoramente matemático: três poemas por livro anteriormente publicado (exceto no caso do último, de que apenas são selecionadas duas composições). No fundo, 99 poemas no total. O três é esse número suscetível de sugerir “uma ordem intelectual e espiritual, em Deus, no cosmos ou no homem”, como apontam Chevalier e Gheerbrant. Estruturado, pois, sob a égide do simbolismo triádico (mas também, noutra ótica, sob o signo da dualidade), o livro e as circunstâncias da sua organização permitem intuir como a escrita de Albano Martins sempre se situou nessa irresolúvel tensão entre Eros e Thanatos, e, no plano metafórico, se alimentou da concretude natural, sem nunca se dissociar da música – que seduz e preenche a voz do sujeito poético, tanto no domínio do diálogo intertextual como no plano fónico e rítmico. 

Esta poesia manifestou sempre, por outro lado, quer a sua dívida em relação à poesia grega arcaica e a alguns clássicos do helenismo (que nutrem também o seu modus dicendi moral) quer a atração por alguma poesia oriental, em especial pelas formas breves japonesas (de Bashô e outros). 

Uma primorosa antologia, em suma, ilustrada com desenhos de José Rodrigues em torno do motivo da cereja, que bem evidencia a singularidade desta escrita tão vinculada à natureza e à sua vitalidade.

Fundão, Vila Nova de Gaia, Porto (seus lugares de vida e de escrita), o país como um todo nunca conseguirão saldar a dívida de gratidão relativamente a este escritor, quer como grande poeta que foi, e co-organizador das folhas de poesia “Árvore” (era autor de prosas também elas límpidas e cativantes), quer como insigne e premiado tradutor, a quem ficaremos a dever a leitura, em português, da poesia grega arcaica, de Ovídio, de Catulo, de Neruda, de vários poetas italianos (por exemplo Leopardi) e espanhóis, do palestino Mahmoud Darwich, de tantos outros. Um património inestimável que não deixará de acentuar a nossa saudade. Até porque Albano Martins, além de reconhecido professor, era também um homem bom, cultíssimo, de grande elegância espiritual e de reconhecida estatura ética.

Recordemos então um poema de Albano Martins, de cenário portuense:

                Entardecer na Praia da Luz

                Espreguiçados, os ramos
                das palmeiras filtram
                a luz que sobra
                do dia. É já noite
                nas folhas. O branco
                das paredes recolhe
                o sangue e o vinho
                de buganvílias
                e hibiscos. Bebe-os
                de um trago: saberás
                que, mais do que cegueira, a noite
                é uma embriaguez perfeita.


                Castália e Outros Poemas, Campo das Letras, 2001


José António Gomes
IEL-C (Núcleo de Estudos Literários e Culturais da ESE do Politécnico do Porto)