domingo, 28 de junho de 2009

Insignificâncias significantes de Augusto Baptista

Recorrendo a uma imagem certeira, o excelente poeta e estimável crítico e divulgador de livros que foi Fernando Assis Pacheco referia-se algures à «enxúndia» da escrita, indício certo da frouxidão e mediocridade dos textos de muito autor, encartado ou não: as pragas do adjectivo redundante, do floreado, do ornamento inútil.

Vem esta consideração a propósito de Histórias de Coisa Nenhuma e Outras Pequenas Significâncias (Porto: Campo das Letras, 2000), que se encontra nos antípodas do que acaba de ser dito. Se quisermos aliás, e desde já, apontar algumas das suas virtudes (quase princípios de composição do conjunto de micro-narrativas que o livro nos propõe), poderemos falar em economia de meios narrativos e linguistico-expressivos, culto da elipse e do fragmento. Mas há mais. A por vezes desarmante simplicidade de alguns textos desconcerta. E o modo inventivo como se recorre aos efeitos de «estranhamento» e de surpresa – na última frase, ou até palavra (p. 60), de cada enunciado – abre um sorriso na alma, faz-nos pensar que o humor (ainda que amargo e até negro) não se encontra tão arredado assim da literatura nacional. Ou que, pelo menos, já regressou do exílio.

Basta ler o título desta obra do escritor, cartoonista e fotojornalista Augusto Baptista (e meditar um pouco no paradoxo que ele nos propõe) para adivinhar que, sob a máscara da insignificância (para a qual remete a expressão Histórias de Coisa Nenhuma), o que se pretende, isso sim, é fazer passar algumas pequenas (ou grandes?) significâncias. Como esta: «Deus a rir é o Diabo.» (p. 72). Ou esta outra, de sufocante actualidade:

«Sonhava escrever com a leveza do voo de um pássaro, assinar ofícios com o fulgor de uma estrela cadente, luz apenas.

Naquela tarde, gozo de menino a rabiscar paredes, resolveu adestrar a mão. Ritmos poéticos, a Parker corria leve no papel. Autónoma, precisa. Refulgências de ouro por baixo de “O Administrador Geral”. Ele absorto, perdido, cabeça longe.

Fez trezentas assinaturas assim. Trezentos ensaios perfeitos. Trezentos despedimentos de sonho.» (p. 95).

Por estas micro-histórias – quase apontamentos poéticos – de escrita salutarmente enxuta, passam a vida política, um flash ou outro dos pantanais autárquico e empresarial, o mundo citadino e o provinciano, e ainda o veraneante, o editor e o escriba, o pequeno-burguês, o empresário (estes eufemismos!), o proletário e o intelectual de café, as cenas da vida conjugal. Estamos, em suma, ante as inumeráveis situações de um quotidiano assediado (também) pelo que podemos chamar – recorrendo a um lugar comum – o absurdo da existência e reelaborado por um olhar de fotógrafo poeta e por um talento de contador de histórias. Vem a vida e diz «presente!», vem a morte e diz «presente!»; Deus e o Diabo espreitam; o amor e o ódio picam o ponto-nosso-de-cada-dia; faz-se ouvir, nas entrelinhas, o convite à insubmissão e à revolta contra as injustiças.

Procurar a genealogia destas histórias de desconcerto (por que não também de proveito e exemplo?) conduz-nos a territórios tão diversos como os do pequeno poema em prosa e do conto jocoso de raiz popular, do aforismo, do nonsense anglo-saxónico e do surreal-abjeccionismo. Mas à lembrança vêm-nos também as poesias de um Manoel de Barros e de um O’Neill, ou as breves narrativas (de grata memória) de um Mário Henrique Leiria ou de um Pedro Oom.

Já que «a morte é um facto horizontal» (p. 75) que nos surpreende ao virar de qualquer esquina, cultivemos a arte de viver. De olhos e ouvidos abertos. Histórias de Coisa Nenhuma dá-nos uma preciosa ajuda. Em troca, nem sequer pede ao leitor uma gargalhada. Mas este talvez não resista a soltá-la.

Uma pergunta: agora que começa, em Portugal, a falar-se de (e a publicar-se) microficção, e a construir a sua genealogia, como é que os apressados fazedores de antologias dos seus contemporâneos não repararam que, antes deles, existiam estes breves prodígios de Augusto Baptista?

José António Gomes

NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)

sexta-feira, 12 de junho de 2009

António Variações (3/12/1944 – 13/6/1984) | 1984-2009: vigésimo quinto aniversário da morte

Não é raro os discursos da cultura de massas surgirem habitados por uma agudeza de observação e um sentido intuitivo surpreendentes, que de quando em vez encontram meios ideais de expressão, como acontece na canção pop e noutras modalidades da chamada «arte popular».

De aparência estilisticamente rudimentar, este modo sintético e muito eficaz de traduzir a «verdade» sociológica (ou até política) de um tempo impõe-se e fica a ecoar na memória.

Sob a forma de uma cantiga, por exemplo, e recorrendo a lugares comuns do linguajar urbano, a estribilhos que são autênticos achados, à anadiplose, à repetição, ao inevitável diminutivo e a jogos rimáticos elementares, restituem-se os essenciais contornos de um período histórico, uma dinâmica social, uma certa cultura, uma sensibilidade… Um arco que vai de Capri, c’est fini a Maria Albertina, passando por L’Amour en Fuite (de Alain Souchon) para nos atermos à esfera da canção dita popular.

 

Maria Albertina

Maria Albertina

Deixa que eu te diga

Esse teu nome eu sei que

Não é um espanto

Mas

É cá da terra e tem

Tem muito encanto

 

Maria Albertina

Como foste nessa

De chamar Vanessa

À tua menina?

 

Maria Albertina

Deixa que eu te diga

Esse teu nome eu sei que

Não é um espanto

Mas

É cá da terra e tem

Tem muito encanto

 

Maria Albertina

Como foste nessa

De chamar Vanessa

À tua menina?

Que é bem cheiinha

E muito moreninha

Que é bem cheiinha

E muito moreninha

António Variações | Humanos, As Canções que António Variações nunca Gravou, 2004

 

 

José António Gomes

NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)