domingo, 1 de outubro de 2023

Finalmente, O Diário de José Miguel Braga



O texto que se segue configura um comentário sem pretensões a ser trabalho de crítica literária, embora possua elementos críticos. Por outro lado, é escrito por quem conhece pessoalmente o autor, José Miguel Braga, há vários anos, o que em parte explica o registo algo informal, e até com notas humorísticas, adoptado. Que um dos seus propósitos seja atingido: convidar à leitura crítica deste belo livro.

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Roam-se. Roam-se de inveja. Hoje, hoje mesmo de manhã, o carteiro trouxe-me o grosso volume Entre o Medo e a Luz 2020, Um Diário, de José Miguel Braga, acabadinho de sair dos prelos da UMinho Editora, com prefácio e certo gás da minha velha amiga Bé, sempre jovem, diga-se de passagem. Ou melhor, de Ana Gabriela Macedo (peço mil desculpas), professora catedrática da Universidade do Minho, especialista em Estudos Feministas, em Literatura Comparada e minha antiga colega de faculdade. 

Já o folheei (mas prometo que não o desfolharei, como alguns tropeçantes na Língua). Já li aqui e acolá. E foi o suficiente para ficar com água na boca. Por muitas razões. Primeiro, porque não é raro o José Miguel falar ma-ra-vi-lho-sa-men-te de boa comida e de vinhinho do melhor. Segundo, porque, sendo o que acabo de dizer do menos relevante no livro, José Miguel tem a arte de falar de coisas sérias com um humor sofisticado e culto, com graça (também com sentido lírico, é certo) e com uma sensibilidade poética especialíssima e indeclinável (quem lê os seus textos no Facebook sabe-o bem). Terceiro, porque há muitos e bons assuntos aqui, começando pelos amigos, pela família, pelos colegas, pelo círculo bracarense e pela paisagem minhota, e, claro está, passando pela Literatura (que bom ainda haver quem fale bem e com conhecimento de Camões, de Camilo, de Cesário, de Pessanha, mas também de Ruben A., de Saramago, de Herberto Helder…). E passando sobretudo pelo Prazer (com P grande) da Leitura (com L grande), a leitura a sério, a chamada leitura literária feita por quem ama as palavras como poucos. Vê-se logo, aliás, quando nos centramos nesta escrita faladora (também) de leituras: verifica-se no léxico, na sintaxe e na sua fluência, nas imagens, na coloquialidade imprimida à prosa – esta aprendida, avento eu, na experiência teatral. Que José Miguel é um poeta da prosa. Aprendeu-o (desculpa, José Miguel) em Vieira, em Garrett, noutros e talvez, sobretudo, em Raul Brandão, uma das suas linhagens. Eu digo a Literatura e preciso acrescentar: o Teatro. Até porque José Miguel é (quase posso dizer: sempre foi) um grande homem do Teatro. Como estudioso e pesquisador, como encenador, como actor, como dizedor de Poesia, como Professor – daqueles professores como quase já não há (em Braga, em França, de novo em Braga, no secundário, na Universidade). 

Ler os diários de José Miguel Braga (e venham, venham os outros volumes depressa, que este é só de 2020, do tempo pandémico – e que amostra é!), ler estes diários é ter permanentemente na língua (e como ele fala da Língua) o sabor de uma textualidade que não conseguimos pôr de lado. E que gosta de desafiar a nossa inteligência leitora.

Poderia continuar enumerando, descrevendo, porque há muitas histórias, por aqui, muita crónica, muitas deambulações, muitas impressões brandonianas, tanta coisa.

Digo-lhes: procurem este livro urgentemente e leiam-no, leiam-no, degustando cada fragmento. Eu adoro livros de estrutura fragmentária e poderia falar aqui longamente sobre o fragmentarismo diarístico, tema de que fui um quase-nada especialista, durante a minha investigação de doutoramento (concluída há vinte anos) sobre Luísa Dacosta– escritora que eu sei que José Miguel igualmente aprecia – e sobre a escrita autobiográfica desta autora, que inclui dois belos volumes de diário. Procurem este livro (cuja edição – bela e digna edição –honra a Universidade do Minho) e desfrutem da sua leitura. Até porque José Miguel Braga – dramaturgo, autor de ficção, poeta, diarista, ensaísta… – é pessoa de qualidade. Na sua sensibilidade, na sua generosidade, na sua ironia tranquila e no seu sentido crítico, nunca panfletário, sempre inteligente. E exigente. 

Roam-se. Roam-se de inveja. Eu já tenho o livro. E vocês ainda não. 

Ah, e vou já guardar esta frase da p. 170 para os 50 anos de Abril: «Leio o 25 de Abril como se estivesse a nascer.» E vou guardar o fragmento lindíssimo dedicado a uma amiga comum de que muito gostamos: Gracinda Castanheira: uma professora que não se consegue esquecer e outro ser humano de qualidade, com um olhar e um sorriso de qualidade. Uma «sereia» (p. 186)? Acho que sim. 

Se este país não fosse a merda pequenina que por vezes é, minado pela maledicência, pelo presentismo, pelo umbiguismo apressadista e pelo amiguismo, talvez estivesse à altura de reconhecer José Miguel Braga como um dos prosadores de eleição das últimas décadas, em Portugal.

 

20-9-2023

 

José António Gomes

IEL-C da Escola Superior de Educação do Porto

 

domingo, 21 de maio de 2023

Porto, Maneira de Olhar: crónicas e memórias, de João Pedro Mésseder




Porto, Maneira de Olhar: crónicas e memórias (LeYa | ASA, 2023) é uma viagem pelo Porto, o de agora e o de ontem, de diferentes ontens. Um Porto coado pelo meu olhar da infância, pelo meu olhar da juventude, e pelos olhares das minhas sucessivas idades adultas (que várias são já…). Um Porto coado, principalmente, pela lente da memória, mais bem focada umas vezes, outras menos. O Porto da Ribeira, do Bonfim, do Covelo, do Bonjardim, da Fontinha, do Pinheiro Manso, de Nevogilde, da Foz e de muitos outros lugares. O Porto de variadas gentes – como a empregada da Flor de S. Brás, os meus pais, minhas tias… Ou como Luísa Dacosta, Eugénio de Andrade, Manuel António Pina, que por estas páginas por vezes andam. O Porto onde comecei a querer bem aos livros, ao cinema, à música e à arquitectura…

Porto, Maneira de Olhar está longe de ser apenas uma série de percursos pela urbe. É também uma revisitação fragmentária da minha própria vida numa cidade ímpar, que, com o seu pedigree de granito, livre e republicano, seu modo de ser e de estar, sua geografia única, jamais perde no confronto com tantas outras que me marcaram para sempre, na Europa, em África, na Ásia ou nas Américas.

Nos percursos, uma que outra vez, a companhia da minha filha Inês Ramalhete Gomes, ela própria calcorreadora da cidade. Uma caminhadora, convém dizer, de talentoso olho fotográfico. Daí as fotos que este livro inclui, que o valorizam e que selam uma amorosa cumplicidade antiga.

Sinceramente espero que a leitura destas crónicas e memórias divirta quem a elas queira dedicar alguma atenção, que essa leitura toque e faça pensar. E que estimule o/a leitor/a à descoberta ou redescoberta desta cidade tão antiga e singular.

 

João Pedro Mésseder