quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

David Mourão-Ferreira: “O grande leitor” (Eduardo Prado Coelho) e “Ladainha dos póstumos Natais”

O grande leitor

Foi com a minha avó Deolinda, que era professora do primário da época, que aprendi a ler, mas foi com David Mourão-Ferreira que aprendi verdadeiramente a ler um texto. O David era um leitor extraordinário. Partia de dois princípios: primeiro, que era necessário traduzir um texto, não por alto, mas em todas as suas articulações, para o começar a compreender (traduzir um poema é uma tarefa fascinante); em segundo lugar, que era preciso aprender a dizê-lo em voz alta para continuar a perceber o que o poema queria dizer (ou, se preferirem, aquilo que ele dizia sem querer). Como se diz num poema de Zeca Baleiro aproveitado para uma canção por Simone, "eu não sei dizer / o que quer dizer / o que vou dizer". O que se verifica é que este querer dizer é uma decisão de ninguém. Do dizer em si mesmo.
O David chegava à aula e pegava num poema barroco. Lia-o e nós entendíamos como uma voz dá corpo ao poema. Ficávamos deslumbrados. Mas, para além desse momento de arrebatamento, havia toda a fase analítica. Porque amar implica trabalho. E nisso é que David era um leitor admirável – e único. Grande poeta, grande tradutor, era também um grande intérprete vocal dos poemas. (…)

Eduardo Prado Coelho, “O grande leitor”, Público, 1-11-2005

Ladainha dos póstumos Natais
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Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que se veja à mesa o meu lugar vazio
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Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que hão-de me lembrar de modo menos nítido
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Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que só uma voz me evoque a sós consigo
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Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que não viva já ninguém meu conhecido
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Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem vivo esteja um verso deste livro
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Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que terei de novo o Nada a sós comigo
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Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem o Natal terá qualquer sentido
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Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que o Nada retome a cor do Infinito
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David Mourão-Ferreira
Obra Poética

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Requiem para o Navegador Solitário, de Luís Cardoso

Dez anos depois do seu romance de estreia, Crónica de uma travessia. A época do Ai-Dik-Funam (1997), Luís Cardoso dá à estampa um livro onde voltam a cruzar-se as linhas estruturantes da sua obra, a questão da identidade, entendida em termos individuais e nacionais, e da História, ficcionalmente recriada como uma espécie de mola que faz movimentar os homens, controlando e definindo as suas acções.

Protagonizada por Catarina, uma jovem chinesa iludida por sonhos de príncipes encantados e histórias de amores felizes, que se desloca para Timor onde espera reunir-se ao seu noivo, a narrativa dará conta do processo de crescimento e de amadurecimento da personagem, feito à custa de desilusões, desgostos, injustiças e muito sofrimento, uma espécie de metáfora da história do próprio território que simultaneamente a acolhe e renega.

Apanhada numa encruzilhada histórica particularmente difícil, mesmo antes do início da 2.ª Guerra Mundial, a protagonista e o território timorense, que com ela se confunde, parecem sofrer as violentas ondas de choque de todos os conflitos latentes num mundo cuja ordem e equilíbrio se revelam precários.

A rejeição do noivo seguida da sua violação física abrem as portas para uma sucessão de pequenas tragédias pessoais que a obrigam a crescer muito rapidamente, destruindo-lhe os sonhos infantis e a inocência, mas também a submeter-se a vários homens para sobreviver. O rapto do filho, a ostracização da comunidade e a perseguição dos habitantes locais destroem-lhe todas as ilusões e obrigam-na a viver numa nova realidade e a construir uma nova identidade. Mesmo o aparecimento do navegador solitário, Alain Gerbault, cujo livro a acompanhara desde a casa da família, uma espécie de derradeira esperança de felicidade pela qual aguardara desde a chegada a Timor, depressa se desvanece com a morte deste. A ocupação japonesa e os difíceis anos da guerra vividos num território aparentemente neutral marcarão indelevelmente a personagem, conduzindo-a a uma espécie de auto-exílio voluntário no barco do navegador.

A partilhar o protagonismo (e o fascínio que a caracteriza) com Catarina está o próprio território timorense. Complexo e contraditório, personificando várias tensões internas e sofrendo consequências das pressões externas, Timor parece uma embarcação oscilando ao sabor das marés, ora perseguindo os habitantes nativos, ora se revoltando sucessivamente contra as vagas de ocupadores. Recriado ficcionalmente como uma espécie de território à deriva, Timor parece determinado numa demanda difícil pela sua afirmação. Violentado sucessivamente por diferentes invasores, assemelha-se a Catarina pela forma como parece manter uma dignidade original, reconstruindo-se sucessivamente, adoptando novas facetas e alguns disfarces, construindo uma identidade frágil, destinada à sobrevivência mais imediata.

O motivo do duplo, de presença assídua no romance, é sintomático da centralidade da reflexão sobre a identidade, verdadeiro fio coesivo da história. Várias personagens surgem divididas ou assumem posições contraditórias, exprimindo uma dualidade aparentemente irresolúvel. É o caso do administrador Malisera e do sipaio Marcelo, duas faces da mesma moeda da resistência ao poder branco; de Catarina, a Grande…, e a Outra, a gata de jade que também conquista Alberto Sacramento Monteiro e os outros capitães do porto que vão passando pela sua vida; mas também de Catarina e Madalena, as duas mães dos filhos de Alberto, duas penélopes tecedoras de sonhos e coleccionadoras de gatos que esperam marinheiros perdidos no mar; da própria figura do capitão do porto que se desdobra em várias personagens que, afinal, são variações da mesma; de Alain Gerbault, o navegador solitário do livro e da imaginação de Catarina e o seu fantasma doente que regressa para morrer em Díli; dos australianos e dos japoneses, facções rivais da guerra, ocupantes violentos do território e das gentes; de Diogo e Esperança, o filho roubado e a filha morta, símbolos do futuro incerto que espera o território timorense.

A opção de Catarina de abandonar o veleiro e o tesouro, única forma de escapar a Timor, ao passado e às consequências da guerra, em troca da ténue esperança de rever o filho, ficando cativa do território que a persegue e critica, revela bem a mudança operada no íntimo da personagem, uma vez aberta a caixa de Pandora e revelado o seu destino:

«O destino de uma mulher é uma caixa de Pandora. Nunca se sabe o que tem dentro. A sorte pode ditar um príncipe encantado. Nem sempre o desejado. Apaixonar-se por um marinheiro pode ser uma aventura sem retorno, como quando se entra pelo mar, quando as tempestades recomendam que se fique em terra. Sujeita-se a ser largada ao primeiro toque de rebate. Depois deambula à espera de ser resgatada por um coração de manteiga. Que o têm também os marinheiros solitários, viajantes em busca de outros ares, caçadores de fortunas, olheiros de mundos mágicos, músicos à procura de novas sonoridades, místicos no encalço do maravilhoso, escritores de histórias trágico-marítimas e pintores de paraísos que se vão apagando com o tempo» (pp. 12-13).

Ana Margarida Ramos

(Universidade de Aveiro; membro associado do NELA - Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)

Ficha

Luís Cardoso,

Requiem para o Navegador Solitário

Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2007

sábado, 18 de setembro de 2010

José Gomes Ferreira: a juventude aos 110 anos

«Parece que faz parte das leis da literatura alguns grandes autores terem de passar por um período de imersão, não sei em que águas paradas, para ganharem lá no fundo os louros, com que regressam para sempre à superfície.» Assim se refere Mário de Carvalho 1 a José Gomes Ferreira, poeta nascido há cento e dez anos em Santo Ildefonso, no coração da cidade do Porto e do velho bairro popular da Fontinha, palco de alguns dos primeiros passos do movimento operário portuense em meados do século XIX. Não obstante as suas origens burguesas, viu a luz no meio da que viria a ser a «sua» gente: esses pobres que invectiva no poema «Pobres, gritai comigo: / Abaixo o D. Quixote (…)» («A Morte de D. Quixote», Poeta Militante, I, 4.ª ed., pp. 74-5), ou seja, os explorados e oprimidos pelos quais combateria, por palavras e actos, ao longo da vida. Curiosamente a rua em que nasceu tem o nome de Rua das Musas, lugar que dir-se-ia ter fadado este homem para se tornar voz marcante da poesia portuguesa do século XX. Apesar de, em 1904, se ter mudado com os pais para Lisboa, não esqueceu nunca o lugar de origem que evoca por mais do que uma vez na sua escrita: «Na rua das Musas / onde nasci já aos gritos / (que nunca acordaram / ninguém); / foi na Rua das Musas / onde ainda hoje as lágrimas / fabricam lama / nas lajes de granito / que jurei por ti, mãe, / tornar o sol menos imundo» (Poeta Militante, III, 4.ª ed., p. 202).

Morreu, em 1985, então «com a idade do século». Para trás ficara uma vida de diplomata (entre 1926 e 1930, após concluir em 24 o curso de Direito), de colaborador na imprensa, cronista e tradutor (trabalhou na legendagem de filmes) mas, sobretudo, uma vida de escritor e «vagabundo de sonhos», de democrata e lutador antifascista que, tendo convivido com muitas das principais figuras intelectuais do século XX português, foi grande amigo e por vezes colaborador de artistas como Ofélia e Bernardo Marques, Fernando Lopes-Graça, Carlos de Oliveira, João José Cochofel, Mário Dionísio, Augusto Abelaira, Maria Velho da Costa e tantos outros. Além da poesia (hoje reunida nos três volumes de Poeta Militante, da Dom Quixote), publicou ficções, crónica, diário, teatro, ensaios e literatura infantil. Refiro-me, neste caso, a esse «panfleto mágico em forma de romance» que é As Aventuras de João Sem Medo.

Em 1933, num tempo em que vivia sobretudo de colaborações na imprensa escrita assinadas com os mais diversos pseudónimos (aquilo a que mais tarde vem a chamar «literatura alimentícia») e durante um período de intensa convivência com figuras como Eduardo Chianca Garcia ou Ofélia e Bernardo Marques (seus compadres), José Gomes Ferreira aceita um convite de António Lopes Ribeiro para colaborar semanalmente num conhecido jornal infantil da época chamado O Senhor Doutor.

Nessas páginas viu a luz a primeira versão de As Aventuras de João Sem Medo, assinada com o pseudónimo «O Avô do Cachimbo» e ilustrada por Ofélia Marques, obra que o poeta apenas editaria em livro, após revisão profunda, em 1963, com uma dedicatória aos filhos, o arquitecto Raul Hestnes Ferreira e o poeta Alexandre Vargas, este último ainda criança no início dos anos sessenta.

Sujeito a posteriores revisões de título, subtítulo e texto, o livro tornar-se-ia a obra mais lida de José Gomes Ferreira (em Abril de 1999, atingira a 19.ª edição, na Dom Quixote) e alguns críticos, como Alexandre Pinheiro Torres, considerá-lo-iam até a obra-prima do autor. Este nutria por ela particular ternura e, nas revisões do texto, feitas já depois dos sessenta anos, sempre se esforçara «por lhe conservar toda a frescura do improviso dos 30 anos», aquela mistura dos seus dois retratos de Fred Kradolfer e de Ofélia Marques: «o dos “passarinhos” e o do “lobo”» – como afirma na Nota Final da 2.ª edição.

E o livro é com efeito notável, evidenciando o tão injustamente esquecido talento de José Gomes Ferreira para a escrita de ficção. Os conhecedores da sua obra lírica (em particular, das inventivas imagens e da rêverie poética de-pés-assentes-na-terra que tornam modernos e inesquecíveis muitos dos seus versos) não estranham o poder de reinvenção verbal, a cativante oralidade do discurso narrativo, a metáfora surpreendente, a arte de contar e o humor desarmante que singularizam a escrita de As Aventuras de João Sem Medo.

A matriz da obra encontramo-la no maravilhoso popular que o autor conhecia bem (nos anos cinquenta, organizou com Carlos de Oliveira uma imprescindível antologia de Contos Tradicionais Portugueses em quatro volumes, ilustrados por Maria Keil). Invertendo e subvertendo a lógica desse maravilhoso, propõe uma narrativa que constitui, em simultâneo, uma sátira social (por vezes vêm à memória Jonathan Swift e Lewis Carroll), uma alegoria política (numa das versões o subtítulo escolhido é «panfleto político em forma de romance») e um libelo contra o conformismo. Figuração desse conformismo é a aldeia de «Chora-Que-Logo-Bebes», de onde o indómito João Sem Medo resolve esgueirar-se, cansado da «chorinquice» e «da miséria que gelava as casas» e cobria «de verdete» os homens que viviam na povoação – grotesca imagem do Portugal amordaçado e bafiento do salazarismo.

A viagem empreendida pelo herói permite-lhe viver uma série de movimentadas aventuras (nas quais se confronta com figuras tão estranhas como o homem sem cabeça, a árvore dos dez braços, o gramofone com asas, o príncipe das orelhas de burro, o ciclope, o João Medroso – duplo do protagonista – e a menina dos pés ocos), aventuras que terminam com o regresso a Chora-Que-Logo-Bebes, onde «provisoriamente» e enquanto espera pela ocasião propícia para «secar as lágrimas» da terra, João Sem Medo «montou uma fábrica de lenços e enriqueceu».

Conhecedor das estruturas do conto maravilhoso, José Gomes Ferreira (muito antes da divulgação de A Morfologia do Conto de Vladimir Propp) cria situações que são «quase sempre doutrinariamente, o reverso ou “avesso” delas», como assinalou Alexandre Pinheiro Torres; e «a série de interdições características no conto tradicional não deixa de se encontrar representada (…), sendo transgredidas por automatismo, mas enquanto no conto tradicional de raiz folclórica as “propostas enganosas” dos variados inimigos que o Herói tem de enfrentar são sempre aceites (segundo nos declara Propp), João Sem Medo nunca as aceita» 2. Pinheiro Torres mostra ainda como, partindo do tema do «desconcerto do mundo» e do topos do «mundo ao revés», de larga tradição literária, Gomes Ferreira constrói a sua alegoria, virando do avesso, por assim dizer, símbolos mítico-populares ou étnico-proverbiais ou mesmo «seres literários ou do mundo da fábula» (a Fada representada como um homem vestido de mulher, as «inversões de funções do tipo dos travestis dos pares Eurídice-Orfeu, D. Quixote-Dulcineia, ou a Cigarra e a Raposa, a Rã e o Boi, a Raposa e o Corvo, etc.») 3.

Alegoria política «da má-consciência que aflige o cidadão português apolitizado, mas que aceita sem rebelião activa a sua imanência como objecto», João Sem Medo suplanta, na opinião de Pinheiro Torres 4, outras narrativas alegóricas de fundo político, como as de Karel Capek ou Animal Farm de Orwell.

Com notáveis incursões na novela, no romance (O Sabor das Trevas, 1976), na narrativa curta (entre o irónico e o comovido – lê-se em testemunho 5 de Urbano Tavares Rodrigues) e na crónica-conto (O Mundo dos Outros, 1950), José Gomes Ferreira legou-nos ainda saborosas páginas quer de memórias (A Memória das Palavras ou o Gosto de Falar de Mim, 1965, e outros títulos) quer de diário e, vale a pena lembrá-lo, deu-nos um dos mais sentidos relatos da manhã do 25 de Abril de 1974 – que hoje podemos ler no terceiro volume de O Poeta Militante (4.ª ed., 1998, pp. 319-22).

A escrita de Gomes Ferreira pertence a uma linhagem que entronca em vozes tão diversas como as de Raul Brandão e Teixeira de Pascoaes, mas passa também pelo neo-realismo de que foi contemporâneo (e a que também estiveram vinculados alguns dos seus amigos dilectos, como Carlos de Oliveira, que a seu modo romperia os limites dessa corrente estética). No hoje mal tolerado neo-realismo quiseram alguns, apressadamente, arrumar a obra de José Gomes Ferreira, sem atentarem no encanto e na graça de uma prosa alicerçada no vivido, e na sua permanente e já referida rêverie poética traduzida em inventivas imagens e cachos de metáforas que, de algum modo, ligam também a sua poesia à escrita surrealista, como bem notou Jorge de Sena em carta dirigida ao poeta: «(…) pelo carácter intempestivo e visual das suas constantes imagísticas, em que como que um surrealismo nominalista surge a evocar, a fixar, a definir, a tornar significativos os momentos líricos que outra poesia menos rica se limitaria a registar com embevecida melancolia. É isto mesmo, a recusa ao embevecimento perante o próprio lirismo que mais caracteriza o seu e lhe dá uma força simultaneamente moderna e clássica» 6.

Pensando nas palavras de Sena, direi que essa «mulher de carne azul, / semeadora de luas e de transes» que «atravessou o vidro / e veio, voadora, / sentar-se ao meu colo / na nudez reclinada / dum desdém de espelhos» (Poeta Militante, I, 4.ª ed., p. 313), essa imagem de sonho cantada no belíssimo conjunto de poemas que é Eléctrico (1956), assumiria outras e variadas formas ao longo do singular percurso poético de José Gomes Ferreira. Tal caminho, feito de ousadas imagens inscritas no onírico, não o impediu de manter bem assentes na terra os seus pés de homem e de escritor, incapaz de dissociar a sua actividade de criador dos seus compromissos morais e cívicos, mas tendo sempre presente que «a poesia não é um dialecto / para bocas irreais. / Nem o suor concreto / das palavras banais» (Poeta Militante, II, 4.ª ed., p. 307).

Comprovam esta atitude, entre muitos outros, os versos que escreveu a partir de numerosos acontecimentos sociais e políticos do seu tempo e também, por exemplo, na sequência da prisão, em 1955, do filho, Raul Hestnes Ferreira, encarcerado nos calabouços da PIDE à Rua do Heroísmo. Aí o visitava o pai, experiência dolorosa de que falam os poemas da série «Comboio», «canto de amor (…) pelo Porto e pela liberdade», no dizer de Manuel António Pina, esse Porto que é «presença constante na poesia de José Gomes Ferreira» 7: «Porto / – cidade de luz de granito. // Tristeza de luz viril / com punhos de grito.» (Poeta Militante, II, 4.ª ed., 1991, p. 285).

Em Janeiro de 1971, escreve no seu diário: «Confesso o meu pecado: tenho utilizado a Poesia como arma de combate, a minha única arma possível, embora sem ilusões, pois sempre a considerei uma débil espada de papel. Mas com esta sinceridade que nunca me larga, quero também ter a franqueza de dizer que, na maioria dos casos, a poesia-arma-de-combate me tem soado muitas vezes como um estratagema – inconsciente, claro – para evitar os verdadeiros combates e fingir que não se foge8. Sabemos, no entanto, que José Gomes Ferreira não era dos que fugiam. Quem apaixonadamente atravessou o século, experimentando angústias e júbilos, mas também com sentido crítico e auto-crítico e espírito revolucionário; quem, como o poeta, viveu os sobressaltos da 1.ª República e fez a travessia da longa noite salazarista/marcellista; ou, após a Guerra de 14-18 e a Revolução Socialista de Outubro na Rússia, assistiu, de Lisboa, ao esmagamento da República Espanhola, à ascensão do fascismo na Europa, à Segunda Grande Guerra e ao Holocausto e, por fim, à vitória sobre o nazismo – não poderia manter-se indiferente aos dramas e convulsões do seu tempo histórico.

Escrita como se de um diário se tratasse, a escrita poética de José Gomes Ferreira 9 é vivo e ininterrupto testemunho de um tempo de luta pela liberdade e pela dignidade humana, sem paralelo na poesia portuguesa do século XX. Um século cujos sofrimentos, ilusões e certezas ele viveu intensa, implicada e fraternamente, até experimentar a alegria de ver ruir, numa manhã de primavera, quarenta e oito anos de ditadura em Portugal: «Ainda assisti, ainda assisti à morte deste maldito meio século de opressão imbecil» – escreve em 25 de Abril de 1974. Mas a inquietação e o sonho não o abandonam e a sua luta prossegue. Ante aquilo a que chamou a agonia da Revolução («A Revolução agoniza», Poeta Militante, III, p. 371), ele, que sempre havia sido um activo companheiro das lutas pela democracia e pela liberdade, toma a decisão de se filiar, em idade já avançada, no Partido Comunista Português, «modo de eximir-se definitivamente – escreve Paulo Sucena – a uma posição contemplativa, ainda que crítica, (…) e assumir-se como poeta militante não só da poesia mas também da luta pela abolição das classes» 10.

Sonhando com «combustões / de novas flores / com pétalas de asas de liberdade / que só nascem e crescem regadas pelos gritos e lágrimas / das multidões», irmanado, assim, com poetas como Maiakóvski, Neruda, Éluard, Aragon, Brecht, Hickmet, Guillén, Carlos de Oliveira, Ary e tantos outros, José Gomes Ferreira deixaria aos que lhe sobreviveram, e aos que depois dele vieram, um testamento poético tocante, interpelador, que muitos ainda hoje conhecem de cor: «Não traio. / Porque insistes? / Não traio. (…) Povo, continua! Não pares a tua tempestade.» (pp. 377-8) 11.

Notas

1 Mário de Carvalho, texto sem título in Óscar Lopes et alii (org.): Recomeço Límpido: No Centenário de José Gomes Ferreira. Porto: Sector Intelectual do Porto do PCP, 2000, p. 66.

2 Alexandre Pinheiro Torres. Vida e Obra de José Gomes Ferreira. Venda Nova: Bertrand, 1975, p. 267.

3 Id., ibid., p. 266.

4 Ibid., pp. 277-8.

5 Urbano Tavares Rodrigues, «José Gomes Ferreira: a vida e o sonho», in Óscar Lopes et alii (org.), op. cit., p. 82.

6 Jorge de Sena, carta inédita publicada no Jornal de Letras de 31/5/2000, p. 19.

7 Manuel António Pina, «Luz de granito», Jornal de Notícias, 12/5/2000.

8 Páginas inéditas publicadas no Jornal de Letras, ed. cit., p. 16.

9 Para os não iniciados na poesia de J. G. Ferreira, sugere-se a leitura dos três belíssimos poemas incluídos por Eugénio de Andrade na sua Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa. Porto: Campo das Letras, 1999, pp. 397-9. Aos estudiosos recomenda-se a leitura de A Militância Melancólica ou a Figura de Autor em José Gomes Ferreira (Faro: 2006), de Carina Infante do Carmo (tese de doutoramento apresentada à Universidade do Algarve).

10 Paulo Sucena: «Nascimento de um poeta», in Óscar Lopes et alii, op. cit., p. 72.

11 Partes do presente artigo foram publicadas, em primeiras versões, nas edições de O Primeiro de Janeiro (Suplemento «Das Artes das Letras») e do Diário de Notícias, respectivamente de 7/6/2000 e 9/6/2000.

José António Gomes

NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)

domingo, 25 de julho de 2010

Enciclopédia da Estória Universal, de Afonso Cruz: Grande Prémio de Conto da A.P.E

Partindo de um motivo literário, a biblioteca imaginada, retomado por Saramago (releia-se as forjadas epígrafes dos seus livros), antes dele por Borges (não por acaso mencionado, a pp. 41, como um “deus burlão”) e por outros autores ainda, Afonso Cruz (n. 1971) articula, de forma lógica e com erudita habilidade, dezenas de fragmentos – que, amiudadas vezes, se apresentam como trechos de pretensos livros de reflexão filosófica, moral, científica… –, fragmentos esses que correspondem a outras tantas vozes de autores quase sempre imaginários. Em consonância com as expectativas criadas por um título desde logo irónico e que inscreve a obra na esfera do apócrifo (Enciclopédia da Estória Universal) – título estampado na capa sobre uma ilustração do próprio autor –, a organização desses fragmentos segue a ordem alfabética dos títulos/temas glosados.

Dos vários textos se tem de dizer que não se fixam num género (encontramos micro-contos, parábolas, lendas etiológicas, variações em torno de mitos, comentários de tipo filosófico, aforismos, haiku, provérbios orientais…) e o que lhes confere unidade é, em parte, a ironia, o humor, a tendência para a desconstrução de verdades feitas, clichés e noções cristalizadas pela tradição cultural e científica. Algumas das pretensas vozes autorais ressurgem, por outro lado, ao longo do livro, o que permite ao leitor ir esboçando perfis de personagens diversas que, por vezes, se comentam umas às outras.

A aparência de autenticidade dos fragmentos decorre, em primeira instância, da capacidade efabuladora e estilística do autor na criação de mundos possíveis, por vezes ancorados na História, mas também da circunstância de ser intencional e, não raro, irónico, o copioso diálogo intertextual com inúmeras obras literárias, filosóficas, religiosas e livros de sapiência oriundos de diferentes tempos (da Antiguidade Clássica à contemporaneidade) e lugares (do mundo Ocidental ao Oriente, passando pela África).

Em Enciclopédia da Estória Universal (Lisboa: Quetzal, 2009), o resultado deste trabalho criativo – que se distingue por uma escrita segura e por uma estrutura de algum modo original – é, quase sempre, uma inteligente, divertida e labiríntica paródia da história da cultura humanística e científica, que, no entanto, deixa entrever um discurso crítico cujo alvo é por vezes o presente (o neo-liberalismo, a desigualdade social, a justiça de classe…), desmontando certas dimensões do chamado pensamento único e pondo a nu as mais retorcidas facetas da existência humana.

José António Gomes

NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)

sexta-feira, 18 de junho de 2010

SARAMAGO (1922-2010)

"(...) Nunca me teria passado pela cabeça a ideia que a ti te ocorreu, negar um facto histórico absolutamente incontroverso, Nem eu próprio saberia dizer hoje por que o fiz, Em verdade, penso que a grande divisão das pessoas está entre as que dizem sim e as que dizem não, tenho bem presente, antes que mo faças notar, que há pobres e ricos, que há fortes e fracos, mas o meu ponto não é esse, abençoados os que dizem não, porque deles deveria ser o reino da terra, Deveria, disseste, O condicional foi deliberado, o reino da terra é dos que têm o talento de pôr o não ao serviço do sim, ou que, tendo sido autores de um não, rapidamente o liquidam para instaurarem um sim (...)"

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JOSÉ SARAMAGO (Azinhaga, Golegã, 16/11/1922 - Lanzarote, 18/06/2010, 12:30 h)

História do Cerco de Lisboa, Lisboa: Caminho, 1989, p. 330.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Voltar Atrás para Quê?, de Irene Lisboa: prenúncios de morte

A publicação, pela Editorial Presença, das obras completas de Irene Lisboa (1892-1958) se, por um lado, colmatou uma lacuna, por outro, veio suscitar reflexão sobre o injusto esquecimento a que foi votada esta escrita a todos os títulos notável. Colocou-nos, também, perante o imperativo da sua (re)descoberta, numa época em que a valorização (quantas vezes excessiva e desfocada) de alguma produção ficcional recente nem sempre anda a par de um olhar renovado sobre certas obras de um passado não muito distante, como a de Irene, cuja irradiação deixa na sombra, de forma por vezes inapelável, as pseudo-ousadias de alguns textos que nos são contemporâneos.

No quarto volume da colecção «Obras de Irene Lisboa», Voltar Atrás para Quê? (Lisboa: Presença, 1994), talvez nos interesse menos a história, quase vulgar, da infância e adolescência de uma rapariga deserdada, não perfilhada, cuja vida se reparte entre uma província sufocante e uma certa Lisboa pequeno-burguesa, hoje esbatida, em cujos bairros novos, na viragem do século XIX para o século XX, se ouviam ainda os ecos de uma vida campesina. No plano diegético, estamos perante a história de uma mutilação afectiva e da resistência dolorosa aos efeitos desse corte: «Enfim, ela foi resistindo, tanto que... e põe agora a cabeça na mão direita (jeito velho); tanto que... Ficou nos seus dezoito anos, não ficou?» (p. 139).

É claro que a novela nos atrai pelo modo como evoca acontecimentos e estados de espírito como o desenho subtil de complexos fantasmas sexuais ou a expressão do crescente desprezo pelo círculo de mulheres cínicas e mesquinhas que envolve a protagonista numa teia de mentiras, traições e agressões, até à quase neutralização da sua personalidade e da sua condição de mulher – operada, aliás, com a semi-cumplicidade de um pai, com o qual é mantida uma relação de extrema ambiguidade.

Não obstante, o que verdadeiramente seduz é o modo como alguns temas são abordados: uma temporalidade que se faz escrita, um olhar (o nosso) que, a pouco e pouco, vai derivando para o trabalho da memória que a palavra (catártica) transfigura e para o qual o próprio título, desde logo, aponta. Voltar Atrás para Quê? ergue, assim, um espectáculo solitário e doloroso: no declinar da vida, alguém reconstrói um tempo que foi o seu, entregando-se, simultaneamente, a um fascínio total pelo poder evocativo da sua própria linguagem – mantendo acesa, do princípio ao fim, uma paixão sem limites pela palavra –, num crescendo em que, à maneira de Proust, pretextos insignificantes desencadeiam, por vezes, lembranças poderosas que a escrita potencia.

No início, é possível ler: «Ela desatou o pacote de papéis, muito atado, metido numa pasta de cartão, e recomeçou a relê-lo. Já o conhecia. Tinha-o escrito e lido (...). Tão inútil é viver, reviver um passado longínquo, de raízes secas... (...) Começava assim:» (p. 19). Somos confrontados com alguém que sobreviveu a uma «atormentada» juventude (p. 20), entretanto filtrada pela sua própria escrita, e que a ela volta, cinquenta anos depois e já perto do fim, em busca das suas origens, perseguindo um tempo que passou. A imagem que esse espelho lhe devolve não é, porém, a de um tempo paradisíaco, salvo num ou noutro momento de comovida descoberta das palavras, da natureza, da beleza de um corpo, ou do vago afecto de um pai entretanto perdido. A personagem descobre, sim, os prenúncios da sua morte, inscritos, já, num rosto ainda infantil, desde cedo violentado na sua inocência.

É o modo como este sentido trágico se manifesta, de forma contida, numa prosa de singular expressividade, que nos aprisiona e encanta, também pelo seu registo intimista e oralizante, em Voltar Atrás para Quê?, onde a cintilação da escrita tem o dom de restituir, por momentos, a ilusão de que o ser se perpetua através da palavra.

Destaque-se o lúcido prefácio de Paula Morão (v. também Morão, 1989), a quem se ficou a dever o extremo rigor com que a reedição das obras de Irene Lisboa foi sendo conduzida: um texto que valoriza a edição em apreço, ao abrir inúmeras pistas para uma leitura sempre renovada de Voltar Atrás para Quê? (1.ª ed., 1956), articulando-o com Começa uma Vida (1940), livro com o qual forma «o essencial do núcleo autobiográfico da obra de Irene Lisboa» (p. 7).

Referência bibliográfica

MORÃO, Paula (1989). Irene Lisboa: Vida e Escrita. Lisboa: Presença.

José António Gomes

NELA – Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto

quinta-feira, 6 de maio de 2010

José Afonso: vivo e presente

Desde os seus primórdios coimbrões – marcados pelo benigno ascendente do chamado fado de Coimbra –, as canções de José Afonso sempre foram a simbiose perfeita de três dons: uma poesia singular, uma voz única (de timbre e coloração inconfundíveis) e um inato talento para a melodia. E ao falarmos de melodia, e também de ritmos, não é possível esquecer a fidelidade desta música às raízes mais profundas da música popular portuguesa, mas também a sua dívida em relação aos ritmos da África e do Brasil, para não falar da irmã Galiza – que sempre soube homenagear este nosso cantor com espectáculos, com discos, com versões recriadas das suas canções e até com uma lápide no Auditório da Galiza, em Santiago de Compostela.

Mas, além da sua qualidade musical intrínseca e da perenidade das suas cantigas (reinterpretadas por tantos artistas: Vitorino e Janita, Cristina Branco, Jacinta e tantos outros), também nos toca e nos marca, cada vez mais fundo, a indissipável aura de José Afonso como antifascista, democrata, lutador radical por um Socialismo verdadeiro. Toca-nos e serve-nos de exemplo a sua dimensão humana de companheiro fraterno e solidário, disponível para todo e qualquer combate em prol dos injustiçados deste mundo: os pobres, os sem-terra, os povos em luta pela sua dignidade e independência, os guerrilheiros da esperança. José Afonso ridicularizou como ninguém o salazarismo, mais tarde a rede bombista e a recuperação capitalista após o 25 de Novembro. Mas cantou também o amor, a amizade, os direitos da mulher. E vazou tudo isto em versos e melodias de alta temperatura musical e poética, mesmo naquelas composições em que não renegou a sua intimidade, a sua experiência pessoal e contradições, e se deixou imbuir (e bem) dos influxos do surrealismo, de um aparente nonsense ou do espírito das facécias populares.

Por muito que muitos o prefiram ignorar, a imagem, a voz e a obra de José Afonso converteram-se em símbolos do 25 de Abril (será necessário recordar a «Grândola», o «Venham mais cinco», «Os índios da Meia-Praia», a «Utopia»?), expressão da resistência de um povo em combate pela liberdade e por uma vida digna.

Vinte e três anos após a sua partida (nasceu em Aveiro, em 2 de Agosto de 1929 e morreu em Setúbal, em 23 de Fevereiro de 1987), a música de José Afonso está mais viva e actuante do que nunca. Venceu, como poucas, a lei da morte e o efémero. Muitos a guardam na memória e em cassetes, velhos discos de vinil e CD. E continuam a escutá-la. Isto porque a rádio, a nossa rádio, a silenciou e só conhece hoje um pacto com a mediocridade, o fácil, o insidioso pensamento único.

José Afonso, esse, está vivo. E bem vivo. A prova é ter-nos deixado alguns recados para o deprimente tempo em que vivemos. Um tempo de «primos convexos» que não parecem aperceber-se das «plantas carnívoras» e dos «corvos» que, cada vez mais, os/nos cercam e «trincam os calos»: os bancos e a alta finança, os grandes grupos económicos, os senhores gestores da riqueza deles e da miséria dos outros, as agências de rating (espécie de rotweilers do capitalismo), os directórios políticos da União Europeia – peritos em garrotear os povos – e os seus representantes em Portugal, que há mais de 30 anos desgovernam este desgraçado país. Termino, por isso, com um poema de José Afonso adequado aos dias de hoje:

Tenho um primo convexo

Tenho um primo convexo

Fadado para amnistias

Em torno dele nadam

Plantas carnívoras

Agitando como plumas

As cordas violáceas

O meu primo dormita

Glu glu entre palmeiras

Suspenso numa rede

De suor e preguiça

Corvos bicam-lhe os pés

Trincam-lhe os calos

Enquanto a tarde jaz

E a mão suspende

O gesto de acordá-lo

E a terra treme

Mas de nada o meu primo se apercebe

José António Gomes

NELA – Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto