domingo, 25 de julho de 2010

Enciclopédia da Estória Universal, de Afonso Cruz: Grande Prémio de Conto da A.P.E

Partindo de um motivo literário, a biblioteca imaginada, retomado por Saramago (releia-se as forjadas epígrafes dos seus livros), antes dele por Borges (não por acaso mencionado, a pp. 41, como um “deus burlão”) e por outros autores ainda, Afonso Cruz (n. 1971) articula, de forma lógica e com erudita habilidade, dezenas de fragmentos – que, amiudadas vezes, se apresentam como trechos de pretensos livros de reflexão filosófica, moral, científica… –, fragmentos esses que correspondem a outras tantas vozes de autores quase sempre imaginários. Em consonância com as expectativas criadas por um título desde logo irónico e que inscreve a obra na esfera do apócrifo (Enciclopédia da Estória Universal) – título estampado na capa sobre uma ilustração do próprio autor –, a organização desses fragmentos segue a ordem alfabética dos títulos/temas glosados.

Dos vários textos se tem de dizer que não se fixam num género (encontramos micro-contos, parábolas, lendas etiológicas, variações em torno de mitos, comentários de tipo filosófico, aforismos, haiku, provérbios orientais…) e o que lhes confere unidade é, em parte, a ironia, o humor, a tendência para a desconstrução de verdades feitas, clichés e noções cristalizadas pela tradição cultural e científica. Algumas das pretensas vozes autorais ressurgem, por outro lado, ao longo do livro, o que permite ao leitor ir esboçando perfis de personagens diversas que, por vezes, se comentam umas às outras.

A aparência de autenticidade dos fragmentos decorre, em primeira instância, da capacidade efabuladora e estilística do autor na criação de mundos possíveis, por vezes ancorados na História, mas também da circunstância de ser intencional e, não raro, irónico, o copioso diálogo intertextual com inúmeras obras literárias, filosóficas, religiosas e livros de sapiência oriundos de diferentes tempos (da Antiguidade Clássica à contemporaneidade) e lugares (do mundo Ocidental ao Oriente, passando pela África).

Em Enciclopédia da Estória Universal (Lisboa: Quetzal, 2009), o resultado deste trabalho criativo – que se distingue por uma escrita segura e por uma estrutura de algum modo original – é, quase sempre, uma inteligente, divertida e labiríntica paródia da história da cultura humanística e científica, que, no entanto, deixa entrever um discurso crítico cujo alvo é por vezes o presente (o neo-liberalismo, a desigualdade social, a justiça de classe…), desmontando certas dimensões do chamado pensamento único e pondo a nu as mais retorcidas facetas da existência humana.

José António Gomes

NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)