sábado, 13 de dezembro de 2008

O Sentido de Estado de Patolino XVI, romance de Romeu Cunha Reis

Na minha longínqua adolescência libertária, a leitura de Escuta, Zé Ninguém!, de Wilhelm Reich, deixou marcas difíceis de apagar, embora, hoje, me sinta distante do ambíguo discurso deste controverso psicanalista. Principiava assim o livro: «Chamam-te “Zé Ninguém!”, “Homem Comum” e, ao que dizem, começou a tua era, a “Era do Homem Comum”. Mas não és tu que o dizes, Zé Ninguém, são eles, os vice-presidentes das grandes nações, os importantes dirigentes do proletariado, os filhos da burguesia arrependidos, os homens de Estado e os filósofos. Dão-te futuro, mas não te perguntam pelo passado. Tu és herdeiro de um passado terrível. A tua herança queima-te as mãos, e sou eu que to digo.» (Reich, 1974: 21).

 Este foi um dos livros que recordei ao ler, agora, O Sentido de Estado de Patolino XVI (Calendário, 2008) de Romeu Cunha Reis, ao pensar o protagonista – cujo nome é chamado para o título do romance –, mas ao pensar também os seus antepassados mais marcantes, todos eles Patolinos de seu nome. Sem que ele o saiba, a herança de Patolino XVI também lhe queima as mãos, como dizia Reich. E é disso que, pela voz do seu narrador – que se apresenta como frequentador de arquivos e pesquisador de genealogias –, o autor nos vem falar: «A verdade é que cedo nos apercebemos de que seria absolutamente impossível num trabalho com estas proporções fazermos a narrativa detalhada da vida e dos feitos de todas as figuras da galeria de ancestrais do herói deste livro. A par disto, fomo-nos também dando conta de que, de todos eles, os Patolinos emergiam com traços de carácter muito homogéneos, a exigirem um estudo muito particular. Foi assim que nos decidimos a concentrar o nosso trabalho apenas sobre eles.» (p. 16).

 Deixando Reich de lado, diga-se que o romance nos convida – ainda bem que assim é – a outros recuos literários, ao convocar explicitamente intertextos, matriciais para a nossa cultura, como a Crónica de D. João I, de Fernão Lopes, a lírica e a épica de Luís de Camões – aqui reinventado e convertido em personagem de ficção, por altura da sua chegada a Coimbra, onde conhecerá a famosa Leanor da conhecida cantiga «Descalça vai para a fonte» –, ou ainda A Vida do Grande D. Quixote de la Mancha e do Gordo Sancho Pança, de António José da Silva. Considerando assim um arco temporal diegético de cerca de mil anos, cujas raízes remontam portanto à Idade Média – pois também aqui se conta a história de Patolino II, bisneto de Patolino I, natural das Astúrias, que teria vivido no tempo do rei Afonso Henriques –, acrescente-se que este tipo de analepses, de função explicativa, configura também uma estratégia tecnico-narrativa que permite ao narrador ir alternando a história, mais longa, de Patolino XVI – a qual recria episódios e situações que poderiam decorrer no nosso tempo, ainda que coloridos com as tintas da caricatura e até do grotesco – com as pequenas histórias, quase todas rocambolescas, dos seus ancestrais. Destes, saliente-se então Patolino III, «plantador de naus a haver», como diria Pessoa, ou seja, um dos semeadores do pinhal de Leiria, no tempo do rei trovador D. Dinis (e algumas cantigas medievais são também citadas no romance, naquele que se apresenta como um dos seus segmentos mais oníricos, com incursões no fantástico). Destaque-se Patolino V, este outro testemunha da crise política de 1383-1385; ou ainda Patolino Sem Número («fruto de uma ligação tardia e clandestina de Pascôncio VI com Ana da Maia» (p. 55)), já no século XVI, ou seja, o barqueiro que conduzirá Camões pelo Mondego. E isto para não falar de outros, quase todos, desgraçados Patolinos, como o do início do romance, oitavo da sua estirpe, que praticamente acaba sequestrado por um capitão de navio sem escrúpulos e não regressa jamais às margens do Rio Ave de onde partira – acção que decorre no tempo das expedições marítimas pós-Descobrimentos.

 Trata-se, em suma, de dar conta de uma linhagem – ou melhor, de parte dela – a qual desemboca, no «presente», em Patolino XVI, centrando-se o narrador nos membros da família que tiveram a desventura de carregar o mesmo estranho nome. Este nome, acrescente-se, é todo um programa de indícios (no plano da estrutura narrativa) e de sugestões a que o carácter das personagens vem dar corpo. E porquê esse nome? Nada melhor do que escutar as palavras do próprio narrador, ao relatar como este aparente Zé Ninguém é ludibriado e vigarizado por uma empresa de venda de férias a crédito (o Turiférias Clube): «Foi então que uma das assistentes, com um faro que faria roer-se de inveja a mais credenciada das alternadeiras, detectou em Patolino XVI o perfume do pato, obedecendo a todos os requisitos da perfeição.» (p. 46).

Conta-se, então a história de um «pato», ou melhor, de uma estirpe de infelizes «patos», algo invertebrados e meio imbecis, como não poderia deixar de ser. Esta uma das razões pelas quais O Sentido de Estado de Patolino XVI é um livro extremamente divertido, ideal para lermos em época de crise – como a que atravessamos. Porque este é um tempo de desenfreada exploração do homem pelo homem, no quadro dessa ideologia falida, mas desgraçadamente ainda dominante, que vimos conhecendo por neo-liberalismo. Um livro em suma para nos recrearmos, sem contudo deixarmos de reflectir sobre o mundo que nos rodeia e sobre os muitos Patolinos que o povoam.

Não se detém, todavia, nos já mencionados, a lista dos antepassados de Patolino XVI. Um deles tenta, já em 1937, integrar, sem sucesso, a salazarista Legião Portuguesa; e outro morrerá ingloriamente como cobaia das experiências e enganos de um insigne físico, Honoratus, o Grande, discípulo de Paracelso.

Deste modo, entre revisitações ficcionais da História do país e incursões na própria memória literária nacional, chegamos ao tempo do décimo sexto Patolino – que constitui o eixo do romance –, um pobre homem explorado até ao tutano pelo empresário sem escrúpulos José Bandeirinha, e encurralado entre Dimas, o sindicalista, e três mulheres (D. Octacília, D. Caracolina, mulher de Bandeirinha, e Florinda, a sua empregada). Todas elas o assediam, todas concretizam os seus intentos lúbricos, todas finalmente engravidam do desgraçado Patolino XVI – esmagado, é certo, pela ignorância, pelo alheamento em relação ao mundo desumano que o rodeia e pela sua ingenuidade de retardado (as suas tentativas para tirar a carta de condução são risíveis), mas erigido, em contrapartida, pelas mulheres à condição de um Don Juan uivante, de grotesco perfil. Se Dimas o pressiona, com razão, para que reclame os seus direitos de funcionário-para-todo-o-serviço junto de um empresário que tem como único fito o lucro a qualquer preço (este empresário é uma personagem plana e caricatural cujos ridículos projectos empresariais nos proporcionam algumas das cenas mais hilariantes do romance), já o patrão, Bandeirinha, não tem pejo em manter o seu Zé Ninguém reduzido à mais abjecta nulidade. Tudo em nome do «Sentido de Estado», essa expressão mágica e ambígua (porque sexualmente conotada), transportada para o título do romance, que soa como música aos ouvidos de Patolino XVI, pois se deixa por ela seduzir e cegar, sem todavia lhe conhecer o insidioso alcance semântico-pragmático.

Perguntar-se-á, então: o que salva Patolino XVI, o que salva a estirpe dos desgraçados Patolinos? O romance dá-nos a resposta: o involuntário sucesso junto das mulheres. Um dos traços, em suma, que percorrem toda a linhagem destes Zés Ninguéns, arrastados pelo narrador para uma história vertiginosa, que nos conquista pelo cómico de situações, pelo cómico de carácter e por algumas tiradas metanarrativas igualmente bem-humoradas. Uma história a que não falta um corrosivo olhar lançado sobre os poderosos, sobre o iníquo sistema social, económico e político em que vivemos e sobre o modo como o seu aparelho ideológico logra manter os mais débeis sob o manto, falsamente piedoso, da alienação e do obscurantismo.

Resta falar do surpreendente epílogo, o qual, ao contrário do que diz o narrador, suscitará, estou certo, a maior curiosidade nos leitores. Praticamente, trata-se de uma segunda história, amplificando o clima de irrisão de outras passagens do livro e projectando-nos num tempo outro. Envereda-se por um registo em que elementos do fantástico se vêm novamente incorporar na narrativa, dando conta o narrador dos destinos de Patolino XVII, um dos filhos de Patolino XVI. Aquele que, finalmente, possui condições para alcançar a felicidade eterna, o Céu, pondo assim «fim à má sorte da sua estirpe» (p. 218). É, por outro lado, a história do que quer morrer, ascender, como homem puro, ao Paraíso, mas não consegue, porque está condenado à felicidade terrena. Que, acrescente-se, não deixa de ser uma situação muito fatigante, como comprovam as últimas e irónicas linhas do romance.

 

Referência bibliográfica

 REICH, Wilhelm (1974). Escuta, Zé Ninguém!. 2ª ed., Lisboa: Dom Quixote.

 

José António Gomes

NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)