segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

Voltar a Luísa Dacosta e à “Pedagogia do Deslumbramento”

Foi há três dias, a 16 de Fevereiro, o aniversário da minha Amiga Luísa Dacosta (completaria 95 anos). E fez há quatro dias sete anos que nos deixou. Era um ser humano de fibra e de palavra livre, intransigente defensora da mulher e dos seus direitos, personalidade afectuosa e terna, refinada e de enorme sensibilidade às artes visuais (escreveu para/sobre diversos artistas), mas sempre fiel às suas raízes transmontanas (nasceu em Vila Real). E fiel igualmente aos seus amigos, mortos ou vivos: Irene Lisboa, Régio, Júlio, Padre Joaquim Alves Correia, David Mourão-Ferreira, António José Saraiva, o bibliotecário Manuel Lopes, Teresa Rita Lopes, Jorge Pinheiro, José da Cruz Santos, Margarida Santos, Elvira Leite, José Manuel Esteves, Bernardette Capelo, Cristina Valadas, Paula Morão, Violante Magalhães… Fiel se manteve também às suas referências literárias: Hans Christian Andersen e os contos de fadas, Dostoievski, Gogol e Tchekhov, Katherine Mansfield, Joseph Bédier (por causa do mito de Tristão e Isolda), Lorca, Fernão Lopes, Sá de Miranda, Camões, Vieira, Eça, Raul Brandão, Pessanha, Aquilino (que ajudou, no Porto, a homenagear ainda em vida do mestre), Irene Lisboa, Graciliano Ramos, Cecília Meireles… Sem falar na Bíblia e n’As Mil e Uma Noites, que toda a vida leu, releu, estudou.

Trás-os-Montes fê-la escrever coisas de forte poder evocativo, comoventes e, aqui e acolá, divertidas até – pois era senhora de uma escrita poeticamente muito trabalhada e sofisticada – como Província (1955), o seu primeiro livro de contos, e obras para a infância como Teatrinho do Romão (1977), Lá Vai Uma… Lá Vão Duas (1993) – Prémio Gulbenkian de Literatura para Crianças –, Robertices (1995), a juntar a admiráveis páginas de diário. Entre Lisboa e Vila Real nasceram os contos de Vovó Ana, Bisavó Filomena e Eu (1969), a tenderem já, aqui e acolá, para o auto-retrato. Em dado momento, graças ao empenho de gente boa e culta como Jorge Ginja e Helena Gil, veio a ser homenageada também na sua terra e, na sequência dessa dinâmica, fui convidado a organizar uma antologia de textos seus de raiz transmontana. Assim nasceu Houve um Tempo, Longe – Vila Real de Trás-os-Montes na Obra de Luísa Dacosta (2005), obra para a qual redigi um breve estudo.

O mar e os seus mitos, a praia de sargaceiros, a terra em redor, e sobretudo as doridas mulheres e as crianças fizeram-na escrever os seus dois melhores livros: as extraordinárias crónicas de A-Ver-O-Mar (1980) e Morrer a Ocidente (1990). 

Mas merecem sempre revisitação os seus “romances truncados”, como gostava de os classificar, Corpo Recusado (1985) e O Planeta Desconhecido e Romance da que Fui antes de Mim (2000), textos ficcionais de fundo autobiográfico, e os seus dois volumes de diário: Na Água do Tempo (1992) – Prémio Máxima – e Um Olhar Naufragado (2008).

O Príncipe que Guardava Ovelhas (1971), O Elefante Cor de Rosa (1974), A Menina Coração de Pássaro (1978), História com Recadinho (1986), Sonhos na Palma da Mão(1990) e outros títulos impuseram-na também como uma voz singular na nossa escrita literária para a infância. A rendilhada poeticidade da sua prosa e a assumida ou indirecta relação intertextual com mitos gregos e com clássicos (contos de Andersen; Le Petit Prince…) concorreram para essa singularidade, invariavelmente cunhada com uma epígrafe inicial, que era também um princípio existencial: «No sonho, a liberdade…».

Por último, diga-se que, além de poetisa – e de crítica e historiadora da literatura na sua juventude –, Luísa Dacosta foi uma professora de Português de excepção, que apostava, sobretudo, num ensino da língua solidamente assente no recurso à grande literatura e à grande arte (mesmo no 2.º ciclo), na comunicabilidade e na relação humana, buscando aquilo a que gostava de chamar uma «pedagogia do deslumbramento». Nas suas aulas de Português também entravam a música, a pintura, o cinema de Chaplin, a mímica de Marcel Marceau… Deste ponto de vista, e no quadro da educação literária, os seus livros O Valor Pedagógico da Sessão de Leitura (1974) e principalmente as antologias sábia e afectuosamente comentadas (e ilustradas por Jorge Pinheiro), De Mãos Dadas Estrada Fora(4 vols., 1970-2002) continuam a ser do que de melhor se fez em Portugal. 

Costumo dizer: deseja iniciar alguém (criança já leitora, jovem, adulto) no universo do literário? Ponha-lhe nas mãos De Mãos Dadas Estrada Fora.

Sobre a obra de Luísa Dacosta escrevi uma tese de doutoramento que Clara Crabbé Rocha orientou e Paula Morão arguiu. E redigi numerosos ensaios. Foi n'«um tempo longe». 

 

José António Gomes, 19-2-2022

IEL-C – Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais da ESE do Porto