domingo, 26 de abril de 2009

Aos Xutos e aos Pontapés

A comemorarem 30 anos de carreira, não foi a Festa de Aniversário que trouxe os Xutos & Pontapés para as páginas dos jornais e para as controvérsias entusiasticamente debatidas em blogs. A polémica suscitada pela letra da música «Sem eira nem beira» (2009), da autoria de Tim e cantada por Kalu, incluída no mais recente álbum homónimo da banda portuguesa propagou-se, como um rastilho curto, à opinião pública, suscitando comentários de diferentes partidos e até de figuras relevantes do movimento sindical. E, todavia, o carácter interventivo da letra não é uma novidade na filosofia do grupo que, nos anos 80 do século XX, denunciava o mal-estar e o ambiente opressivo da sociedade portuguesa, exprimindo desejos de fuga em textos como «Barcos Gregos» ou «N’América» e apelando a diferentes formas de resistência. O desemprego, o desajuste das novas gerações, a frustração juvenil, a constatação de uma realidade perversa e uma certa franja social mais ou menos marginalizada sobem de tom com o sucesso do grupo nos finais da década de 80 e ao longo dos anos 90. Ouçam-se, entre outras, canções como «Gritos Mudos», «Esta cidade», «Chuva Dissolvente» ou mesmo a versão parodicamente subversiva de «A minha casinha». O motivo do inferno, o recurso ao calão, a adjectivação expressiva, as apóstrofes e vocativos, a reiteração de ideias-chave com recurso a estruturas paralelísticas são algumas das estratégias usadas para sublinhar essa visão crítica e denunciadora que perpassa boa parte das letras do grupo.

As críticas cantadas e/ou gritadas em concertos por um público cada vez mais vasto atingem as escolas e a educação («Jogo do Empurra»), a economia e a política («Estupidez»), a exploração dos mais pobres («Dia de S. Receber»), o desemprego e a corrupção. Em 1992, no álbum Dizer não de vez ecoam muitas das críticas da oposição ao governo maioritário da altura, sublinhadas, um ano mais tarde, com a edição de Direito ao deserto.

Agora, em «Sem eira nem beira», o grupo regressa a uma certa tendência que nunca abandonou verdadeiramente. As semelhanças com a realidade portuguesa e com o actual contexto político, social, económico, aliadas a um certo despudor linguístico que sempre acompanhou o grupo sugerem afinidades que não podem ser lidas apenas como coincidências. A arte e a música em particular, sempre se pautaram pela capacidade de, se não mudar o mundo, pelo menos acordar as consciências. As implicações sociais do rock and roll, decorrentes da sua popularidade, fazem parte do código genético de um género e, neste caso, de uma banda que, passadas algumas décadas, ainda se mostram, surdos às censuras, fiéis às suas origens e ao público.

 

Sem Eira Nem Beira  |  Xutos & Pontapés

 

Anda tudo do avesso
Nesta rua que atravesso
Dão milhões a quem os tem
Aos outros um «passou bem»
*
Não consigo perceber
Quem é que nos quer tramar
Enganar, despedir
Ainda se ficam a rir
*
Eu quero acreditar
Que esta merda vai mudar
E espero vir a ter uma vida bem melhor
Mas se eu nada fizer 
Isto nunca vai mudar
Conseguir encontrar mais força para lutar
*
Mais força para lutar
Mais força para lutar
Mais força para lutar
*
Senhor engenheiro
Dê-me um pouco de atenção
Há dez anos que estou preso
Há trinta que sou ladrão
Não tenho eira nem beira
Mas ainda consigo ver
Quem anda na roubalheira
E quem me anda a comer
*
É difícil ser honesto
É difícil de engolir
Quem não tem nada vai preso
Quem tem muito fica a rir
*
Ainda espero ver alguém 
Assumir que já andou 
A roubar, enganar 
O povo que acreditou
*
Conseguir encontrar mais força para lutar
Conseguir encontrar mais força para lutar
Mais força para lutar
Mais força para lutar
*
Senhor engenheiro
Dê-me um pouco de atenção
Há dez anos que estou preso
Há trinta que sou ladrão
Não tenho eira nem beira
Mas ainda consigo ver
Quem anda na roubalheira
E quem me anda a f***r
*
Há dez anos que estou preso
Há trinta que sou ladrão
Mas eu sou um homem honesto
Só errei na profissão
*
Senhor engenheiro
Dê-me um pouco de atenção
Há dez anos que estou preso
Há trinta que sou ladrão
Não tenho eira nem beira
Mas ainda consigo ver
Quem anda na roubalheira
E quem me anda a...
*
Senhor engenheiro
Dê-me um pouco de atenção
Dê-me um pouco de atenção

 

 

Ana Margarida Ramos

 Universidade de Aveiro; membro associado do NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)