quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Requiem para o Navegador Solitário, de Luís Cardoso

Dez anos depois do seu romance de estreia, Crónica de uma travessia. A época do Ai-Dik-Funam (1997), Luís Cardoso dá à estampa um livro onde voltam a cruzar-se as linhas estruturantes da sua obra, a questão da identidade, entendida em termos individuais e nacionais, e da História, ficcionalmente recriada como uma espécie de mola que faz movimentar os homens, controlando e definindo as suas acções.

Protagonizada por Catarina, uma jovem chinesa iludida por sonhos de príncipes encantados e histórias de amores felizes, que se desloca para Timor onde espera reunir-se ao seu noivo, a narrativa dará conta do processo de crescimento e de amadurecimento da personagem, feito à custa de desilusões, desgostos, injustiças e muito sofrimento, uma espécie de metáfora da história do próprio território que simultaneamente a acolhe e renega.

Apanhada numa encruzilhada histórica particularmente difícil, mesmo antes do início da 2.ª Guerra Mundial, a protagonista e o território timorense, que com ela se confunde, parecem sofrer as violentas ondas de choque de todos os conflitos latentes num mundo cuja ordem e equilíbrio se revelam precários.

A rejeição do noivo seguida da sua violação física abrem as portas para uma sucessão de pequenas tragédias pessoais que a obrigam a crescer muito rapidamente, destruindo-lhe os sonhos infantis e a inocência, mas também a submeter-se a vários homens para sobreviver. O rapto do filho, a ostracização da comunidade e a perseguição dos habitantes locais destroem-lhe todas as ilusões e obrigam-na a viver numa nova realidade e a construir uma nova identidade. Mesmo o aparecimento do navegador solitário, Alain Gerbault, cujo livro a acompanhara desde a casa da família, uma espécie de derradeira esperança de felicidade pela qual aguardara desde a chegada a Timor, depressa se desvanece com a morte deste. A ocupação japonesa e os difíceis anos da guerra vividos num território aparentemente neutral marcarão indelevelmente a personagem, conduzindo-a a uma espécie de auto-exílio voluntário no barco do navegador.

A partilhar o protagonismo (e o fascínio que a caracteriza) com Catarina está o próprio território timorense. Complexo e contraditório, personificando várias tensões internas e sofrendo consequências das pressões externas, Timor parece uma embarcação oscilando ao sabor das marés, ora perseguindo os habitantes nativos, ora se revoltando sucessivamente contra as vagas de ocupadores. Recriado ficcionalmente como uma espécie de território à deriva, Timor parece determinado numa demanda difícil pela sua afirmação. Violentado sucessivamente por diferentes invasores, assemelha-se a Catarina pela forma como parece manter uma dignidade original, reconstruindo-se sucessivamente, adoptando novas facetas e alguns disfarces, construindo uma identidade frágil, destinada à sobrevivência mais imediata.

O motivo do duplo, de presença assídua no romance, é sintomático da centralidade da reflexão sobre a identidade, verdadeiro fio coesivo da história. Várias personagens surgem divididas ou assumem posições contraditórias, exprimindo uma dualidade aparentemente irresolúvel. É o caso do administrador Malisera e do sipaio Marcelo, duas faces da mesma moeda da resistência ao poder branco; de Catarina, a Grande…, e a Outra, a gata de jade que também conquista Alberto Sacramento Monteiro e os outros capitães do porto que vão passando pela sua vida; mas também de Catarina e Madalena, as duas mães dos filhos de Alberto, duas penélopes tecedoras de sonhos e coleccionadoras de gatos que esperam marinheiros perdidos no mar; da própria figura do capitão do porto que se desdobra em várias personagens que, afinal, são variações da mesma; de Alain Gerbault, o navegador solitário do livro e da imaginação de Catarina e o seu fantasma doente que regressa para morrer em Díli; dos australianos e dos japoneses, facções rivais da guerra, ocupantes violentos do território e das gentes; de Diogo e Esperança, o filho roubado e a filha morta, símbolos do futuro incerto que espera o território timorense.

A opção de Catarina de abandonar o veleiro e o tesouro, única forma de escapar a Timor, ao passado e às consequências da guerra, em troca da ténue esperança de rever o filho, ficando cativa do território que a persegue e critica, revela bem a mudança operada no íntimo da personagem, uma vez aberta a caixa de Pandora e revelado o seu destino:

«O destino de uma mulher é uma caixa de Pandora. Nunca se sabe o que tem dentro. A sorte pode ditar um príncipe encantado. Nem sempre o desejado. Apaixonar-se por um marinheiro pode ser uma aventura sem retorno, como quando se entra pelo mar, quando as tempestades recomendam que se fique em terra. Sujeita-se a ser largada ao primeiro toque de rebate. Depois deambula à espera de ser resgatada por um coração de manteiga. Que o têm também os marinheiros solitários, viajantes em busca de outros ares, caçadores de fortunas, olheiros de mundos mágicos, músicos à procura de novas sonoridades, místicos no encalço do maravilhoso, escritores de histórias trágico-marítimas e pintores de paraísos que se vão apagando com o tempo» (pp. 12-13).

Ana Margarida Ramos

(Universidade de Aveiro; membro associado do NELA - Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)

Ficha

Luís Cardoso,

Requiem para o Navegador Solitário

Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2007