sábado, 18 de setembro de 2021

Pó Sobre Pó, de Manuel Silva-Terra: livro de poesia irrecusável

 

Leio este belo Pó Sobre Pó, recolha de poemas de Manuel Silva-Terra, graficamente muito cuidado, com a chancela da editora brasileira Urutau (Cotia – SP, 2021), e pergunto-me: como dizer, em poucas palavras, algo que abra uma frincha para esta escrita sem provocar pisadura na auréola do livro? 

Poemas sem título que se sucedem uns aos outros nas cerca de 74 páginas do livro, um em cada página, e com uma reconhecível unidade temática e de registo vocal, eu diria que Pó Sobre Pó quase pode constituir um poema único, que principia com a noite, a ela sucedendo a manhã diluindo-se depois as marcas do tempo, sem que o tempo deixe de estar no centro de todo o poemário.

Com ecos hölderlinianos e rilkeanos (e há qualquer coisa de Wanderung – «fez do caminho a sua morada», p. 42 – nesta sucessão de textos), trata-se duma poesia de reflexão existencial, de pensar solitário sobre o(s) lugar(es)/tempo(s) do sujeito no mundo – como se tal solidão fosse condição de aprofundamento do pensar. Mas esta é também a escrita duma busca: uma alternativa ao desgaste, à tensão, à «ferida», cuja sombria presença de algum modo se pressente. 

Ora essa saída descobre-se numa espécie de reatar da ligação umbilical à Natureza, uma religação ao natural a que vários poemas dão expressão («Regressas pois à harmonia dos sons / Ao eco na montanha / À luz dourada dos frutos», p. 29). E uso o termo religação, porque, aqui e acolá, se dá conta dum tom quase religioso no dizer desta poesia tão intensa e tão parca (o que muito me agrada) em referências directas ao eu. E também por isso, e pela viagem, nos vêm à mente a tradição nipónica do haiku e do haibun (embora aqui não haja prosa) e a lição do Bashô viandante.

Cometerei a ousadia de me apropriar de um poema do livro para tentar aludir à demanda deste sujeito poético:

 

Este foi salvo pela poesia das coisas

Pelas palavras iluminadas e iluminantes

Pelas brasas que cauterizam a ferida

 

Aquele outro foi salvo pelo recolhimento

que praticou junto das sementes

e dos animais e das árvores

 

Outro foi salvo pela acção

Pelo desapossamento de si

Pela sua entrega aos outros (p. 67)

 

Lendo a totalidade de Pó Sobre Pó (a poeira que se levanta do caminho e torna a pousar?; a poeira que todos somos?) e lendo estas três imagens de caminhos de vida patentes na composição que acabo de citar, ousaria dizer, a terminar, que o livro de Manuel Silva-Terra corresponde porventura à expressão de uma demanda situável entre o que, no poema, é dito no primeiro terceto e o que é dito no segundo.

E desta maneira tento uma síntese, empobrecedora é claro, dum livro em boa verdade irresumível e imparafraseável, que proporcionará, estou certo, intensos momentos de leitura.

Com, até ao momento, cerca de uma dúzia de livros publicados, belos e singulares, e diversas antologias de poesia «de outros séculos e lugares» (p. 73), Manuel Silva-Terra continua a ser um poeta que urge ler, sendo Pó Sobre Pó, talvez, uma das suas melhores obras.

 

José António Gomes

IEL-C – Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais da ESE do Porto