sexta-feira, 18 de junho de 2010

SARAMAGO (1922-2010)

"(...) Nunca me teria passado pela cabeça a ideia que a ti te ocorreu, negar um facto histórico absolutamente incontroverso, Nem eu próprio saberia dizer hoje por que o fiz, Em verdade, penso que a grande divisão das pessoas está entre as que dizem sim e as que dizem não, tenho bem presente, antes que mo faças notar, que há pobres e ricos, que há fortes e fracos, mas o meu ponto não é esse, abençoados os que dizem não, porque deles deveria ser o reino da terra, Deveria, disseste, O condicional foi deliberado, o reino da terra é dos que têm o talento de pôr o não ao serviço do sim, ou que, tendo sido autores de um não, rapidamente o liquidam para instaurarem um sim (...)"

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JOSÉ SARAMAGO (Azinhaga, Golegã, 16/11/1922 - Lanzarote, 18/06/2010, 12:30 h)

História do Cerco de Lisboa, Lisboa: Caminho, 1989, p. 330.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Voltar Atrás para Quê?, de Irene Lisboa: prenúncios de morte

A publicação, pela Editorial Presença, das obras completas de Irene Lisboa (1892-1958) se, por um lado, colmatou uma lacuna, por outro, veio suscitar reflexão sobre o injusto esquecimento a que foi votada esta escrita a todos os títulos notável. Colocou-nos, também, perante o imperativo da sua (re)descoberta, numa época em que a valorização (quantas vezes excessiva e desfocada) de alguma produção ficcional recente nem sempre anda a par de um olhar renovado sobre certas obras de um passado não muito distante, como a de Irene, cuja irradiação deixa na sombra, de forma por vezes inapelável, as pseudo-ousadias de alguns textos que nos são contemporâneos.

No quarto volume da colecção «Obras de Irene Lisboa», Voltar Atrás para Quê? (Lisboa: Presença, 1994), talvez nos interesse menos a história, quase vulgar, da infância e adolescência de uma rapariga deserdada, não perfilhada, cuja vida se reparte entre uma província sufocante e uma certa Lisboa pequeno-burguesa, hoje esbatida, em cujos bairros novos, na viragem do século XIX para o século XX, se ouviam ainda os ecos de uma vida campesina. No plano diegético, estamos perante a história de uma mutilação afectiva e da resistência dolorosa aos efeitos desse corte: «Enfim, ela foi resistindo, tanto que... e põe agora a cabeça na mão direita (jeito velho); tanto que... Ficou nos seus dezoito anos, não ficou?» (p. 139).

É claro que a novela nos atrai pelo modo como evoca acontecimentos e estados de espírito como o desenho subtil de complexos fantasmas sexuais ou a expressão do crescente desprezo pelo círculo de mulheres cínicas e mesquinhas que envolve a protagonista numa teia de mentiras, traições e agressões, até à quase neutralização da sua personalidade e da sua condição de mulher – operada, aliás, com a semi-cumplicidade de um pai, com o qual é mantida uma relação de extrema ambiguidade.

Não obstante, o que verdadeiramente seduz é o modo como alguns temas são abordados: uma temporalidade que se faz escrita, um olhar (o nosso) que, a pouco e pouco, vai derivando para o trabalho da memória que a palavra (catártica) transfigura e para o qual o próprio título, desde logo, aponta. Voltar Atrás para Quê? ergue, assim, um espectáculo solitário e doloroso: no declinar da vida, alguém reconstrói um tempo que foi o seu, entregando-se, simultaneamente, a um fascínio total pelo poder evocativo da sua própria linguagem – mantendo acesa, do princípio ao fim, uma paixão sem limites pela palavra –, num crescendo em que, à maneira de Proust, pretextos insignificantes desencadeiam, por vezes, lembranças poderosas que a escrita potencia.

No início, é possível ler: «Ela desatou o pacote de papéis, muito atado, metido numa pasta de cartão, e recomeçou a relê-lo. Já o conhecia. Tinha-o escrito e lido (...). Tão inútil é viver, reviver um passado longínquo, de raízes secas... (...) Começava assim:» (p. 19). Somos confrontados com alguém que sobreviveu a uma «atormentada» juventude (p. 20), entretanto filtrada pela sua própria escrita, e que a ela volta, cinquenta anos depois e já perto do fim, em busca das suas origens, perseguindo um tempo que passou. A imagem que esse espelho lhe devolve não é, porém, a de um tempo paradisíaco, salvo num ou noutro momento de comovida descoberta das palavras, da natureza, da beleza de um corpo, ou do vago afecto de um pai entretanto perdido. A personagem descobre, sim, os prenúncios da sua morte, inscritos, já, num rosto ainda infantil, desde cedo violentado na sua inocência.

É o modo como este sentido trágico se manifesta, de forma contida, numa prosa de singular expressividade, que nos aprisiona e encanta, também pelo seu registo intimista e oralizante, em Voltar Atrás para Quê?, onde a cintilação da escrita tem o dom de restituir, por momentos, a ilusão de que o ser se perpetua através da palavra.

Destaque-se o lúcido prefácio de Paula Morão (v. também Morão, 1989), a quem se ficou a dever o extremo rigor com que a reedição das obras de Irene Lisboa foi sendo conduzida: um texto que valoriza a edição em apreço, ao abrir inúmeras pistas para uma leitura sempre renovada de Voltar Atrás para Quê? (1.ª ed., 1956), articulando-o com Começa uma Vida (1940), livro com o qual forma «o essencial do núcleo autobiográfico da obra de Irene Lisboa» (p. 7).

Referência bibliográfica

MORÃO, Paula (1989). Irene Lisboa: Vida e Escrita. Lisboa: Presença.

José António Gomes

NELA – Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto