sábado, 10 de janeiro de 2009

A cidade interior de Inês Lourenço

A sensibilidade (feminina) que se manifesta na poesia de Inês Lourenço corresponde a um olhar que, no seu livro Um Quarto com Cidades ao Fundo (Famalicão: Quasi Edições, 2000 – reedição posterior com nova capa), percorre, por um lado, «o desconhecido corpo» e o desejo e, por outro, os pequenos episódios do quotidiano. A escrita transfigura esses episódios dando-lhes a necessária dimensão poética – ou seja, a que não pode ser formulada de outra maneira a não ser pela linguagem, simultaneamente clara e obscura, da poesia. O que se confirma lendo textos quase surpreendentes, ancorados num «real» concreto, como «Campeonato» ou «Feira do Livro» (p. 93).

Inês Lourenço é uma voz da melancolia das cidades e o título do seu livro revela-o, convocando uma tradição literária e fílmica citadina, como aquela em que se insere o belo filme, de James Ivory, Room with a view e o romance de E. M. Forster em que ele se baseia. As cidades da autora são, obviamente, as suas cidades privadas, isto é, aquelas que o eu compõe, na sua busca da «geografia indecifrável» (p. 117) dos dias, designadamente a partir de ruas e praças tão «literárias», por assim dizer, como as do Porto (e de outros cenários). Porque o poeta, tem, no seu «quarto» mental, uma «janela», uns olhos que se abrem sobre o mundo, o filtram e revelam, e finalmente dele se apropriam – como se diz, por mais justas palavras, nos três versos finais de «Urbe» (p. 69). E as memórias de infância (cores, cheiros, sabores, o fascínio e o asco) dificilmente poderiam deixar de marcar presença na reconstituição poética desse espaço urbano de raízes acentuadamente portuenses que nos dá textos tocantes como «Rua de Camões» (p. 13-14), «Bonjardim» (p. 117-118) ou «Vindo do Marquês, o autocarro…» (p. 118).

Nesta brevíssima digressão, cumpre assinalar ainda a tendência desta poesia para reflectir sobre o ofício que a gera e sobre a sua poética (leiam-se as duas «Artes poéticas») e sublinhar o evidente trabalho de tessitura verbal e de conquista da metáfora justa: «a pureza etária do verde» (p. 128), «O Verão expulsa o húmido alento das casas» (p. 128), «os plátanos, há muito ceifados pelo asfalto» (p. 129). E registe-se também como a arquitectura rigorosa dos textos logra, muitas vezes (sobretudo na segunda metade do livro), transmitir uma aparente impressão de espontaneidade natural e de fulgurante simplicidade, que se experimenta ao ler poemas como «Da epistolografia»: «Chegou uma carta. Trazia / muitas folhas escritas. Só uma delas / vinha em branco, não sei se / por esquecimento ou cortesia, a oferecer / um vestíbulo para os olhos / incinerados.» (p. 97).

Muito, quase tudo, fica por dizer sobre o livro de Inês Lourenço (nomeadamente sobre a importância da música nesta poesia), até porque Um Quarto com Cidades ao Fundo é uma colectânea de 144 páginas, onde se encontram reunidos os quatro volumes antes editados pela autora (também directora e dinamizadora dos cadernos de poesia Hífen), a par de um conjunto de vinte inéditos, a cujo título se foi buscar o da obra.

 

José António Gomes

NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)