segunda-feira, 25 de outubro de 2021

NERVO N.º 12 – REVISTA DE POESIA A LER E A SEGUIR

Aí está o número 12, Setembro-Dezembro de 2021, da Nervo, a bela revista de poesia dirigida pela poetisa Maria F. Roldão, que principia com o editorial “Desobedecer ao cânone: a coragem da edição”. Entre outras coisas refere esses dois ‘heróicos’ editores/escritores que foram Vítor Silva Tavares (& etc.) e Luís Pacheco, o inesquecível autor de “Comunidade” e doutras pérolas (oh, como me lembro bem de, nos idos de 75 ou 76, o ver a tentar vender pedras da calçada no café Piolho, do Porto, estava eu nos alvores da juventude e a revolução na rua…). Se o título do texto de Maria F. Roldão remete para a pretensa “desobediência” a cânones destes senhores já é coisa mais discutível, porque na verdade todos os grandes autores que editaram já eram praticamente canónicos quando foram por eles publicados (Cesariny, Herberto, Natália e muitos outros). E se não eram, em breve o vieram a ser. Além do mais, a & etc. editou inúmeros clássicos do século XX e não só. Verdade também que ambos deram a conhecer autores novos e não canónicos, em especial Vítor Silva Tavares. No que talvez tenham sido menos “canónicos”, mais irreverentes foi nos modos de editar e distribuir, e nas belas aventuras editoriais que nos legaram (e louvados sejam por isso, ou também por isso). Isto mesmo destaca, e bem, Maria F. Roldão.


A capa de Cristina Troufa parece-me extremamente sugestiva, assim como os desenhos da mesma artista que ilustram esta Nervo, que continua a trazer-nos diversidade de latitudes linguístico-culturais: temos poetas portugueses e poetas traduzidos: Amparo Parra (Cuba), vertida por Zetho Cunha Gonçalves, menos interessante talvez que Hans Wap (Holanda), traduzido por Fernando Venâncio; e Ronaldo Cagiano, poeta brasileiro radicado em Portugal. São todos eles poetas que reclamam leitura, mas diferentes. Cagiano termina a sua série com esta graciosa “Dialética”: “Foi nos outlets do afeto / que ele encontrou um amor / sem defeitos.” Os poemas de Wap, que é também artista plástico, atraíram em especial a minha atenção de leitor – e a versão de Venâncio (a mim que não sei Neerlandês mas leio um pouquinho em Alemão) parece-me conseguida e convincente enquanto poema-em-português.


Acho muito bons os poemas de Maria Azenha (não obstante o tom depressivo mas cortante e a questão da morte que os assombram) – poetisa que integra, nesta “Nervo”, um leque de vozes já conhecidas e mais antigas da poesia portuguesa. Dele fazem parte Isabel de Sá, Nuno Dempster, Nunes da Rocha ou José Luís Borges de Almeida que exibem registos distintivos, o terceiro no poema em prosa. Nos mais jovens (chamemos-lhes assim, por comodidade de expressão), encontramos Amândio Reis, Cláudia Capela, João Cardoso Vilhena, João Silveira – todos eles poetas merecedores de leitura atenta (guardo para já uma certa vibração – incluindo um toque de erotismo – e um registo muito pessoal que me captaram o ouvido e não só em Cláudia Capela). Denominador comum a quase todas estas poéticas: o carácter egóico dos discursos e, em vários casos, uma linha de referencialidade a remeter para quotidianos-de-agora, mais ou menos depressivos, de vivências e coloração diversas, aqui e acolá com aspectos de ironia e humor subtis. Quanto a Amândio Reis, e como é sabido, foi considerado por António Guerreiro (a cujas opiniões importa sempre estarmos atentos) uma das revelações da literatura contemporânea, figurando aqui com um texto de difícil catalogação, entre o poema e a narrativa (a reler). Ah, e retenho, entre muitas outras passagens, estes versos na ‘mouche’ de João Cardoso Vilhena: “Demoro anos a perceber um poema / Ler é uma actividade alucinatória / O sentido chega como uma visão”.


Muito bem-vindo também é o ensaio final sobre Teixeira de Pascoaes, de Sofia A. Carvalho, estudante de doutoramento a ultimar tese sobre o poeta amarantino. Em boa hora. Intitula-se o texto “Teixeira de Pascoaes – ‘O Pobre Tolo’ e as ‘três pessoas dum poeta’ ”.

Caso para dizer: no meio dos dias agressivos e regressivos que vivemos, a Nervo é um oásis de cultura e de poesia, um bocadinho ao lado das capelas do costume (sem exagerar, porque já lá temos visto também um ou outro capelão). E vale mesmo a pena ser lida, ser seguida e divulgada.

 

João Pedro Mésseder