sábado, 24 de janeiro de 2009

«A terra é boa, e o corpo…» – Eugénio de Andrade, sempre

Quiseram os deuses (sempre cruéis, mas tantas vezes certeiros nas suas disposições) que Eugénio de Andrade, um dos poetas mais lidos por aqueles que o fascismo perseguiu e encarcerou, nos deixasse no preciso dia (13 de Junho de 2005) em que partiu também essa figura marcante do combate à ditadura salazaristamarcelista e da luta pelos direitos dos deserdados que foi Álvaro Cunhal.

Havia sobejos motivos para que os versos do autor de As Palavras Interditas (que também cantou Dias Coelho e Che Guevara) fossem amados por quem se encontrava em condições tão difíceis como os resistentes antifascistas. É que, não obstante as muitas sombras que a perpassam, a poesia de Eugénio exprime, acima de tudo, uma pulsão vital, erguendo-se como um harmonioso canto do corpo, da intensidade erótica e do mundo natural, que talvez não encontre paralelo na nossa literatura contemporânea: «A terra é boa, e o corpo / apesar de bastardo / traz consigo pátios / e cavalos.» 1 Um canto que o aproxima, neste ponto, de alguma da melhor tradição do nosso lirismo (a poesia galaico-portuguesa, Camões, Garrett…), aparentando-o também com outros poetas que amou e verteu para português. Pense-se em Safo, em Lorca (influência marcante nas primeiras obras, no livro infantil Aquela Nuvem e Outras e não só), em Luís Cernuda e até no chileno Neruda. E não se encare, como despropositada, a proximidade com Bashô (a quem, por via de uma tradução de Octávio Paz, iria buscar o título que deu a um dos seus melhores livros, Branco no Branco, 1984) e com esse outro poeta solar que foi o italiano Sandro Penna. A Penna não falta contudo a dimensão disfórica que igualmente se pode ler em Eugénio, bem como no mestre seiscentista do haiku – um mestre, acrescente-se, dessa poética da brevidade para onde aos poucos se encaminhou também a escrita do poeta de As Mãos e os Frutos (1948), livro crucial na abertura dos novos caminhos da poesia portuguesa posterior à Presença.

Correndo embora o risco de repisar o lugar comum que define Eugénio como poeta do corpo, do amor, da Natureza, é de salientar que esse traço concorreu para a inegável fortuna que esta poesia conheceu junto de um público não especializado e para uma certa reconciliação de franjas desse público com a escrita poética dos nossos dias. Leitores que talvez não possuam plena consciência de como a aparente e conquistada «transparência» e a «limpidez firme de tom» (a expressão é de Sena 2) que distinguem a poesia de Eugénio se devem a um rigorosíssimo sentido da construção do poema, indissociável de uma admirável inventividade no domínio da metáfora, da sinestesia e da hipálage. Se a tais características juntarmos a pureza da dicção – esse «cravo bem temperado» a que Marguerite Yourcenar aludia em carta a Eugénio – teremos porventura um poeta completo. Um poeta como Sena, Sophia, Ruy Cinatti e alguns outros que, a partir dos anos 40, ao conferirem atenção particular ao valor da linguagem no poema, deram um contributo decisivo para a renovação da poesia portuguesa da segunda metade do século XX (pense-se também em Carlos de Oliveira, Cesariny, e, mais tarde, em Herberto Helder, Ramos Rosa e Ruy Belo).

 

 

Notas

 

1 Eugénio de Andrade (2000). Poesia. Porto: Fundação Eugénio de Andrade, p. 488.

2 Jorge de Sena (sel. e apres.) (1983). Líricas Portuguesas II Volume. Lisboa: Edições 70, p. 81.

 

José António Gomes

NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)