terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Transumância, de Francisco Duarte Mangas

Tive oportunidade de escrever noutro local que a produção literária de Francisco Duarte Mangas se tem repartido pela narrativa de ficção e por uma poesia depurada, que não raro traz à memória a poética do haiku. Indissociável da poesia, a coerência da sua obra em prosa repousa, por um lado, numa escrita criativa e elaborada, que sabe apreender o oral e, por outro, na transfiguração de um real que muitas vezes tem por núcleo a vida aldeã e campesina, o que determina certos temas e motivos recorrentes. Partilhando esse espaço de feição rural, homens e animais – cujas naturezas nem sempre se distinguem de forma clara – irmanam-se ou digladiam-se num universo que lembra, aqui e acolá, Aquilino Ribeiro e Torga.

Não admira, por isso, que o léxico e as imagens estejam tantas vezes vinculados a uma esfera que sempre foi a do autor: a do mundo natural, da terra, dos animais e das plantas, onde a caça ganha, por vezes, um alcance simbólico particular, como acontece em Pequeno Livro da Terra (1996, poesia) e sobretudo em Geografia do Medo (romance, 1997).

Depois de ter publicado em 2002 o romance O Coração Transido dos Mouros (Editorial Teorema) Francisco Duarte Mangas regressou ao verso, para propor, em Transumância (Porto: Campo das Letras: 2002), um poema aparentemente extenso, que de algum modo se move ainda no terreno cujas coordenadas antes tracei, mas na verdade um texto feito de pequenos fragmentos, como este:

noite

outra vez a noite?

desliza o espanto

nos olhos da cabra

aluvião de brilho

como se o penhasco

arroteasse o inacessível (p. 57)

Entre dois paratextos que lançam os dados do jogo (um excerto de um poema de Uxío Novoneyra, no início, a remeter para o modo como germina a poesia; e, no final, um parágrafo de Jorge Dias, de tipo informativo, sobre a cabra), o universo pastoril vai-se esboçando na mente do leitor de Transumância. E este reconhece gradualmente, além da metáfora expressiva e por vezes surpreendente que é apanágio do autor, alguns dos tópicos e lugares obsessivos da sua poética: a predação e a caça, a esfera animal e o mundo campesino. Cedo, porém, se apercebe de que a composição – na verdade, uma contida narrativa poética em verso, na primeira pessoa, de alguém que se move, pára, olha, escuta, constrói um texto –, essa composição de carácter fragmentário configura, isso sim, uma lenta e conseguida alegoria da escrita, em que termos como palavra e outros da família de escrever se tornam recorrentes:

a cabra no penhasco,

nem os meus olhos lá chegam.

escrevo

primavera: rebentos,

suaves zumbidos

transumância

de luz e húmus (p. 63)

José António Gomes

NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)