terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Ainda a Fantasia para Dois Coronéis e Uma Piscina, de Mário de Carvalho

Editado em 2004, Fantasia para Dois Coronéis e Uma Piscina (Caminho), de Mário de Carvalho, é uma das mais acabadas obras de ficção que em língua portuguesa se publicaram nas últimas décadas. Dir-se-ia o retrato desapiedado desse país aparentemente inviável que é o nosso: um país onde campeiam ignorantes, provincianos, boçais, incompetentes, oportunistas e patos-bravos. País «sem emenda», cuja imagem o romance nos devolve para que – quem sabe? – possamos lutar pela sua regeneração. Além disso, uma prosa criativa e culta como há muito se não lia em Portugal (saturada de referências intertextuais incrustadas sem artificialismo) e um sapiente manuseamento das técnicas narrativas – em que avulta a metalepse – e do jogo ficcional. Por último, o humor: absolutamente explosivo (perdoe-se o lugar comum) e a merecer figurar em qualquer futura antologia do humor em literaturas de língua portuguesa.

Para abordar a peritextualidade também é perfeito (da capa à contracapa passando pela nota do autor, pela dedicatória e pela epígrafe…). É só experimentar, senhores professores de literatura.

 

 

José António Gomes

NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)

 

sábado, 24 de janeiro de 2009

«A terra é boa, e o corpo…» – Eugénio de Andrade, sempre

Quiseram os deuses (sempre cruéis, mas tantas vezes certeiros nas suas disposições) que Eugénio de Andrade, um dos poetas mais lidos por aqueles que o fascismo perseguiu e encarcerou, nos deixasse no preciso dia (13 de Junho de 2005) em que partiu também essa figura marcante do combate à ditadura salazaristamarcelista e da luta pelos direitos dos deserdados que foi Álvaro Cunhal.

Havia sobejos motivos para que os versos do autor de As Palavras Interditas (que também cantou Dias Coelho e Che Guevara) fossem amados por quem se encontrava em condições tão difíceis como os resistentes antifascistas. É que, não obstante as muitas sombras que a perpassam, a poesia de Eugénio exprime, acima de tudo, uma pulsão vital, erguendo-se como um harmonioso canto do corpo, da intensidade erótica e do mundo natural, que talvez não encontre paralelo na nossa literatura contemporânea: «A terra é boa, e o corpo / apesar de bastardo / traz consigo pátios / e cavalos.» 1 Um canto que o aproxima, neste ponto, de alguma da melhor tradição do nosso lirismo (a poesia galaico-portuguesa, Camões, Garrett…), aparentando-o também com outros poetas que amou e verteu para português. Pense-se em Safo, em Lorca (influência marcante nas primeiras obras, no livro infantil Aquela Nuvem e Outras e não só), em Luís Cernuda e até no chileno Neruda. E não se encare, como despropositada, a proximidade com Bashô (a quem, por via de uma tradução de Octávio Paz, iria buscar o título que deu a um dos seus melhores livros, Branco no Branco, 1984) e com esse outro poeta solar que foi o italiano Sandro Penna. A Penna não falta contudo a dimensão disfórica que igualmente se pode ler em Eugénio, bem como no mestre seiscentista do haiku – um mestre, acrescente-se, dessa poética da brevidade para onde aos poucos se encaminhou também a escrita do poeta de As Mãos e os Frutos (1948), livro crucial na abertura dos novos caminhos da poesia portuguesa posterior à Presença.

Correndo embora o risco de repisar o lugar comum que define Eugénio como poeta do corpo, do amor, da Natureza, é de salientar que esse traço concorreu para a inegável fortuna que esta poesia conheceu junto de um público não especializado e para uma certa reconciliação de franjas desse público com a escrita poética dos nossos dias. Leitores que talvez não possuam plena consciência de como a aparente e conquistada «transparência» e a «limpidez firme de tom» (a expressão é de Sena 2) que distinguem a poesia de Eugénio se devem a um rigorosíssimo sentido da construção do poema, indissociável de uma admirável inventividade no domínio da metáfora, da sinestesia e da hipálage. Se a tais características juntarmos a pureza da dicção – esse «cravo bem temperado» a que Marguerite Yourcenar aludia em carta a Eugénio – teremos porventura um poeta completo. Um poeta como Sena, Sophia, Ruy Cinatti e alguns outros que, a partir dos anos 40, ao conferirem atenção particular ao valor da linguagem no poema, deram um contributo decisivo para a renovação da poesia portuguesa da segunda metade do século XX (pense-se também em Carlos de Oliveira, Cesariny, e, mais tarde, em Herberto Helder, Ramos Rosa e Ruy Belo).

 

 

Notas

 

1 Eugénio de Andrade (2000). Poesia. Porto: Fundação Eugénio de Andrade, p. 488.

2 Jorge de Sena (sel. e apres.) (1983). Líricas Portuguesas II Volume. Lisboa: Edições 70, p. 81.

 

José António Gomes

NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Em Gaza neste instante, Janeiro de 2009

Só para lembrar,

de preferência

sem metáforas

(ou quase):

 

Em Gaza

neste instante

uma bala

fende o ar,

 

um raio de luz negra

perfura uma cabeça,

fixa uns olhos atónitos.

 

Em Gaza

neste instante

um míssil – outro – cai.

 

Mais uma parede

ruiu.

 

Mais um menino

morreu.

 

João Pedro Mésseder

domingo, 11 de janeiro de 2009

Grécia, Dezembro de 2008

A Grécia

continua

berço de

civilização.

 

João Pedro Mésseder

sábado, 10 de janeiro de 2009

A cidade interior de Inês Lourenço

A sensibilidade (feminina) que se manifesta na poesia de Inês Lourenço corresponde a um olhar que, no seu livro Um Quarto com Cidades ao Fundo (Famalicão: Quasi Edições, 2000 – reedição posterior com nova capa), percorre, por um lado, «o desconhecido corpo» e o desejo e, por outro, os pequenos episódios do quotidiano. A escrita transfigura esses episódios dando-lhes a necessária dimensão poética – ou seja, a que não pode ser formulada de outra maneira a não ser pela linguagem, simultaneamente clara e obscura, da poesia. O que se confirma lendo textos quase surpreendentes, ancorados num «real» concreto, como «Campeonato» ou «Feira do Livro» (p. 93).

Inês Lourenço é uma voz da melancolia das cidades e o título do seu livro revela-o, convocando uma tradição literária e fílmica citadina, como aquela em que se insere o belo filme, de James Ivory, Room with a view e o romance de E. M. Forster em que ele se baseia. As cidades da autora são, obviamente, as suas cidades privadas, isto é, aquelas que o eu compõe, na sua busca da «geografia indecifrável» (p. 117) dos dias, designadamente a partir de ruas e praças tão «literárias», por assim dizer, como as do Porto (e de outros cenários). Porque o poeta, tem, no seu «quarto» mental, uma «janela», uns olhos que se abrem sobre o mundo, o filtram e revelam, e finalmente dele se apropriam – como se diz, por mais justas palavras, nos três versos finais de «Urbe» (p. 69). E as memórias de infância (cores, cheiros, sabores, o fascínio e o asco) dificilmente poderiam deixar de marcar presença na reconstituição poética desse espaço urbano de raízes acentuadamente portuenses que nos dá textos tocantes como «Rua de Camões» (p. 13-14), «Bonjardim» (p. 117-118) ou «Vindo do Marquês, o autocarro…» (p. 118).

Nesta brevíssima digressão, cumpre assinalar ainda a tendência desta poesia para reflectir sobre o ofício que a gera e sobre a sua poética (leiam-se as duas «Artes poéticas») e sublinhar o evidente trabalho de tessitura verbal e de conquista da metáfora justa: «a pureza etária do verde» (p. 128), «O Verão expulsa o húmido alento das casas» (p. 128), «os plátanos, há muito ceifados pelo asfalto» (p. 129). E registe-se também como a arquitectura rigorosa dos textos logra, muitas vezes (sobretudo na segunda metade do livro), transmitir uma aparente impressão de espontaneidade natural e de fulgurante simplicidade, que se experimenta ao ler poemas como «Da epistolografia»: «Chegou uma carta. Trazia / muitas folhas escritas. Só uma delas / vinha em branco, não sei se / por esquecimento ou cortesia, a oferecer / um vestíbulo para os olhos / incinerados.» (p. 97).

Muito, quase tudo, fica por dizer sobre o livro de Inês Lourenço (nomeadamente sobre a importância da música nesta poesia), até porque Um Quarto com Cidades ao Fundo é uma colectânea de 144 páginas, onde se encontram reunidos os quatro volumes antes editados pela autora (também directora e dinamizadora dos cadernos de poesia Hífen), a par de um conjunto de vinte inéditos, a cujo título se foi buscar o da obra.

 

José António Gomes

NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)