domingo, 5 de abril de 2009

Geografia do Medo, de Francisco Duarte Mangas

Geografia do Medo (Editorial Teorema, 1997; col. «Estórias», Prémio Eixo Atlântico de Narrativa Galaico-portuguesa), de Francisco Duarte Mangas, é um romance pródigo em informações paratextuais que sugerem numerosas pistas de leitura. Um texto de contracapa, por exemplo, dá-nos a conhecer duas das principais personagens e indicia, ao mesmo tempo, uma articulação das sequências narrativas sujeita ao esquema da alternância: Manuel, «um velho caçador persegue, desde o amanhecer, um rasto e uma dúvida. Em terra estranha [Angola] o filho faz a última incursão na densa mata, preso à memória cinegética. Num dia apenas, os dois homens e outras vozes andarilhas percorrem a Geografia do Medo.» Quase a fechar o livro e num curioso jogo de vozes, dirá de si mesmo o filho (Sílvio): «A mina anti-pessoal foi-me destinada pelo narrador. (...) O narrador (...) cala as personagens que lhe convém.» (p. 165). Estranha personagem esta, capaz de censurar quem lhe dá espessura e voz; e estranho narrador também, ele próprio um predador de personagens, às quais porventura instila o medo antes de as rasurar de cena. Ora as figuras humanas de Geografia do Medo tanto surgem como caçadores de animais e de homens, como são, eles próprios, caçados por outros homens, pelo anjo da morte, em certa medida por Deus e, enquanto personagens de ficção, pelo narrador.

Estamos perante um registo denso de experiências vividas por um conjunto de figuras com fortíssima ligação à terra: Minho, Agra, aldeia, serra, campos habitados por «espécies cinegéticas». Se a geografia, como se lê nos dicionários, é em parte o estudo da distribuição à superfície do globo dos fenómenos físicos, biológicos e humanos, podemos dizer que o texto de Francisco Duarte Mangas é um estudo romanesco da distribuição territorial do medo – na África de Sílvio e, bem assim, na Agra de Manuel, de Teotónio, dos Silveiras, de Padre Joaquim e de João da Ameã. Fazendo jus ao título, o texto não deixará de interpretar as causas dessa distribuição, de analisar e correlacionar diferentes faces do medo.

Retrato social e psicológico de um microcosmos – Agra, as terras circundantes e as suas gentes – num tempo que medeia entre a década de 10 e os anos 70 do século XX (com alusões em flash forward ao 25 de Abril), Geografia do Medo apresenta-se também como retrato parcelar do país ao longo de mais de cinquenta anos, através de um percurso guiado pela memória de Manuel e de Sílvio. Ela conduz-nos do tempo das ofensivas monárquicas contra a República até à década de 70, passando pelo salazarismo, pelas ínvias e trágicas relações entre o norte de um Portugal aperreado pela ditadura e uma Galiza sangrando da Guerra Civil de Espanha. E embora o grosso dos acontecimentos evocados por Manuel se situe nos pesados anos 30 e 40, a Guerra Colonial surge, em todo o seu absurdo e horror, como outro dos cenários privilegiados do medo.

A perspectiva do narrador não raro se confunde com o olhar de Manuel e com o de Sílvio, já que o espaço psicológico e o discurso pertencem quase por inteiro a estas duas personagens, elas próprias convertidas, assim, em vozes que contam, monologam, mentalmente conversam uma com a outra à distância (uma em Agra, outra em Angola), dialogando também com outras personagens. Multifacetada, a imagem do mundo que nos devolvem corresponde, no entanto e quase sempre, à visão amarga da história de um país atrasado, de uma sociedade injusta de pobres e ricos, estes últimos com o seu cortejo de serventuários eclesiásticos ou policiais e a sua pequena corte provinciana de políticos corruptos. Mas o olhar de que falamos é também um olhar generoso que resgata os mais pobres do anonimato e os ergue à condição de heróis, por vezes quase pícaros, é certo, como acontece com Teotónio Coutinho. Com o seu quê de tipo camponês camiliano, a lembrar, em simultâneo, certas personagens populares de Aquilino, Teotónio é uma figura espantosa na sua humanidade feroz de grande predador, rendeiro explorado pelos prepotentes Silveiras, conhecedor como poucos dos segredos da serra, dos coelhos e dos furões; militante monárquico cuja generosidade o deixa entregar-se a uma causa que, só por alienação, se compreende ser a sua; senhor, enfim, de um impiedoso bacamarte que com ele se deitará na última morada, sob a fria terra de Agra.

Nesse mundo pequeno e fechado que é Portugal e, em particular, o Minho dos anos 30 e 40, o único espaço livre parece ser a serra, incessantemente percorrida pelos caçadores. Mas é também aí que grupos de homens e de cães quase humanos revivem, em pequena escala, os conflitos sociais e de valores de que a província é palco. Aí se medem virilidades, se exibem, em vão, os vícios da riqueza e do poder, se provoca e conhece o medo e a morte. A caça, contudo, é alternativa de liberdade num território sem amos, já que a maior parte da serra é «chão baldio, terreno comunitário» (p. 148).               

Os factos históricos são filtrados por dois olhares, o de Manuel e o de Sílvio, que simultaneamente exprimem fundas inquietações existenciais, em particular esse medo que, em última análise, é o medo da morte. Manuel teme o desaparecimento do filho, mobilizado para uma guerra absurda na qual se não consegue libertar da condição de potencial vítima de uma «caça» de diferentes contornos, onde tudo parece desumanizar-se e cheirar a carne apodrecida, ao contrário da verdadeira caça em Agra, protagonizada pelo pai e por outras figuras de homens verticais e, à sua maneira, grandes, como João da Ameã e Teotónio. Sílvio experimenta na guerra a sensação de perseguir peças de caça que, afinal, são guerrilheiros, homens como os outros que lutam pela sua liberdade. Ora, no dia em que tem início a deambulação mental de Manuel, este sente pela primeira vez a dificuldade em premir o gatilho, como se os animais bravios tivessem deixado de ser simples objectos de desejo de um natural instinto predador, de raízes ancestrais e misteriosas, para de repente se tornarem vítimas, imagens do próprio filho. Dilacerado pela saudade, pelo medo e pela dúvida, o dia de Manuel é simultaneamente o tempo de revisão de uma vida inteira, marcada pela paixão venatória. Vida filtrada e resumida no tempo de um engenhoso e belo romance.

 

José António Gomes

NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)