domingo, 30 de agosto de 2009

Fronteiras, de Manuel Tiago: o simbolismo do cruzar das raias

Iniciada em 1974 com a publicação de Até amanhã, camaradas, a obra de Manuel Tiago, pseudónimo de Álvaro Cunhal, inclui, além deste romance inaugural, escrito alguns anos antes, durante a prisão do autor, mais três romances, a novela Cinco dias, cinco noites, cuja primeira edição data de 1975, e quatro edições de contos, a mais recente de 2003, altura em que sai a público Lutas e vidas. Um conto.

A questão do pragmatismo da obra literária de Cunhal não pode ser contornada, uma vez que, mais do que recriar o mundo, revisita o universo que tão bem conheceu e cada uma das suas personagens, associadas à resistência, representa as facetas múltiplas do militante comunista. Para alguns críticos, como é o caso de Eduardo Cintra Torres, o protagonista dos seus romances mais emblemáticos é sempre o PCP, centro de toda a acção e alvo dos maiores elogios, o que resulta, no caso de Até amanhã, camaradas!, num «romance de tese, didáctico e escrito num estilo realista apagado» (Torres, 2005).

Contudo, parece-nos que a obra, mesmo que ideologicamente marcada, mantém, como elemento estrutural mais relevante, a articulação de uma dimensão épica, claramente conotada com a exaltação da actividade da resistência comunista, com outra fortemente trágica, ligada à tradição, ao fascismo, à reacção e ao fatum que persegue a identidade portuguesa. Da leitura das obras, sobressai, com particular intensidade, a dimensão humana e individual da resistência que se esconde por trás do aparelho ou da máquina partidária. Através da atribuição de um nome, uma identidade e uma personalidade aos homens e mulheres anónimos, figuras da resistência e da clandestinidade, prefigura-se uma espécie de registo paralelo às crónicas oficiais e à historiografia, uma vez que as personagens são tomadas como exemplos de sacrifício e de altruísmo em prol de um ideal. Assim, os vários volumes sublinham com particular intensidade a (sobre)vivência do PCP na clandestinidade durante os anos difíceis da ditadura fascista, traçando, em paralelo, a história do país e a do partido, desde as lutas dos anos 30, com a participação na Guerra Civil Espanhola, à contemporaneidade, passando pelas reestruturações e desenvolvimentos ocorridos na década de 40 (designadamente a famosa «reorganização» da qual Álvaro Cunhal foi um dos protagonistas).

Neste sentido, é possível ler os textos assinados por Manuel Tiago à luz das tendências do romance histórico contemporâneo, na esteira das inovações introduzidas pela narração de acontecimentos históricos a partir de perspectivas originais, muitas vezes opostas às oficiais e ao discurso historiográfico por excelência. Assim, a conotação com uma certa marginalidade ou oposição em relação ao poder, contrária à versão oficial, parece funcionar como uma tentativa de redenção de uma história esquecida que, graças à ficção, é iluminada.

A mais homogénea das colectâneas de contos de Manuel Tiago é Fronteiras (1998), obra caracterizada pela persistência do tratamento do tema da transposição das raias. Os contos descrevem múltiplas viagens realizadas em diferentes sentidos (ida e regresso; Portugal / Espanha; França / Espanha; Países de Leste) e com objectivos também distintos.

No caso dos textos aqui reunidos, é necessário perceber como o simbolismo da ideia de fronteira se repercute na mensagem dos textos, surgindo associado à ideia de isolamento, fechamento e, claro, de Ditadura. As fronteiras representadas são fechadas à passagem das personagens que, desta forma, são obrigadas a contorná-las, procurando formas alternativas de as transpor. A viagem, por seu turno, associada à sua superação de obstáculos, é sinal de resistência, de busca de liberdade e da abertura perdidas e que se procura, a todo o custo e com sacrifício da própria vida, resgatar.

Em casos muito concretos, trata-se de viagens de fuga à perseguição fascista, a caminho do exílio. Outras são viagens claramente iniciáticas, de formação de militantes comunistas nos países de leste (ou do seu regresso a Portugal). Protagonizadas quer por personagens masculinas quer, em casos muito pontuais, por personagens femininas – veja-se como no conto «Mulheres pelo Soajo» elas são física e psicologicamente colocadas à prova e, apesar das enormes dificuldades, das quais saem vencedoras, são ainda capazes de sorrir e fazer humor. A dimensão humorística percorre vários textos e surge associada a situações imprevistas. Deste modo, o cariz anedótico que ressuma de um ou outro texto – veja-se o comentário da mulher que, depois de atravessar o Soajo a pé, lamenta o abandono do chapéu brasileiro, ou a troca da mala das peles e da roupa íntima pela dos materiais destinados à guerrilha – sublinha a humanidade que os caracteriza, narrativas de e sobre gente comum, muitas vezes imperfeita. A presença do acaso, do inesperado ou do acidental acentua essa dimensão pessoal, subjectiva e irrepetível que caracteriza os acontecimentos aqui descritos.

Parcialmente devedores da atmosfera da novela Cinco dias, cinco noites, alguns textos retomam, de forma sintética, a temática do «salto» a pé da fronteira realizado em condições muito difíceis. É o que acontece em «O passo dos Pirinéus», onde a resistência e a perseverança dos dois companheiros (assim como o companheirismo que os une) são postos à prova.

De comboio, a pé ou de barco, são várias as formas escolhidas para passar as fronteiras. Em comum, os cruzadores têm, para além do apoio do Partido e dos seus contactos e ligações, outros homens e mulheres que colaboram na fuga. Essa solidariedade aproxima os viajantes, mesmo quando as viagens são realizadas em total silêncio: «Notável compreensão e disciplina. Nem falavam nem fumavam, que um clarão, mesmo do morrão de um cigarro, brilha na noite escura como uma estrela e as palavras, mesmo ditas em voz baixa, atravessam as distâncias no silêncio da atmosfera parada. Não lhes via o rosto, mas sabia e sentia que aqueles homens eram trabalhadores, seus companheiros, talvez alguns seus camaradas. E, sonhador, se alguma coisa pesava no sentir da nova experiência que estava vivendo, era não poder conhecê-los, falar-lhes, viver com eles momentos de trabalho e luta das suas vidas.» (Tiago, 1998: 16). Nos contos, mesmo nos mais breves, cruzam-se muitas histórias e outros tantos mistérios. Há segredos que nunca são revelados como se uma espécie de código de silêncio permitisse a comunicação.

Os textos dão conta de momentos de fugazes encontros e separações. O contacto com outros países, os seus habitantes, outras línguas e culturas, permite constatar a existência de uma rede internacional organizada, capaz de colaborar no apoio aos movimentos dos comunistas pela Europa. Quando essa rede revela falhas é o momento de se porem à prova as competências individuais. Com maior ou menor esforço, cada um dos viajantes encontra forma de superar os obstáculos e prosseguir viagem e a luta em que está empenhado.

Assim, todas as narrativas compiladas em Fronteiras têm um final feliz. Funcionam, cada uma à sua maneira, como episódios exemplares do movimento de resistência comunista rumo à vitória sobre as ditaduras e a opressão. O seu agrupamento em livro sublinha a dimensão épica dos textos e a leitura destes homens e mulheres, anónimos na sua maioria, como heróis de uma resistência cuja história merece registo. Mais do que fugas, cada uma destas viagens simboliza um passo dado em relação à liberdade.

Referências bibliográficas

TIAGO, Manuel (1974). Até amanhã camaradas!. Lisboa: Edições Avante!.

TIAGO, Manuel (1975). Cinco dias, cinco noites. Lisboa: Edições Avante!.

TIAGO, Manuel (1998). Fronteiras. Lisboa: Edições Avante!.

TIAGO, Manuel (2003). Lutas e vidas. Um conto. Lisboa: Edições Avante!.

TORRES, Eduardo Cintra (2005). «Manual do Militante e Epopeia do PCP» In Público, [disponível em http://static.publico.clix.pt/tvzine/critica.asp?id=3102]

Ana Margarida Ramos

(Universidade de Aveiro; membro associado do NELA - Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)