domingo, 31 de outubro de 2021

VIALE MOUTINHO: DADO O ADIANTADO DA HORA

José Viale Moutinho (Funchal, 1945) terá este ano um novo livro publicado em Itália: In Causa Propria (Em causa própria), edição bilingue, traduzida pelo poeta Emilio Coco. Raffaelli Editore, de Rimini, publica. 

O texto português integra o volume Os Cimentos da Noite 1975-2018 (Afrontamento, 2020), que recebeu o Prémio D. Dinis, da Fundação Casa de Mateus, de Vila Real, o qual foi entregue em 31 de Outubro de 2021.

Como leio a poesia de Viale Moutinho, eu que a não conheço suficientemente bem, mas reconheço, ao deambular por ela, detendo-me aqui e ali, uma poética de indesmentível qualidade de escrita e de singularidade inegável? Pois leio-a como um discurso em que o fundo dramático jamais deixa escapar a possibilidade da ironia, e em que a tensa meditação da voz que escutamos balança entre a sua própria existência-e-condição-no-tempo e a dos outros. Detecta-se um sentido emotivo eficazmente contido pela inteligência das estratégias verbais, designadamente a sintaxe, pelo modo hábil de usar/organizar a versificação (incluindo aqui o enjambement) e por pontuais desvios de atenção para os cenários em que o sujeito surge inscrito. Uma apreciação brevíssima, esta, que se centra em especial nos últimos livros. 

E é de uma dessas secções de Os Cimentos da Noite (“Dado o Adiantado da Hora – inéditos e dispersos”, pp. 342-343) que extraio este poema com algo de tempestuoso, mas que tanto me agrada. Recordo que a vírgula é a pontuação por excelência da poética de Viale Moutinho e que é com vírgula que o poema remata (remata?).  

 

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Todas as noites percorro a casa

em busca do quarto secreto

onde a tempestade guarda

os seus ovos de reserva,

 

ou o assobiar dos ventos, 

vejo como cai a chuva

grossa e se envolve a terra

nos seus mais densos rios,

 

ouço as palavras de meu 

pai, são sábias, loucas, belas, 

levando-me para onde serei

um dia um corredor de fundo,

 

a casa, às escuras, permite-me

ver os despojos do dia morto,

abro as portas dos quartos e nada,

nunca encontrei esse quarto

 

 

João Pedro Mésseder

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

A escrita de Domingos Lobo e Origens e Derivações do Neo-realismo Literário Português


Domingos Lobo (n. 1946) é natural de Nagozela, Santa Comba Dão. Em 1982 recebeu o Prémio de Melhor Encenador, do Festival de Teatro de Lisboa, distinção que se liga a uma das forças motrizes da sua vida: a actividade teatral, quer como encenador e actor quer como dramaturgo, adaptador de textos para teatro, crítico teatral e de cinema e membro de colectivos de jograis.

 

Director do jornal A Voz do Operário, Domingos Lobo é actualmente um dos poucos colaboradores da imprensa que se dedicam com assinalável regularidade à divulgação crítica, nas páginas do semanário Avante!, no quinzenário As Artes entre as Letras, na Vértice, na Gazeta Literária e noutros periódicos, tendo reunido, por exemplo no volume Palavras que Respiram – 30 olhares sobre a literatura portuguesa (Página a Página, 2016), uma selecção dos seus textos de crítica literária publicados nos últimos anos. 

 

No campo da história e da crítica literárias, Domingos Lobo publicou ainda, recentemente, com a chancela da Página a Página e o apoio da Associação Promotora do Museu do Neo-Realismo (da qual é indissociável o nome do Presidente da Direcção, António Mota Redol), a obra fundamental Origens e Derivações do Neo-realismo Literário Português – Percursos de Leitura (2021). Neste volume, reúnem-se textos vários, desde os que abordam a influência do marxismo no Neo-realismo português, até aos artigos sobre Redol, Soeiro Pereira Gomes, Mário Dionísio, Cochofel, Joaquim Namorado, Romeu Correia, Orlando da Costa, Manuel da Fonseca, Egito Gonçalves, Cardoso Pires e muitos outros, incluindo precursores do Neo-realismo como Aquilino, ou alguns dos seus críticos principais (Óscar Lopes) a par daqueles em cujas criações literárias se projecta ainda a luz do Neo-realismo (Sttau Monteiro, Ary, Fernando Miguel Bernardes, entre outros). 

 

Não me lembro de nenhuma recolha de artigos em volume que reúna um conjunto tão significativo e diverso (isto é, abrangendo tantos escritores e escritoras) de análises e leituras sobre esse movimento incontornável da literatura portuguesa do século XX. Por isso e por outros motivos, é esta uma obra fundamental para quem queria conhecer em maior profundidade as poéticas neo-realistas e os seus protagonistas.

 

Domingos Lobo é, além do que fica dito, um autor de ficções e de textos para teatro. No primeiro caso (ficcionalizando amiúde a partir do que foi a sua vivência angolana) editou Os Navios Negreiros Não Sobem o Cuando (1993, Prémio de Ficção Cidade de Torres Vedras), Pés Nus na Água Fria (1997), As Máscaras Sobre o Fogo (2000), As Lágrimas dos Vivos (2005), Território Inimigo (2009) e Largo da Mutamba (2015, Prémio Literário Alves Redol 2013).

No domínio teatral, é autor de Cenas de Um Terramoto (2010), Não Deixes que a Noite se Apague (2009, Prémio Nacional de Teatro Bernardo Santareno) e A Fome dos Corvos e Outros Pretextos Teatrais (2020). 

 

Lobo possui ainda uma obra vasta no campo da criação poética: Voos de Pássaro Cego (1998); As Mãos nos Labirintos (2003); Para Guardar o Fogo (2010, Prémio Literário Cidade de Almada 2009); Lisboa, Modos de Habitar (2014); A Pele das Sombras (2011); Os Dias Desarmados (2018); O Rosto em Ruínas (2020); e Quotidianos e Outras Noites (2020). 

 

Em síntese, uma obra ampla e com múltiplas facetas, que abarca os três modos literários fundamentais e que importa conhecer e reconhecer. 

 

José António Gomes

 

IEL-C – Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais da Escola Superior de Educação do Politécnico do Porto

 

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

NERVO N.º 12 – REVISTA DE POESIA A LER E A SEGUIR

Aí está o número 12, Setembro-Dezembro de 2021, da Nervo, a bela revista de poesia dirigida pela poetisa Maria F. Roldão, que principia com o editorial “Desobedecer ao cânone: a coragem da edição”. Entre outras coisas refere esses dois ‘heróicos’ editores/escritores que foram Vítor Silva Tavares (& etc.) e Luís Pacheco, o inesquecível autor de “Comunidade” e doutras pérolas (oh, como me lembro bem de, nos idos de 75 ou 76, o ver a tentar vender pedras da calçada no café Piolho, do Porto, estava eu nos alvores da juventude e a revolução na rua…). Se o título do texto de Maria F. Roldão remete para a pretensa “desobediência” a cânones destes senhores já é coisa mais discutível, porque na verdade todos os grandes autores que editaram já eram praticamente canónicos quando foram por eles publicados (Cesariny, Herberto, Natália e muitos outros). E se não eram, em breve o vieram a ser. Além do mais, a & etc. editou inúmeros clássicos do século XX e não só. Verdade também que ambos deram a conhecer autores novos e não canónicos, em especial Vítor Silva Tavares. No que talvez tenham sido menos “canónicos”, mais irreverentes foi nos modos de editar e distribuir, e nas belas aventuras editoriais que nos legaram (e louvados sejam por isso, ou também por isso). Isto mesmo destaca, e bem, Maria F. Roldão.


A capa de Cristina Troufa parece-me extremamente sugestiva, assim como os desenhos da mesma artista que ilustram esta Nervo, que continua a trazer-nos diversidade de latitudes linguístico-culturais: temos poetas portugueses e poetas traduzidos: Amparo Parra (Cuba), vertida por Zetho Cunha Gonçalves, menos interessante talvez que Hans Wap (Holanda), traduzido por Fernando Venâncio; e Ronaldo Cagiano, poeta brasileiro radicado em Portugal. São todos eles poetas que reclamam leitura, mas diferentes. Cagiano termina a sua série com esta graciosa “Dialética”: “Foi nos outlets do afeto / que ele encontrou um amor / sem defeitos.” Os poemas de Wap, que é também artista plástico, atraíram em especial a minha atenção de leitor – e a versão de Venâncio (a mim que não sei Neerlandês mas leio um pouquinho em Alemão) parece-me conseguida e convincente enquanto poema-em-português.


Acho muito bons os poemas de Maria Azenha (não obstante o tom depressivo mas cortante e a questão da morte que os assombram) – poetisa que integra, nesta “Nervo”, um leque de vozes já conhecidas e mais antigas da poesia portuguesa. Dele fazem parte Isabel de Sá, Nuno Dempster, Nunes da Rocha ou José Luís Borges de Almeida que exibem registos distintivos, o terceiro no poema em prosa. Nos mais jovens (chamemos-lhes assim, por comodidade de expressão), encontramos Amândio Reis, Cláudia Capela, João Cardoso Vilhena, João Silveira – todos eles poetas merecedores de leitura atenta (guardo para já uma certa vibração – incluindo um toque de erotismo – e um registo muito pessoal que me captaram o ouvido e não só em Cláudia Capela). Denominador comum a quase todas estas poéticas: o carácter egóico dos discursos e, em vários casos, uma linha de referencialidade a remeter para quotidianos-de-agora, mais ou menos depressivos, de vivências e coloração diversas, aqui e acolá com aspectos de ironia e humor subtis. Quanto a Amândio Reis, e como é sabido, foi considerado por António Guerreiro (a cujas opiniões importa sempre estarmos atentos) uma das revelações da literatura contemporânea, figurando aqui com um texto de difícil catalogação, entre o poema e a narrativa (a reler). Ah, e retenho, entre muitas outras passagens, estes versos na ‘mouche’ de João Cardoso Vilhena: “Demoro anos a perceber um poema / Ler é uma actividade alucinatória / O sentido chega como uma visão”.


Muito bem-vindo também é o ensaio final sobre Teixeira de Pascoaes, de Sofia A. Carvalho, estudante de doutoramento a ultimar tese sobre o poeta amarantino. Em boa hora. Intitula-se o texto “Teixeira de Pascoaes – ‘O Pobre Tolo’ e as ‘três pessoas dum poeta’ ”.

Caso para dizer: no meio dos dias agressivos e regressivos que vivemos, a Nervo é um oásis de cultura e de poesia, um bocadinho ao lado das capelas do costume (sem exagerar, porque já lá temos visto também um ou outro capelão). E vale mesmo a pena ser lida, ser seguida e divulgada.

 

João Pedro Mésseder

 

sábado, 18 de setembro de 2021

Pó Sobre Pó, de Manuel Silva-Terra: livro de poesia irrecusável

 

Leio este belo Pó Sobre Pó, recolha de poemas de Manuel Silva-Terra, graficamente muito cuidado, com a chancela da editora brasileira Urutau (Cotia – SP, 2021), e pergunto-me: como dizer, em poucas palavras, algo que abra uma frincha para esta escrita sem provocar pisadura na auréola do livro? 

Poemas sem título que se sucedem uns aos outros nas cerca de 74 páginas do livro, um em cada página, e com uma reconhecível unidade temática e de registo vocal, eu diria que Pó Sobre Pó quase pode constituir um poema único, que principia com a noite, a ela sucedendo a manhã diluindo-se depois as marcas do tempo, sem que o tempo deixe de estar no centro de todo o poemário.

Com ecos hölderlinianos e rilkeanos (e há qualquer coisa de Wanderung – «fez do caminho a sua morada», p. 42 – nesta sucessão de textos), trata-se duma poesia de reflexão existencial, de pensar solitário sobre o(s) lugar(es)/tempo(s) do sujeito no mundo – como se tal solidão fosse condição de aprofundamento do pensar. Mas esta é também a escrita duma busca: uma alternativa ao desgaste, à tensão, à «ferida», cuja sombria presença de algum modo se pressente. 

Ora essa saída descobre-se numa espécie de reatar da ligação umbilical à Natureza, uma religação ao natural a que vários poemas dão expressão («Regressas pois à harmonia dos sons / Ao eco na montanha / À luz dourada dos frutos», p. 29). E uso o termo religação, porque, aqui e acolá, se dá conta dum tom quase religioso no dizer desta poesia tão intensa e tão parca (o que muito me agrada) em referências directas ao eu. E também por isso, e pela viagem, nos vêm à mente a tradição nipónica do haiku e do haibun (embora aqui não haja prosa) e a lição do Bashô viandante.

Cometerei a ousadia de me apropriar de um poema do livro para tentar aludir à demanda deste sujeito poético:

 

Este foi salvo pela poesia das coisas

Pelas palavras iluminadas e iluminantes

Pelas brasas que cauterizam a ferida

 

Aquele outro foi salvo pelo recolhimento

que praticou junto das sementes

e dos animais e das árvores

 

Outro foi salvo pela acção

Pelo desapossamento de si

Pela sua entrega aos outros (p. 67)

 

Lendo a totalidade de Pó Sobre Pó (a poeira que se levanta do caminho e torna a pousar?; a poeira que todos somos?) e lendo estas três imagens de caminhos de vida patentes na composição que acabo de citar, ousaria dizer, a terminar, que o livro de Manuel Silva-Terra corresponde porventura à expressão de uma demanda situável entre o que, no poema, é dito no primeiro terceto e o que é dito no segundo.

E desta maneira tento uma síntese, empobrecedora é claro, dum livro em boa verdade irresumível e imparafraseável, que proporcionará, estou certo, intensos momentos de leitura.

Com, até ao momento, cerca de uma dúzia de livros publicados, belos e singulares, e diversas antologias de poesia «de outros séculos e lugares» (p. 73), Manuel Silva-Terra continua a ser um poeta que urge ler, sendo Pó Sobre Pó, talvez, uma das suas melhores obras.

 

José António Gomes

IEL-C – Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais da ESE do Porto 

 

 

quarta-feira, 28 de julho de 2021

Pitões das Júnias, de Aurelino Costa e Anxo Pastor

Que livro bonito este que mão amiga me fez chegar às mãos: Pitões das Júnias (2.ª ed., Porto: Blue Book, 2020). Diz-nos o paratexto da capa (sugestiva capa) esta curiosa coisa: «Tões» de Aurelino Costa com Anxo Pastor. E, na sua ignorância, mesmo depois de pesquisar a etimologia de Pitões e de Júnias, o leitor procura construir sentido(s): sugere-se que «tões» é poemas (os quais são sempre combinação de som e sentido)? Aponta-se para tons? Para pequenas pinceladas de som (passe a sinestesia) vinculadas ao topónimo com que «tões» intencionalmente rima?

Apego-me a esta última acepção para dizer que o que nos propõe este livro são, precisamente, pequenas notas em verso inspiradas por esse belíssimo território comunitário do Gerês que dá título ao livro – notas que configuram uma poética pontilhista cujo visualismo nos cativa. Mas também um modo muito peculiar de sentir a terra, a montanha e os seus sortilégios, sentir homens, mulheres e bichos, sentir as casas: «Pela trave / Ciranda / A aranha // E um fio / Da teia / Une // O que rareia» (p. 37). 


Estamos, pois, como estes versos evidenciam, ante uma escrita próxima das brevidades poéticas orientais, que procura captar a essência dos instantes. E o que Mário Cláudio afirma, num comentário de apresentação citado a fechar o livro, a leitura o confirma: «(…) brevíssimos poemas, aliás compondo um poema único, constituem uma lição de telurismo e espontaneidade, de contenção e de limpidez» (p. 61).


Os micro-poemas de Aurelino Costa (poeta, conhecido diseur e advogado, nascido em Argivai, Póvoa de Varzim em 1956) dialogam, em Pitões das Júnias, com as aguarelas doutro poeta também pintor, Anxo Pastor, originário da Galiza, onde nasceu em 1959.


As aguarelas são um elemento fundamental da beleza dum livro graficamente muito cuidado. Um verde tendencialmente escuro contrasta com pequenas notas de castanho claro, amarelo e azul, buscando a aproximação às cores da terra que a poesia intenta capturar. Apostando na sugestividade e em traços dos quais se valorizou a espontaneidade expressiva, as imagens de Anxo Pastor fazem deste objecto um lindíssimo álbum marcado pela unidade duma paixão comum pela terra. 


A terminar, um dos poemas mais longos do livro (p. 55), mesmo assim breve, com o qual a obra encerra (mais um dos textos em que as liberdades gramaticais do poeta se nos impõem como verdadeiras liberdades poéticas):

 

Vem a Primavera

Tira-se o esterco

Para semear a batata e o milho

 

Vem a satcha

E depois o feno 

 

O centeio corta-se a punho

Atam-se as messes

É carrá-lo

 

Relincham as galochas nos pés

É inverno

 

 

José António Gomes

 

IEL-C – Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais da ESE do Porto

segunda-feira, 14 de junho de 2021

Jorge Palma, Diane di Prima e a Poesia Beat – “Por ti mandava arranjar os dentes / e comprava um colchão”



Gosto especialmente do Palma’s Gang ao vivo no Johnny Guitar, em 1993. Pegarei numa das suas mais conhecidas canções: “Cara d’anjo mau”. E porquê? Por, a propósito desta canção, Jorge Palma escrever em nota, no folheto do CD: “Tinha que fazer alguma coisa, depois de encontrar a Jane do Toulouse-Lautrec e de abusar da Diane di Prima, com mais ou menos poemas de amor. Tinha que fazer alguma coisa.”

Descontado o episódio autobiográfico, este apontamento diz-nos de onde vem o Jorge Palma-leitor. O tal “abuso” de Diane di Prima (Nova Iorque, 1934 – São Francisco, 2020), poeta da beat generation, reside na circunstância de se escutar na última estrofe da letra: “Por ti mandava arranjar os dentes / e comprava um colchão / por ti mandava embora o gato / por quem tenho tanta afeição / por ti deixava de meter o dedo / no meu nariz / por ti eu abandonava / o meu país”. 


Palma utiliza aqui uma anaforização estilística e sobretudo cita, nos 1.º, 2.º, 5.º e 6.º versos, quase ipsis verbis, dois pequenos fragmentos de um poema semelhante de Diane di Prima, incluído na série intitulada “Mais ou menos poemas de amor”. E onde a leu o nosso cantor? Pois bem, numa histórica Antologia da Novíssima Poesia Norte-Americana (pp. 93-95), que tinha foto de Ginsberg na capa, e que havia sido publicada pela Futura em 1973, com organização, prefácio e tradução de Manuel de Seabra (1932-2017). Seabra foi um contista, romancista, poeta e tradutor injustamente esquecido, que viveu grande parte da sua vida em Barcelona, primeiramente exilado, e que teve um relevante papel na tradução para Português de poesia catalã, russa (por exemplo Maiakovski) e de outras latitudes geolinguísticas.


A sua Antologia da Novíssima Poesia Norte-Americana foi muito lida e comentada, antes e logo a seguir ao 25 de Abril de 1974, e alguns poemas que nela figuram tiveram influência indiscutível em textos concretos de vozes como Jorge Sousa Braga, Jorge Fallorca, Artur Rockzane, José Soares Martins, José Pinto Leite e outros. Talvez também em escritos de Manuel Resende, de Paulo da Costa Domingues e de Carlos Tê. A partir dela, muitos foram à descoberta das edições norte-americanas ou francesas de Allen Ginsberg, Jack Kerouac, Lawrence Ferlinghetti, Gregory Corso, Gary Snyder, Frank O’Hara e outros. Um exemplo: O “Portugal”, de Jorge Sousa Braga, publicado em 1981 no seu livro de estreia De Manhã Vamos Todos Acordar com uma Pérola no Cu,  descende em linha directa do “América” de Ginsberg, que figurava a pp. 30-35 dessa célebre antologia. No Brasil, Paulo Leminski (1944-1989) e Ana Cristina César (1952-1983) são apenas dois dos poetas influenciados pelo mesmo tipo de leituras.


Feminista e lutadora pelos Direitos Humanos, Diane di Prima – que atraía, além do mais, pela sua beleza juvenil e pela liberdade de costumes que a faria desaguar no movimento hippie – foi igualmente imitada. Tal aconteceu, por exemplo, por via do seu livro Revolutionary Letters, de 1971 (capa de Ferlinghetti) – que adquiri na Shakespeare & Company de Paris, talvez em 1973 ou 1975, e de que cheguei a traduzir um par de poemas. A di Prima devemos ainda, entre muitos livros, Memórias de uma Beatnick (Memoirs of a Beatnick), publicado pela Teorema, em 1999, com tradução de Maria Augusta Júdice e com uma bonita foto da autora na capa. Vale a pena ler, para conhecer Diane di Prima, o olhar dela sobre os seus companheiros de geração e o que veio a seguir.


Jorge Palma, cujas letras iniciais muito devem também a este clima literário, artístico e sociocultural beat, já tardio, de inícios de 70, leu Diane di Prima na velha e preciosa antologia (e tradução) de Seabra. E ainda bem que assim foi. Gosto imenso da sua canção. E guardo uma certa ternura pela escrita de Diane di Prima.

 

Pode escutar aqui a canção de Jorge Palma.

 

João Pedro Mésseder

 

quinta-feira, 6 de maio de 2021

Revisitar Mário-Henrique Leiria

Em anos recentes, a editora E-Primatur levou a cabo o projecto, altamente meritório, de edição da obra completa do surrealista Mário-Henrique Leiria (1923-1980). Os três grossos volumes deste companheiro de lides artísticas de Cesariny, António Maria Lisboa, Pedro Oom, Cruzeiro Seixas e doutros foram dados à estampa com os cuidados editoriais e críticos da estudiosa brasileira Tânia Martuscelli e são os seguintes: Obras Completas de Mário-Henrique Leiria – Volume 1 – Ficção (2017), Obras Completas de Mário-Henrique Leiria, Volume 2 – Poesia (2018) e Obras Completas de Mário-Henrique Leiria – Volume 3 – Manifestos, Textos Críticos e Afins (2019).

Mas já em 2016 a E-Primatur havia reeditado Casos de Direito Galáctico e Outros Textos Esquecidos (posteriormente seriam incluídos no volume 1 das Obras Completas), obra que reúne Imagem devolvida: Poema Mito (1974), Casos de Direito Galáctico / O Mundo Inquietante de Josela: Fragmentos (1975), Conto de Natal para Crianças (1975) e Lisboa ao Voo do Pássaro (1979). 

Este volume de 2016 mantém as belas ilustrações originais de Cruzeiro Seixas e as fotos de João Freire, além de um prefácio de Cesariny ao primeiro dos livros aqui incluídos (alguns em fac-símile). O texto de 1979 é um poema que dialoga com uma série de fotos – dos mais belos que foram escritos em torno da Revolução portuguesa e dos anos subsequentes. O de 1974 – na verdade produzido muito antes – é um bom exemplo de um escrito surrealista; os de 1975 representam certa faceta interventiva do surrealismo que, em alguns casos, reconheça-se, fez mais pela luta pela liberdade e pela democracia do que muito romance engagé. Os Casos e Josela ilustram a presença da ficção científica (FC) na nossa literatura e na obra do autor, mais como moldura do que propriamente como propósito de fazer FC, até porque são, isso sim, exemplos de subversivo humor crítico. 

Trata-se, portanto, de um volume a não perder de alguém que era um estimável poeta e artista visual, dentro dos princípios surrealistas, mas sobretudo um contista que é não só um dos pioneiros da ficção breve em Portugal, mas também um autor de textos de admirável sentido de humor, quase nunca dissociáveis de um propósito de crítica social e política. 

 

José António Gomes

IEL-C – Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais da ESE do Porto

 

 

domingo, 25 de abril de 2021

Uma mensagem-poema de Ana Biscaia










dia de seiva, de corrida, de mãos e mais mãos e mais mãos,
de árvores carregadas de gente: eram pessoas pássaros. 
dia sonhado, e parido, de tão sonhado que foi. 
dia de derrube da estaca fascista.
dia de programa aventuroso, 
de programa avançando cheio de vozes cantando. 
dia daqueles que são vivos 
e daqueles que vieram e virão depois de nós. 
homens cegos saindo à rua 
em liberdade. veio o fotógrafo e fez-lhes o retrato. 
era impossível negar a evidência do sonho e da poesia abrindo ruas, 
e a evidência da luz em todas as cidades recortadas. 

 

Ana Biscaia

quinta-feira, 18 de março de 2021

Da poesia de Rita Taborda Duarte a Roturas e Ligamentos e As Orelhas de Karenin


Nascida em Lisboa, em 1973, e com um mestrado em Teoria da Literatura, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa – intitulando-se a sua dissertação Crítica e Representação: Da Aporia na Crítica de Um Texto Poético –, Rita Taborda Duarte é professora do ensino superior e a sua atividade como crítica literária, sobretudo de poesia, deixa rasto bem visível em diversas publicações periódicas especializadas, como o antigo suplemento literário do Público e as revistas Relâmpago e Colóquio-Letras, entre outras.

Assim, o conhecimento desta também escritora de belíssimos e desafiadores livros para crianças e jovens deverá principiar com a descoberta da sua singular poesia de preferencial destinatário adulto: livros como Experiências Descritivas: dos sentidos das coisas / círculos (Duarte, 2007), em co-autoria com André Barata; Elogio do Outono(Duarte, 2014); Roturas e Ligamentos (Duarte, 2015); e As Orelhas de Karenin (Duarte, 2019), ilustrados respetivamente por Luís Henriques (os dois primeiros), André da Loba e Pedro Proença, entre outros títulos de poesia.

Sendo impossível analisá-los todos neste espaço – até pela sua relativa complexidade conceptual – registem-se, no entanto, alguns aspetos marcantes destes volumes. Em primeiro lugar, a circunstância de serem livros de poesia ilustrados e graficamente muito cuidados (a materialidade e a paratextualidade do objeto é, desde logo, activadora de sentidos), confrontando sempre o leitor com um desafio: a leitura da possível intersemiose palavra/imagem. 

Em segundo lugar, trata-se de colectâneas estruturadas de modo muito estudado, por vezes divididas em secções com títulos, obrigando a ler cada colectânea como um livro, com unidade e coerência próprias, e não como simples recolha. 

Em terceiro lugar, são escritos cujos ecos intertextuais, não raro assumidos em epígrafes, não desejam passar despercebidos, e que ligam esta poética a vozes tutelares da poesia moderna e contemporânea de língua portuguesa, que a autora conhece bem – Pessanha, Pessoa, Ruy Belo, Herberto Helder, Luiza Neto Jorge, Ana Hatherly, Gastão Cruz, Manuel Gusmão, Manoel de Barros e outros –, a somar por exemplo a Tolstoi (em As Orelhas de Karenin) e a clássicos da Antiguidade: a Odisseia, as Metamorfoses de Ovídio e outras narrativas míticas. Um diálogo intertextual que, neste caso, explora as matrizes hipotextuais para propor, às vezes num registo parodístico entre o irónico e o amargo, visões de um «presente» relido à luz desses modelos clássicos. 

Destaque-se, ainda, a corporalidade, a fisicalidade, o erotismo (mas também o seu reverso: o tédio) que atravessam esta escrita de mulher, núcleos sémicos que, evidentemente, se relacionam com um léxico, uma imagética e um jogo linguístico individualizados; mas assinale-se também a recriação poética de episódios e situações que permitem ler, amiúde, um afirmativo eu feminino, implicado na assunção e defesa da sua identidade pessoal e sexual. Paixão, coita amorosa, abandono e desilusão, lamber de feridas – se a expressão me é permitida –, condição materna, meditação sobre o próprio acto da escrita são apenas algumas das linhas estruturantes dos últimos livros da autora, em que magníficos poemas como «Amanhando peixe fresco das manhãs» ou «Salto ao sexo» (ambos em As Orelhas de Karenin (Duarte, 2019: 25-26, 30-31), com excelentes ilustrações de Pedro Proença) tocam, inegavelmente, a sensibilidade do leitor, o interpelam e o desafiam a explorar as profundezas desta poesia de reconhecida qualidade. (E cumpre, de passagem, recordar aqui que As Orelhas de Karenin foi uma das obras finalistas do Prémio Literário Correntes d’Escritas 2021).

Atente-se ainda no belo e graficamente invulgar Roturas e Ligamentos, a obra anterior ao livro distinguido, em que as magníficas ilustrações de André da Loba combinadas com o design gráfico de Dulce Cruz, fazem do objecto-livro uma aventura visual, repleta de pequenos truques e efeitos de estranhamento. Uma visualidade à altura da escrita, acrescente-se, já que esta faz com que nos percamos e ganhemos nas suas composições, belas e estranhas, mas sempre cativantes: «o poema olha a imagem, já seca e enrugada. Diz-lhe, sorrindo, sorrindo sempre muito: ‘Que bonito!’, uma fotografia e toda em verso branco. // E perguntou-lhe, enfim, enquanto sorria em decassílabo: / – E sempre esteve morta, esta tua natureza?» (Duarte, 2015: 55). Tudo isto, apetece acreditar, porque «só se pode ser poema no outono», como declara o título de uma das composições (Duarte, 2015: 31). Em suma, uma meditação sobre a relação com o outro, sobre a condição feminina, sobre o amor e a dimensão erótica, que não deixa de ser muitas vezes reflexão sobre a linguagem e a própria escrita, enquanto teia amorosa – e sobre muitas outras coisas. Uma poesia merecedora de que nela nos demoremos. Tal como as imagens que quase sempre a acompanham.

Encontramo-nos, não restem dúvidas, perante uma das vozes mais interessantes, pessoais e desafiadoras da poesia portuguesa contemporânea. Uma voz que urge ler, reconhecer e dar a ler.

 

Referências bibliográficas

 

DUARTE, Rita Taborda (2007). Experiências Descritivas: dos sentidos das coisas / círculos. Lisboa: Caminho (em co-autoria com André Barata; ilustrações de Luís Henriques).

DUARTE, Rita Taborda (2014). Elogio do Outono. Lisboa: Edição 100 Cabeças (ilustrações de Luís Henriques).

DUARTE, Rita Taborda (2015). Roturas e Ligamentos. Lisboa: Abysmo (ilustrações de André da Loba).

DUARTE, Rita Taborda (2019). As Orelhas de Karenin. Lisboa: Abysmo (ilustrações de Pedro Proença).

 

José António Gomes

IEL-C – Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais da ESE do Porto

 

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

José Soares Martins, poeta de ruínas e bastiões

José Soares Martins é um poeta que importa ler. Um poeta que cria desde muito jovem, mas arreliadoramente inédito, tão inédito que apenas se conhecem os quatro livros breves que editou, três em co-autoria (Setembro, em 1984, na Plenilúnio; Ménage à Trois, em 2011, na Cordão de Leitura; e Bicho da Seda, em 2020, na Poética Editora) e um quarto, de sua exclusiva responsabilidade: Ruínas e Bastiões, publicado pela Chiado em 2021. Conhecem-se-lhe, além disso, não poucos poemas dispersos em várias publicações periódicas e colectâneas de poesia, vindas a lume desde finais da década de setenta do século XX. Mas José Soares Martins é, noutra vertente, um poeta das letras, na esteira de Dylan, Keith Reid, Carlos Tê e tantos outros cultores da lírica de qualidade em moldura musical: escreveu letras para as bandas Jafumega (dois álbuns e um single, com o popular tema “Ribeira”), João C. Bom e Johnny Johnny. De assinalar ainda a presença no Festival da Canção de 1986 com uma letra de canção defendida pela voz de Gabriela Schaaf. 

Enquanto guionista e em colaboração autoral, participou na sitcom “Clube Paraíso”, produzida e realizada pela RTP/Porto. Ainda em co-autoria, escreveu um tema do musical de Carlos Tê “Amor solúvel”, tendo participado com Carlos Tê e João Monge na canção “Mágoa das pedras”. Saíram da sua pena crónicas e folhetins publicados nos jornais Expresso, na revista do Jornal de Notícias, no Comércio do Porto e n’O Primeiro de Janeiro

Enquanto psicólogo, investigador doutorado e professor universitário com especialização em criminologia, publicou e participou em diversos livros, dicionários temáticos e revistas científicas. 

Dos seus folhetins narrativos (designadamente os saídos no Comércio do Porto) destacam-se elementos detectivescos e cómicos, burlescos, muito enraizados no conhecimento duma certa realidade portuense pequeno-burguesa e/ou de meios populares, com seus sociolectos, seus pequenos mitos e fantasias, suas fixações futebolísticas. 

Começando por aparecer em revistas portuenses algo marginais dos anos setenta, como AvatarQuebra-NozPé de Cabra, a poesia de Soares Martins, caracteriza-se em geral por certo fôlego discursivo, por um registo amiúde elegíaco e de tom exclamativo, e por uma musicalidade e ritmo singulares, girando em torno de um conjunto de núcleos temáticos: o enamoramento, a paixão e a separação; o topos do tempus fugit; a memória de lugares míticos percorridos efectiva ou imaginariamente pelo eu; a infância e a adolescência; a sensação de ruína de um certo mundo e o desencanto provocado pelo “falhanço de todas as revoluções”, na óptica de um sujeito lírico que, hiperbolicamente, se auto-representa quase como uma espécie de “viajante” do século XX. Trata-se também duma poética culta e povoada de alusões culturais (oriundas da literatura, da música, das artes visuais…), num frequente vaivém presente/passado no qual ecoam, por vezes, vozes referenciais: ora de românticos ingleses e de alguns portugueses, ora de um Cesário Verde, um Pascoaes, um Pessoa, a que se juntam ressonâncias imagistas e sinais de leituras juvenis de poetas da Beat Generation norte-americana, como Ferlinghetti, Ginsberg e outros.

Por ocasião da saída de Ruínas e Bastiões, o seu quarto título de poesia, A Inocência Descompensada foi entrevistar José Soares Martins (de quem podem ser lidos poemas recentes em Sobre o Lado Esquerdo – Poesia & Textos Afins). 

A Inocência Descompensada (AID) – És um poeta e homem do Porto, mas a tua infância está ligada também a uma certa meridionalidade (Lisboa, Almada...). Que reflexos na experiência de vida e na escrita?


José Soares Martins – De facto sou um poeta atlântico, habituado às brumas e aos nevoeiros. Nasci no casco histórico do Porto. Numa velha casa da Rua dos Ingleses, propriedade da minha Bisavó, que era enfermeira parteira e tinha uma clínica, em que fazia os seus partos e acompanhava as suas pacientes. Chegou a comprar um prédio em frente, onde hoje se encontra um pub tipo irlandês. No entanto, por motivos profissionais do meu pai, fui com um ano para Lisboa e daí para Almada, onde vivi até aos meus nove anos e meio, tendo descoberto a minha existência banhado pela luz do sul  e pelo sotaque alfacinha. O primeiro rio que conheci foi o Tejo, que atravessava todas as segundas feiras, quando ia a  Lisboa acompanhar o meu pai, que na volta me comprava Dinky Toys num bazar de Barros Queiroz e passarinhos na rua do Arsenal. As idas ao Coliseu e ao Chiado com a minha mãe e os lanches na confeitaria Garrett, as amizades que travei na vizinhança e no Colégio Frei Luis de Sousa, em Almada, foram determinantes para a minha costela do sul e lisboeta. Penso que a vinda para o Porto não me conseguiu moldar por completo. Sou alguém de dois locais, de duas geografias e de duas luminosidades. Vivo entre o Sol e as Brumas. Por isso sou simultaneamente um poeta lunar e solar. Gosto do Tejo como gosto do Douro. Gosto do mar da Caparica ou de Sesimbra como gosto do mar da Foz do Douro ou de Leça, ou de Caminha.

 

AID – Despertas cedo para a leitura? Como? Lendo o quê? 

JSM – Desde que me recordo de mim, que sei ler. Muito cedo tomei contacto com os livros. Os meus pais levavam-me à Feira do Livro e compravam-me  histórias infantis em pano, não em papel, para eu não as rasgar. Li os livros da Majora, a colecção Tonecas toda, bem como a Manecas. Já com cinco ou seis anos devorava às quintas feiras o Mundo de Aventuras e o Falcão Gigante, bem como o Capitão Trovão. Descobri cedo os heróis do oeste, Bufalo Bill, Kit Carson, Daniel Boone, David Crockett, Matt Dillon, Buck Rogers, Kansas Kid, Red Ryder entre muitos outros, a par do Tarzan, Jeff Jackson  ou do Mascarilha e o seu amigo Índio, o Tonto. Mais tarde foi a influência dos super-heróis sobretudo o Batman. Da banda desenhada passei aos Westerns da Agência Portuguesa de Revistas e da editorial Íbis, para desaguar nos policiais da Vampiro, da Xis, da Enigma, da Máscara, da Escaravelho de Ouro e da Rififi. Poirot, Sherlock Holmes, Perry Mason, Rouletabile, Philip Marlowe ou Sam Spade despertaram em mim o desejo de vir a escrever novelas policiais. Não descurar o papel de Júlio Verne, de Alexandre Dumas, pai, de Emilio Salgari. Mas acima de tudo a maior influência recebi-a da minha avó materna, natural de Macedo e de origem judia, que me contava histórias tradicionais portuguesas comigo sentado ao seu colo. E do meu avô materno que me fascinou com as suas histórias de África passadas durante a Primeira Guerra de má lembrança no norte de Moçambique, em Cabo Delgado. Só mais tarde descobri Walter Scott, Daniel Defoe, Charles Dickens, Eça, Camilo, Júlio Dinis, e os poetas Camões, Cesário, Pascoaes, Junqueiro, Pessoa, Bocage (que só conhecia das anedotas muito populares na minha infância) ou Soares de Passos. Depois foi o que se sabe, e que não cabe no escopo desta entrevista. 

 

AID – Quais os períodos das grandes experiências de vida e revelações? Em que lugares? 

JSM – O período das grandes descobertas opera-se com alguns encontros fundamentais. Com o Alonso, colega de longa data do [Liceu] Alexandre [Herculano] e que me abriu as portas para a literatura russa, sobretudo Gogol, Turgenev,Tchekhov, Lermontov. E o Mondego, que me fez descobrir filósofos como o Heidegger, o Kierkegaard, ou o Schoppenhauer, ou o Nietzsche. O Zé Tó [José António Gomes] com quem partilhei descobertas na música pop, rock, folk, no jazz, no cinema, sobretudo o italiano, e a literatura lida então, sobretudo Rimbaud, Baudelaire, Poe, os românticos ingleses, os imagistas e os Beat. Foi um período de aprendizagens múltiplas que coincidiu com os últimos anos da “primavera marcelista” e o 25 de Abril, marcados por intervenção política e pelas manifestações contra o regime, começadas na crise académica de 1969. Líamos Marx, Bakunine, Reich, Marcuse, Debord, Baudrillard, Sartre e tutti quanti. A pintura foi também uma descoberta fundamental, bem como alguns grandes romancistas então em voga: Celine, Steinbeck, Hemingway, Kerouac, Huxley, García Marquez, Jorge Luis Borges, Proust,  Kafka, Beckett, e os pintores, os impressionistas, os expressionistas e os surrealistas e mesmo a pop arte. 

 

AID – Há um certo novi-romantismo pós-moderno, não raro irónico, nos teus poemas. Concordas? Mescla-se com um desencanto em relação ao presente e com uma lamentação do que já foi e não volta a ser, até porque ligado ao tempo das grandes esperanças e de todos os sonhos. Melancolia? Descrença? Idade?

JSM – Penso que é um pouco de tudo. A idade, em que a ética da convicção, como diriam Max Weber ou Kant, cede lugar à ética da responsabilidade. Ou seja, à ideia de que é preciso ceder para se conquistar coisas. De facto, a psicologia social das minorias activas mostra-nos que as mudanças sociais ficam comprometidas com posições radicais. A história da Europa está cheia de boas ideias que se transformaram em pesadelos. Basta analisarmos a história do IRA, da Acção Directa, das Brigadas Vermelhas ou da Fração do Exército Vermelho ou da ETA, para já não falarmos das grandes Revoluções de 89 ou 17.  Depois, não basta a radicalidade, as vanguardas, sejam de que tipo forem, têm de estar em consonância com o ZeitGeist hegeliano. Ou seja, com o Espírito do Tempo. As sociedades precisam de estar maduras. Tem de existir um sentimento de fim de ciclo, de que algo está mal, uma certa estranheza de que falava o Freud e que o Kafka exibiu tão bem nos seus magníficos romances. A Idade e uma certa sabedoria, a que eu chamaria a patine do tempo. Como tu dizes e bem, há ainda o desencanto. O mundo não é um sítio seguro para ninguém. Às alegrias do 25 de Abril ou do Maio de 68 sucedeu o regresso à normalidade. Todas as revoluções desembocam no quotidiano sem história. O mesmo acontece com as paixões. É impossível viver-se infinitamente uma paixão. Daríamos em doidos!  Como diria o Vinicius, que o amor seja eterno enquanto dure.

Nas minhas influências existe a  presença de um pós-romantismo difuso, a busca do passado, do que já não existe mais. Daí a melancolia, a ideia de um "regresso" a locais e tempos onde fui de alguma forma feliz. A linguagem reflecte essas influências. 

Por fim o sentimento ou sabedoria de quem já se encontra no outono da vida e olha para trás  e vê que a vida passa rápida e que chegamos a "velhos sem dar por isso" como dizia a minha avó materna.  A isto tudo soma-se o estado do mundo. O tema da mudança e do desconcerto. O sentir que este mundo já é dos novos e não nosso.

A leitura dos românticos ingleses, sobretudo o Coleridge, com quem me identifico como poeta e como pessoa (na adolescência, cheguei a pensar que poderia ser uma reincarnação dele...), o Blake, o Shelley e o Keats tal como os alemães, Büchner, Novalis e Hölderlin ou Goethe, marcaram-me muito e abriram-me as portas para um certo novi-romantismo como tu muito bem  detectas, perfeitamente integrado na minha congénita melancolia, herdada da neurose da minha mãe e das minhas tias-avós irmãs do meu avô materno, algo esotéricas, amantes do ocultismo, de mesas pé-de-galo, de gatos e de cartas do destino e da minha avó materna médium, e da minha avó paterna, leitora da Kabala ou do meu pai com as suas capacidades de prever o futuro... Se em Almada já era acometido de momentos mais ou menos longos de melancolia, agravados quando a minha mãe esteve a morrer do parto da minha irmã, esses estados de espírito, com pânicos e insónias ensombraram-me a puberdade e a adolescência, a que o catolicismo não foi indiferente. Foi um longo período em que fiquei dependente dos psiquiatras e de valium, que ia roubar todas as noites ao cofre do meu avô. Ora isto coincidiu com as minhas primeiras paixões e o despertar da puberdade ou da primavera, para citar Frank Wedekind, e da poesia, quando li os poetas da Fénix Renascida, sobretudo Jerónimo Baía. A descoberta, como já referi, dos românticos foi decisiva para mim e continuou com a literatura gótica do Poe, com o simbolismo do Baudelaire, e do Rimbaud ou Pessanha. A Beat foi apenas o sucedâneo inevitável, tal como o surrealismo e os pré-rafaelitas na pintura. Ou o Bergman no cinema, que foi fundamental para mim, tal como o Resnais ou o Visconti e Fellini. Foi o tempo das viagens, das namoradinhas de praia, e das primeiras bandas de música na cave do meu tio Manecas que sempre me entendeu ou não fosse um irmão gémeo da minha neurose existencial.

 

AID – A tonalidade melancólica de alguns textos teus, no plano expressivo, vai beber a diferentes tradições, que aliás o poema assume nas suas múltiplas alusões literárias, culturais. Queres falar um pouco disso? E qual o lugar do Porto, cidade literária por excelência, nesse universo?

JSM – O Porto tornou-se o lugar geométrico das minhas deambulações diurnas e nocturnas. Com os seus nevoeiros e a sua chuva outonal, os seus granitos, os seus sinos, as suas igrejas e torres e o casco velho onde se situavam as casas dos meus avós e tios-avós, a Igreja de São Nicolau, com o velho turíbulo oferecido pela minha bisavó e onde os meus avós e pais e irmã se casaram, e onde eu fui baptizado. O Porto, a minha cidade, foi desde sempre o meu aleph borgeano. O centro e o umbigo do mundo. O cenário da minha poesia e de alguns contos fantásticos que escrevi. Já que as histórias de fantasmas, e de poltergeistsacompanharam toda a minha infância e adolescência, fizeram parte do meu quotidiano familiar. Daí a minha forte ligação a esta cidade e a este rio. Descobri mais tarde em Bruges, local do filme Malpertuis com o Orson Wells e a Susan Hampshire, algo parecido com a atmosfera londrina do Porto. Por isso a minha atracção pelo detective de Baker Street, pelo Jack the Ripper, que o  esotérico de Blake, Lovecraft e Pessoa mais aprofundaram. Já na faculdade e pouco depois da morte do meu avô materno, dei por mim num grupo de ocultistas de que faziam parte uma colega minha, a Guilhermina, o António Telmo e o Castro Ferreira, e dei por mim a ler Rudolf Steiner, Gurdjieff, Helena Blavatski, António Quadros e outros. Quanto a escritores que cantaram o Porto, tirando Soares de Passos um portuense ilustre e grande poeta, tivemos o Garrett, o Nobre, o Júlio Dinis, o Raul Brandão e o Camilo a que se juntaram as notáveis Sophia e Agustina Bessa-Luis. Claro que temos o Echevarría, o Guimarães, o Leonardo Coimbra, o Óscar Lopes, o Sena e o Agostinho da Silva. E mais próximos de nós o Eugénio, o Resende, o Pina… Mas eu senti sempre que nunca houve um poeta do Porto, como houve de Lisboa, por exemplo (Cesário, Gomes Leal ou Pessoa)...


Da esquerda para a direita: Miguel Cameira, José António Gomes, José Soares Martins, José Pinto Leite, António Torres. Café Piolho (Âncora d'Ouro), 1977.

AID – A ficção narrativa, e não apenas a poesia, também te atraiu. E logo desde a juventude. Que experiências te ocorre evocar neste domínio?

JSM – A narrativa sempre foi a minha grande paixão, herdada da minha avó paterna e do meu avô materno. No entanto, tirando umas tentativas de romance nunca acabadas, não passei de short stories, com influências diversas, desde o Lovercaft, passando pelo Gogol, pelo Bulgakov, e mais tarde pelo Raymond Carver. Claro que os diálogos eram inspirados no Hemingway, a estrutura no Faulkner, e a deriva psicológica na Virginia Woolf. Mas ainda estão por escrever os contos que gostaria de concretizar e que estão na minha cabeça há anos. E não sei se os escreverei um dia, mas tenho pena. Muita pena. 

 

AID – Outro campo da tua criação tem a ver com o texto dramático. Refiro-me ao guionismo...

JSM – Sim o guionismo foi a forma que encontrei para substituir o teatro, quer como dramaturgo, quer como actor. Aliás, houve sempre três ou quatro profissões que me atraíram: escritor, actor, historiador, e professor/investigador. Foi nesta última que mais apostei e consegui fazer alguma coisa de importante no âmbito das ciências sociais, psicologia social, sociologia e criminologia. Mas o guionismo foi uma boa experiência adquirida com o Afonso Grisolli, realizador brasileiro da Globo e autor d’”O Sítio do Picapau Amarelo”, da “Malu Mulher” e da “Teresa Baptista Cansada da Guerra” que foi um mestre para mim. Aprendi muito nesses dois anos de escrita televisiva com a companhia do Tê e do Álvaro Magalhães, tendo-me ocorrido a ideia peregrina de me dedicar à escrita de guiões para a televisão e para o cinema. Mas aquele ainda não era o tempo para essas aventuras. Quase não havia produção portuguesa e a que havia era em Lisboa. O Tê ainda escreveu um guião para um filme do Fernando Ávila, rodado no Porto, “Os Corações Periféricos”, onde eu fiz uma perninha como actor.

 

AID – Também foste desafiado para a escrita de letras de canções. Que memórias guardas dessa actividade? Que influências? E, já agora, que pensas da atribuição há anos do Nobel a Dylan?

Como sabes, o Carlos Tê foi o grande responsável pelo rock cantado em português. Até aí, havia tentativas tímidas e algo descoloridas, porque pouco urbanas, de um movimento idêntico ao que se tinha passado na Itália com os Area, por exemplo. Com o “Ar de Rock” e com o “Chico Fininho”, tudo mudou para surpresa do próprio Carlos, que havia escrito e composto o “Chico Fininho” para demonstrar o ridículo que era cantar em português temas urbanos em ritmo rock. O que aconteceu foi exactamente o contrário e de repente eram as editoras a exigirem letras em português. E foi aí que ele me apresentou aos Jafumega, para eu escrever letras para eles. Eu nunca tinha escrito uma linha a pensar em canções e descobri que fazer letras é difícil como o diabo. Uma letra tem uma difusão para um público vastíssimo, e tem de estar em sintonia com  a música. Mas tendo algum ouvido para a música e algum jeito para a escrita vai-se lá. E foi o que me aconteceu. Sobretudo com três temas, “Ribeira”, “Nó cego” e “Romaria”, para não falar de uma letra que escrevi para a Gabriela Schaaf, “Cinza e mel”, entre outras. Foi uma experiência curta, pois só colaborei num Single e em dois LPs. Depois foi uma colaboração esparsa com outras bandas, e a Gabriela Schaaf, como já disse, e o André Sarbib. 

É evidente que sofri a influência de muitos autores do meu tempo, sobretudo Dylan, Ray Davies, Phil Ochs, Keith Reid (o letrista dos Procol Harum), Paul Simon, Brassens, Fernando Brandt, Ferré, Godinho, Zeca, Zé Mário, Cohen, Fausto, Vitorino, Joni Mitchell, Jim Morrison... Mas as minhas maiores influências foram o Carlos Tê e o João Monge. 

Quanto ao prémio do Dylan absolutamente de acordo. Há poetas magníficos na música, desde o Dylan, passando pelo Cohen, pelo Nick Drake, pela Suzanne Vega ou pela Janis Jan. Aliás tanto a poesia grega, como o teatro eram cantados. A poesia provençal e sobretudo a galaico-portuguesa era cantada pelos jograis e segréis, que interpretavam os trovadores de então. Mesmo na grande tradição erudita, a música sempre procurou servir as palavras – vejam-se os madrigais de Monteverdi, ou as baladas de William Bird ou John Dowland. No romantismo os lieder de Schubert e Schumann são um dos pontos altos destes compositores, já para não falarmos nas Paixões do Bach, nas óperas do Haendel, do Purcell ou do Vivaldi. Ou nos grandes dramas de Wagner. Outro autor que mereceria o Nobel, em meu entender, seria o Chico Buarque.

 

AID – Falei do Bob Dylan, também porque sei como as referências musicais e músico-literárias são relevantes tanto na tua vida como na tua escrita. Verdade?

JSM – A minha poesia encontra-se muito ligada à música, sobretudo no seu início, anos setenta. Agora, embora reconheça a sua influência no meu percurso, gosto de escrever em silêncio e cada vez mais cultivo o silêncio, num mundo em que o silêncio é visto como uma maldição. A música como ruído atravessa a nossa vida, desde que nos levantamos até quando nos deitamos. Música ao telefone, música nos call centers, música nos elevadores, nas salas de espera dos consultórios médicos, nos supermercados, nos hiper, nos corredores das universidades, no WC... Parece que o homem tem medo de enfrentar-se diante do silêncio do Universo e da sua condição essencial de solidão.

 

AID – Para terminar com música: para onde te levam hoje as tuas escutas?

  

JSM – Bach, Haydn, Mozart, Beethoven, Schubert, Wagner, Mahler, Alban Berg, Luciano Berio, György Ligeti, Varese, alguns músicos de jazz, Jarrett, Evans, Miles, Coltrane, Chet Baker. Alguns pop como os Beatles, os Beach Boys, os Birds, os Doors, os Velvet, os Joy Division e alguns cantautores, como o Nick Drake, o David McWilliams, a Laurie Anderson, a Virginia Astley, e os grandes Frank Zappa, Bob Dylan, Cohen, ou Crosby, Stills, Nash & Young, sem esquecer o Little Richard e o Jimmi Hendrix. Não posso esquecer os franceses como Brassens, Ferré, Brel (na verdade belga), ou os italianos como Eugenio Finardi, Vinicio Capossela, os cantores da Ibéria como o Joan Manuel Serrat, o Paco Ibañez, os brasileiros, Milton, Chico Buarque, Caetano, João Gilberto ou Jobim. E os sul-americanos como a Violeta Parra, a Mercedes Sosa, ou o Atahualpa Yupanki. Ou o Pablo Milanés. Finalmente os portugueses: Sérgio, Zé Mário, Zeca e Fausto, sem esquecer a Amália e, mais recentemente, a Cristina Branco.



Entrevista conduzida por José António Gomes