segunda-feira, 14 de junho de 2021

Jorge Palma, Diane di Prima e a Poesia Beat – “Por ti mandava arranjar os dentes / e comprava um colchão”



Gosto especialmente do Palma’s Gang ao vivo no Johnny Guitar, em 1993. Pegarei numa das suas mais conhecidas canções: “Cara d’anjo mau”. E porquê? Por, a propósito desta canção, Jorge Palma escrever em nota, no folheto do CD: “Tinha que fazer alguma coisa, depois de encontrar a Jane do Toulouse-Lautrec e de abusar da Diane di Prima, com mais ou menos poemas de amor. Tinha que fazer alguma coisa.”

Descontado o episódio autobiográfico, este apontamento diz-nos de onde vem o Jorge Palma-leitor. O tal “abuso” de Diane di Prima (Nova Iorque, 1934 – São Francisco, 2020), poeta da beat generation, reside na circunstância de se escutar na última estrofe da letra: “Por ti mandava arranjar os dentes / e comprava um colchão / por ti mandava embora o gato / por quem tenho tanta afeição / por ti deixava de meter o dedo / no meu nariz / por ti eu abandonava / o meu país”. 


Palma utiliza aqui uma anaforização estilística e sobretudo cita, nos 1.º, 2.º, 5.º e 6.º versos, quase ipsis verbis, dois pequenos fragmentos de um poema semelhante de Diane di Prima, incluído na série intitulada “Mais ou menos poemas de amor”. E onde a leu o nosso cantor? Pois bem, numa histórica Antologia da Novíssima Poesia Norte-Americana (pp. 93-95), que tinha foto de Ginsberg na capa, e que havia sido publicada pela Futura em 1973, com organização, prefácio e tradução de Manuel de Seabra (1932-2017). Seabra foi um contista, romancista, poeta e tradutor injustamente esquecido, que viveu grande parte da sua vida em Barcelona, primeiramente exilado, e que teve um relevante papel na tradução para Português de poesia catalã, russa (por exemplo Maiakovski) e de outras latitudes geolinguísticas.


A sua Antologia da Novíssima Poesia Norte-Americana foi muito lida e comentada, antes e logo a seguir ao 25 de Abril de 1974, e alguns poemas que nela figuram tiveram influência indiscutível em textos concretos de vozes como Jorge Sousa Braga, Jorge Fallorca, Artur Rockzane, José Soares Martins, José Pinto Leite e outros. Talvez também em escritos de Manuel Resende, de Paulo da Costa Domingues e de Carlos Tê. A partir dela, muitos foram à descoberta das edições norte-americanas ou francesas de Allen Ginsberg, Jack Kerouac, Lawrence Ferlinghetti, Gregory Corso, Gary Snyder, Frank O’Hara e outros. Um exemplo: O “Portugal”, de Jorge Sousa Braga, publicado em 1981 no seu livro de estreia De Manhã Vamos Todos Acordar com uma Pérola no Cu,  descende em linha directa do “América” de Ginsberg, que figurava a pp. 30-35 dessa célebre antologia. No Brasil, Paulo Leminski (1944-1989) e Ana Cristina César (1952-1983) são apenas dois dos poetas influenciados pelo mesmo tipo de leituras.


Feminista e lutadora pelos Direitos Humanos, Diane di Prima – que atraía, além do mais, pela sua beleza juvenil e pela liberdade de costumes que a faria desaguar no movimento hippie – foi igualmente imitada. Tal aconteceu, por exemplo, por via do seu livro Revolutionary Letters, de 1971 (capa de Ferlinghetti) – que adquiri na Shakespeare & Company de Paris, talvez em 1973 ou 1975, e de que cheguei a traduzir um par de poemas. A di Prima devemos ainda, entre muitos livros, Memórias de uma Beatnick (Memoirs of a Beatnick), publicado pela Teorema, em 1999, com tradução de Maria Augusta Júdice e com uma bonita foto da autora na capa. Vale a pena ler, para conhecer Diane di Prima, o olhar dela sobre os seus companheiros de geração e o que veio a seguir.


Jorge Palma, cujas letras iniciais muito devem também a este clima literário, artístico e sociocultural beat, já tardio, de inícios de 70, leu Diane di Prima na velha e preciosa antologia (e tradução) de Seabra. E ainda bem que assim foi. Gosto imenso da sua canção. E guardo uma certa ternura pela escrita de Diane di Prima.

 

Pode escutar aqui a canção de Jorge Palma.

 

João Pedro Mésseder