quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Do “aguaceiro de espanto”

Conheço poucas cidades tão convertidas (ia a dizer: embebidas) em literatura como o Porto, esse “aguaceiro de espanto”, para usar a expressão de José Efe. E manter uma cidade nessa substância conservante, assuma ela a forma que assumir, tem óbvias consequências. Mais do que preservar a urbe, mitifica-a, inscreve-a, indissipável, no nosso imaginário – cada uma das vozes que se erguem a coser novas folhas aos cadernos dessa bíblia interminável. Sem querer ser exaustivo, lembro alguns dos que mais contribuíram para o maravilhoso livro-do-Porto-e-redondezas: Fernão Lopes, Garrett, Camilo, Júlio Dinis, Nobre, Raul Brandão, Pascoaes, José Gomes Ferreira, Ruben A., Sophia, Sena, Eugénio de Andrade, Agustina, Rebordão Navarro, Luísa Dacosta, Vasco Graça Moura, Manuel António Pina, Mário Cláudio, Viale Moutinho, Carlos Tê e tantos outros. E isto para não falar dos que, a seu modo mais historicizante ou cronístico, acrescentam novas páginas a esse grande livro, como Germano Silva ou Hélder Pacheco. Ou dos que, como Sérgio Godinho, deram em tempos à cidade a forma de canção.

No seu Porto sem Filtro seguido de onze histórias extra ordinárias (Mosaico, 20111), José Efe vem juntar o seu nome a este ilustre cortejo, fazendo-o de modo singular ao tecer aquilo a que chamarei pequenas vinhetas em prosa quase sempre poética, que logram mesmo, em alguns casos, atingir a quinta-essência do poema em prosa. No final, o conjunto arquiva ainda onze crónicas breves a que o Autor – num divertido jogo semântico – chama, e bem, “histórias extra ordinárias”. Porque o são de facto, ao resgatarem do esquecimento certos tipos e figuras que raiam a lenda; ou ao cristalizarem em texto, noutros casos, “aves raras” ainda hoje reconhecíveis nos esconsos meandros do Porto. Gente singular como o Dominó, a Lili Balboa ou o Anselmo Fragateiro, com que o burgo portuense enriquece a galeria dessa inesquecível fauna humana, situada entre o cómico, o comovente e o grotesco, que povoa todas as cidades dignas de tal nome. (E sublinhe-se, desde já, a qualidade e variedade de estilos patentes na série de ilustrações que, assinadas por diferentes artistas, iluminam esta secção do livro.)

Como mestre do olhar que é, Gaspar de Jesus conhece a complexidade das cores e luzes deste Porto e, talvez por isso, tenha optado pelo preto-e-branco nas suas fotografias de invulgar factura. É que o claro-escuro deste registo é, talvez, o modo único de captar tal complexidade, deixando ao observador a liberdade de imaginar os matizes cromáticos da cidade às diferentes horas do dia; mas levando-o, ao mesmo tempo, a fixar-se nas “coisas antigas” do Porto, no pormenor surpreendente, que convida o leitor a firmar a consciência de um património único. Por outro lado, tais instantâneos inserem-se numa linhagem – a que vem dos primórdios de uma fotografia que, desde o século XIX, não cessou de tentar captar a-preto-e-branco – cores do sonho e da memória – os poéticos contornos, umas vezes fantasmáticos, outras vezes de leveza inigualável, desta cidade, ela também feita de sombras e de luzes. De facto, e por razões que não consigo explicar bem (ou talvez conseguisse, noutro espaço que não este), o Porto da minha infância, a cidade inscrita nas minhas lembranças, quando dela me distancio, é sempre um pouco este Porto de Gaspar de Jesus, que ora se deixa seduzir pelos cinzas do seu granito antigo, ora pelos brancos que vibram sobre um fundo de céu de chuva, ora ainda pela humidade especular do pavimento.

É com tais imagens que se casam as vinhetas em prosa de José Efe – um cultor da brevidade que, desde 1999, nos vem dando a ler pequenos livros de uma poesia depurada e estimável, como No Teu Rosto Quase Ileso (1999), Fenda Acesa (2001) e Seiva Rugosa (2006). A leitura progride e, repentinamente, a prosa cede lugar, por uma única vez, ao poema em verso, numa das mais belas composições do livro, dedicada a um “rosto” paradigmático da cidade, o Douro: “Sobre o Douro / em cinza / flutua o casario / esgrouviadas ruelas / de pedra puída / cerzidas pelas sombras / dos rabelos / – o rosto da cidade.”

À semelhança do que acontecia nos títulos de poesia citados, a demanda da essência prossegue neste Porto sem filtro, cujo título – resultante de um jogo irónico e feliz, de tabágicas ressonâncias – nos remete para a singularidade de dois olhares sem mediação. Olhares próprios, diria: o do fotógrafo e o do escritor, capazes de nos dar a conhecer mais um Porto, o seu Porto. Uma essência, em suma, resultante da apropriação e recriação a que ambos procedem de alguns dos mais emblemáticos lugares e criaturas da cidade.

Outros Portos existem, sem dúvida, como o do aprazível jardim da agitada Praça Marquês de Pombal junto à casa de Marques da Silva; o das quintas agrícolas de Paranhos (ou o que resta delas); ou o Porto operário e popular da Fontinha e do Bonjardim (tão decrépito), a juntar ao de S. Roque, Corujeira e Campanhã, com o seu belo vale a traçar com doçura a fronteira que separa este de outros concelhos; ou ainda o Porto oitocentista de Cedofeita, e o Porto burguês, de verniz moderno e cosmopolita (sê-lo-á?), que principia na Boavista – e cujos motes são hoje a Casa da Música e o museu de Serralves. Mas, em busca da essência, José Efe e Gaspar de Jesus inclinam-se para o coração da cidade, o centro histórico e seus prolongamentos: margens do Douro, pontes aladas, Sé, Ribeira, a camiliana Rua das Flores (a mais bela do Porto, onde o caminhante se detém e medita: “preciso dar tempo ao meu tempo”), a que se juntam a colmeia comercial de Santo Ildefonso, a sala de visitas que é a Praça da Liberdade, a Lapa, a zona do Palácio de Cristal, o eixo que termina na Rotunda da Boavista, com o leão e a águia a inspirarem o texto “Estátua”…

E é esta peregrinação – a um tempo trabalho do olhar, da memória e do sonho – que comovidamente nos permite revisitar-recriar recantos, cenários, monumentos; restaurantes históricos e tascas; barbearias, feirinhas e cheirosas mercearias de fachada e montra antigas; cafés provectos onde os vivos dão descanso convivial ao corpo e à mente, e cemitérios onde os mortos “escuta[m] o silêncio” (leia-se, a propósito, o micro-conto “Cemitérios”, pequeno prodígio de humor-negro)…

Mas, nestes espaços e edifícios, estão quase sempre as gentes (ou a recordação delas) e as suas festas mais profanas do que sacras (como o S. João), gerações que umas às outras se sucedem, mantendo os lugares vivos, habitados e habitáveis. Gente que os povoa (como os Mimos da baixa e os gaiatos da Ribeira) ou povoou num passado ainda recente (como o Duque da Ribeira e os doutores das lápides do Piolho), gente que arquitectou, construiu, deixou um nobre recorte (como Nasoni)… Neste Porto que é tempo e memória, passado e presente, não poderiam faltar os animais, em especial essa tribo dilecta dos poetas que é a dos gatos, tão essenciais à fisionomia da cidade que ela própria com um felino se confunde, num sugestivo passo que é também apontamento aforístico sobre a sua identidade: “O Porto, gato vadio, de quando em quando perde o norte: nunca o rumo.”

Gosto, em suma, destas vinhetas que me trazem o Porto, o meu e o de outros, mas que deixam sempre aberta uma janela para a deriva pessoal e para um olhar mais atento (não por acaso, vários são os textos que terminam com uma interrogação, explícita ou implícita).

Gosto deste Porto indefinível, ou apenas dizível por imagens, sinestesias, exclamações emotivas, jogos de palavras: “O Bolhão é a seiva rugosa do Porto.”; “O Porto é templo de igrejas.”; “Quando batem as horas e os sinos tangem, o silêncio estremece. Eco molhado, cor de frio, tece a memória do burgo nas suas sombras tristes”.

Gosto deste Porto que me transporta ao tempo da meninice e da ilusão de liberdade, em prosas como “Eléctricos” e “Palácio de Cristal” (“Recordar o velho Chico e o exaurido leão é voltar à infância.”)

Gosto, enfim, deste Porto-sem-filtro dos sentidos, este Porto à flor da pele, à flor do ouvido, das narinas e dos olhos inebriados.

Nota

1 O presente texto constitui o prefácio escrito para a obra.

FOTOGRAFIA de José Paulo Andrade | Ribeira, Fevereiro de 2007.

José António Gomes

NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)