Trás-os-Montes fê-la escrever coisas de forte poder evocativo, comoventes e, aqui e acolá, divertidas até – pois era senhora de uma escrita poeticamente muito trabalhada e sofisticada – como Província (1955), o seu primeiro livro de contos, e obras para a infância como Teatrinho do Romão (1977), Lá Vai Uma… Lá Vão Duas (1993) – Prémio Gulbenkian de Literatura para Crianças –, Robertices (1995), a juntar a admiráveis páginas de diário. Entre Lisboa e Vila Real nasceram os contos de Vovó Ana, Bisavó Filomena e Eu (1969), a tenderem já, aqui e acolá, para o auto-retrato. Em dado momento, graças ao empenho de gente boa e culta como Jorge Ginja e Helena Gil, veio a ser homenageada também na sua terra e, na sequência dessa dinâmica, fui convidado a organizar uma antologia de textos seus de raiz transmontana. Assim nasceu Houve um Tempo, Longe – Vila Real de Trás-os-Montes na Obra de Luísa Dacosta (2005), obra para a qual redigi um breve estudo.
O mar e os seus mitos, a praia de sargaceiros, a terra em redor, e sobretudo as doridas mulheres e as crianças fizeram-na escrever os seus dois melhores livros: as extraordinárias crónicas de A-Ver-O-Mar (1980) e Morrer a Ocidente (1990).
Mas merecem sempre revisitação os seus “romances truncados”, como gostava de os classificar, Corpo Recusado (1985) e O Planeta Desconhecido e Romance da que Fui antes de Mim (2000), textos ficcionais de fundo autobiográfico, e os seus dois volumes de diário: Na Água do Tempo (1992) – Prémio Máxima – e Um Olhar Naufragado (2008).
O Príncipe que Guardava Ovelhas (1971), O Elefante Cor de Rosa (1974), A Menina Coração de Pássaro (1978), História com Recadinho (1986), Sonhos na Palma da Mão(1990) e outros títulos impuseram-na também como uma voz singular na nossa escrita literária para a infância. A rendilhada poeticidade da sua prosa e a assumida ou indirecta relação intertextual com mitos gregos e com clássicos (contos de Andersen; Le Petit Prince…) concorreram para essa singularidade, invariavelmente cunhada com uma epígrafe inicial, que era também um princípio existencial: «No sonho, a liberdade…».
Por último, diga-se que, além de poetisa – e de crítica e historiadora da literatura na sua juventude –, Luísa Dacosta foi uma professora de Português de excepção, que apostava, sobretudo, num ensino da língua solidamente assente no recurso à grande literatura e à grande arte (mesmo no 2.º ciclo), na comunicabilidade e na relação humana, buscando aquilo a que gostava de chamar uma «pedagogia do deslumbramento». Nas suas aulas de Português também entravam a música, a pintura, o cinema de Chaplin, a mímica de Marcel Marceau… Deste ponto de vista, e no quadro da educação literária, os seus livros O Valor Pedagógico da Sessão de Leitura (1974) e principalmente as antologias sábia e afectuosamente comentadas (e ilustradas por Jorge Pinheiro), De Mãos Dadas Estrada Fora(4 vols., 1970-2002) continuam a ser do que de melhor se fez em Portugal.
Costumo dizer: deseja iniciar alguém (criança já leitora, jovem, adulto) no universo do literário? Ponha-lhe nas mãos De Mãos Dadas Estrada Fora.
Sobre a obra de Luísa Dacosta escrevi uma tese de doutoramento que Clara Crabbé Rocha orientou e Paula Morão arguiu. E redigi numerosos ensaios. Foi n'«um tempo longe».
José António Gomes, 19-2-2022
IEL-C – Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais da ESE do Porto