sexta-feira, 22 de março de 2013

ÓSCAR LOPES (Leça da Palmeira, 2 de Outubro de 1917, Porto, 22 de Março de 2013)



Abril. Sempre.

A etimologia não resolve nada só por si, mas levanta pistas, às vezes insuspeitas, às vezes óbvias mas esquecidas.
Por exemplo, o título desta colectânea1. Sempre. Na sua origem latina mais antiga, há um elemento sem – que, curiosamente, está também na base de semelhante, de simultâneo e de singular. A noção fundamental que lhe corresponde é a de uma unidade, singularidade ou conjunção, seja no espaço seja no tempo. O segundo elemento, per (em latim a palavra é semper), assinala uma ideia de duração, ou antes perduração, ou trajectória, através de vários lugares, tempos ou vicissitudes. Sempre exprime, portanto, uma unidade perduradoira através (ou apesar) das vicissitudes, uma unidade de mudança, uma unidade dialéctica e não substancial, ou, se preferem, substancialmente dialéctica, sem definição subsistente, porque apenas subsiste em redefinição constante.
Abril era o segundo mês do calendário anual romano. O ano cíclico actual foi adiantado de dois meses, e por isso em Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro assinalam erradamente, na sua designação, respectivamente, o sétimo, o oitavo, o nono e o décimo mês. Segundo uma etimologia popular, registada pelo primeiro grande linguista romano, Varrão, o mês de Abril, em latim Aprilis, teria este nome porque nele ver omnia aperit: «a Primavera abre tudo». Quando Ary dos Santos fala nas «portas que Abril abriu» não está, portanto, a fazer um simples jogo de paronímia, ou semelhança verbal, está (talvez sem dar por isso) a reactivar a carga etimológica tradicional do nome do mês, dando-lhe uma conotação que o liga ao maior (e até hoje melhor) acontecimento histórico do Portugal moderno.
Mas o próprio Varrão aponta que, numa origem mais remota e inaparente, o nome Abril se relaciona com o nome Afrodite, o nome grego da deusa do amor. Os filólogos modernos parecem dar-lhe razão; o nome Abril relaciona, entre si, o abrir das corolas, o abrir dos dias à inundação solar, o abrir às seivas nas veredas vegetais, e o tumultuar do amor no sangue, seiva animal e humana. Num belo poemeto de Os Amantes sem Dinheiro que tem precisamente o nome deste mês e que data de 1947-49, Eugénio de Andrade diz:

Abril anda à solta dos pinhais
Coroado de rosas e de cio,
E num salto brusco, sem deixar sinais,
Rasga o céu azul num assobio

Estes versos retomam uma vivência de tradição inconsciente e agarrada ao próprio nome do mês, nome que se julga ter nascido de algo como uma redução afectiva, meiga, ou hipocorística, Aphrô, do nome de Afrodite.
Abril, sempre: o borbulhar cíclico da esperança, que se impõe mesmo antes de pensar-se, por impulso genésico incontível, através de todos os meandros da história. A certeza de que viver faz sentido, mesmo que não se saiba qual, e às vezes não pareça. Um sentido tão evidente como é evidente o seu contrapólo: a morte, as mil mortes da limitação individual, da inabilidade, do fiasco, da decrepitude, da doença, da opressão ou exploração, da mentira, da traição, do egoísmo de classe.
Não há amor feliz, disse Aragon, e é verdade. Também não há amor sem a certeza da sua razão, que nunca se conhece. Primeiro vive-se, depois é que se vive – pensando. O próprio prazer é tardio, é já, se calhar, um começo de velhice. O desejo não se liga na sua fonte juvenil a uma fruição: o amor, qualquer amor, urge-nos, e dói. Todo o amor é, não um erro, mas uma errância, e tem a sua imagem clássica nos errores de Ulisses, Eneias ou dos Lusíadas, com passagem por uma (ou mais que uma) ilha Edénica, uma ilha Afortunada, uma ilha da Perfeição, que satura sempre, porque é dada, e não feita, e os humanos não se contentam com menos do que com uma candidatura ao divino. O encanto de uma corola, um rosto, de uma liberdade entrevista, dói-nos, como a ansiedade de fazer o que se não sabe fazer, nem como fazer.
Abril. Sempre. Através de todos os errores. Certo na hora incerta. Como a morte, tal qual. Porque a resgata.
                                                                  
Nota
1 Este texto de Óscar Lopes foi inicialmente publicado em AA VV. Sempre. Porto: Comissão Promotora das Comemorações Populares do XII Aniversário do 25 de Abril, 1986, p. 16.