domingo, 4 de outubro de 2009

No Silêncio da Terra, de Nuno Higino

Na década de 90 do século XX assiste-se a um surto de poetas que a essa condição juntam a do sacerdócio – casos de José Tolentino de Mendonça, Mário Rui Oliveira e, sobretudo, do malogrado Daniel Faria, prematuramente desaparecido e autor de uma poesia intensa e surpreendente, a que um outro poeta – precisamente o que motiva esta nota –, se tem empenhado em dar a divulgação merecida.

Nuno Higino, autor de No Silêncio da Terra (Porto: Campo das Letras, 2000), enquadra-se nesse conjunto, não obstante, a partir de certo momento da sua vida, se ter mantido apenas fiel à condição de poeta. Não se estranhará, contudo, que os sinais da divindade e do «mistério», o amor às criaturas, os valores do cristianismo surjam em filigrana nestes versos que souberam guardar, por vezes, um pouco da luminosidade de certos clássicos mas também da poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen («Nas ondas caminhei com pés de arado / ao largo muito ao largo me perdi. / Habitei a luz pura e sem degredo / (…)», p. 15).

Desengane-se, porém, o leitor que, em No Silêncio da Terra, busque qualquer dimensão apologética ou uma atracção obsessiva pela transcendência. Aqui «o silêncio deixa sempre saudade» e esta «é uma porta por onde se vê o mar» (pp. 34-5). Ou seja, a poesia de Nuno Higino (autor também de diversos livros de qualidade para crianças) dá, muitas vezes, a ilusão (literária, pois é disso que se trata aqui) de respirar o inominável (o «mistério» de Deus, mas também o frémito da Natureza). E este é um atributo da poesia de qualidade, a que nos deixa em suspenso, à escuta da terra e dos seus enigmas – leia-se o belo poema em prosa da contracapa, que é simultaneamente uma «arte poética»: «Quando era pequeno gostava de encostar o ouvido no chão e escutar a terra. Escutar as suas tremuras, imaginar os labirintos dos bichos e das raízes, sentir a ondulação dos magmas profundos, escutar o silêncio da terra. A terra pediu-me os ouvidos, os olhos e as mãos. Depois, o seu apelo feminino pediu-me o coração. À terra devo uma fidelidade primordial, a mais exigente, a mais densa de todas as fidelidades. Agora devo-lhe estas palavras. Elas não nasceram da terra. Nasceram no silêncio da terra.»

A poesia deste livro dá-nos, por outro lado, um sujeito à escuta de outros silêncios, rumores e clamores: os que se libertam da pintura, da arquitectura e das paisagens com História – uma poesia, em suma, que dialoga com outras artes. Porque este é um poeta em viagem: pelo mundo, pelo interior de si mesmo e por dentro das próprias palavras, com as quais estabelece por vezes uma relação ora lúdica, ora quase religiosa. Um poeta que, no entanto, sabe «o rosto do avesso / a alma em carne viva» (p. 39) patentes por exemplo na Guernica de Picasso — desesperada metáfora dessa terra que, apesar do horror, pode ser «uma casa digna de morar» pois, a crer nas palavras do poeta, «é lá que Deus repousa» (p. 60).

José António Gomes

NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)