domingo, 8 de dezembro de 2024

Correspondência Interceptada, de Júlio Roldão


Correspondência Interceptada (AJHLP, 2024) é uma obra de Júlio Roldão (Porto, 1953-), jornalista muitos anos por vocação e paixão, toda a vida com o bichinho do teatro a roê-lo (chegou a ser actor e já o vi a ser performer) e, a seu modo, artista visual (desenha, cola, pinta, faz marcadores de livros...). Até versos já lhe li um ou outro, para não falar de crónicas e entrevistas (no fim de contas a sua ocupação principal foi a de jornalista no Jornal de Notícias).

A isso não é alheio este livro, um ramalhete de memórias de uma vida de estudante, jovem actor, aprendiz de jornalista, e jornalista tout court, que entrevistou gente como António Ferrer Correia e Álvaro Cunhal; que acompanhou, em reportagem, figuras como o presidente Jorge Sampaio; que viajou para aqui e para acolá, num tempo em que o jornalismo não era ainda a droga em que entretanto se tornou.

Bonita edição é esta – como são sempre as da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto, com as belas capas de Augusto Baptista – para cuja visualidade a própria família Roldão concorre: o desenho da capa é do autor e o seu retrato, na badana, é de Rita Roldão. É que este é um livro que repousa em afectos vários. Por onde passam (ainda bem) personalidades e afinidades electivas de diverso tipo: Arnaldo Trindade, Jacques Brel, Rosa Mota...

Infância, juventude, família, curvas e contracurvas da carreira profissional, paixões artísticas, volta ao mundo dos amigos em 80 dias ou talvez menos, um conjunto, em suma, de memórias escritas em modo epistolar a fugir para o ficcional – de tudo isto se faz Correspondência Interceptada (belo título!), de Júlio Roldão. De algum modo, também, um autorretrato, sem autocomplacências nem poses, de quem sempre cultivou a arte de viver acordado e de gostar de viver. 

A prosa é viva e flui, aqui e acolá tem laivos de literariedade, e sabe bem lê-la, nesta época de desumanas frialdades em que vivemos.

 

José António Gomes

IEL-C (Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais da ESE do Porto)

 

domingo, 11 de fevereiro de 2024

Miguel Torga, sempre



Nasceu na terra a que chamou, e bem, um “Reino Maravilhoso” e continua a perfilar-se como um dos nossos escritores maiores, além de ter sido alguém que sofreu na pele (ele e os seus, diga-se de passagem) a perseguição do fascismo: livros apreendidos e proibidos, prisão no Aljube, saídas do país interditadas… Tudo porque sonhava com a liberdade, com a democracia, com um país melhor e mais justo…


Os seus livros de contos são clássicos modernos da nossa ficção e um tributo inesquecível à paisagem natal e às suas gentes e animais (bem sei que “Miura”, o toiro, é ribatejano e que “Vicente”, o corvo, representa o Homem e, de alguma maneira, o próprio autor). Falo sobretudo de Bichos, 1940, de Contos da Montanha, 1941, de Novos Contos da Montanha, 1944, e doutros. Os seus belíssimos poemas breves incluídos no Diário (1941-1994, dezasseis volumes de reflexão) – focados no universo da infância e na terra –, os Poemas Ibéricos, 1965, e outras recolhas impõem-no como poeta maior a ser lido e relido. Sempre. O seu livro Portugal, 1950, é da melhor prosa que, em literatura, se escreveu acerca do país. E depois, há ainda a obra de cunho autobiográfico (A Criação do Mundo, retrato de si e do mundo, em vários volumes saídos entre 1937 e 1981), a novela e o romance (O Sr. Ventura, 1943, Vindima, 1945, este centrado no Alto Douro) e ainda os textos para teatro que escreveu, como, por exemplo, Mar, 1941. Lopes-Graça, Luís Cília, Rui Veloso, João Braga e outros puseram-no em música. E bem. 


Nos cinquenta anos do 25 de Abril, é bom, é importante evocar esta figura maior das letras, da cidadania, da luta pela liberdade e, sobretudo, lê-lo, dá-lo a ler, e reviver todo o gozo que a leitura de vários dos seus livros é capaz de proporcionar.


Uma nota final, com uma sugestão de leitura de O Meu Primeiro Miguel Torga, pequena biografia belissimamente ilustrada por Inês Oliveira, que escrevi sob o pseudónimo de João Pedro Mésseder e que inclui poemas e fragmentos doutros textos do autor de Nihil Sibi (1948). Trata-se duma forma possível de introduzir os mais jovens ao que foi a aventura humana e artística da vida do escritor. Editada pelas publicações Dom Quixote em 2009, a obra encontra-se recomendada pelo PNL (Plano Nacional de Leitura) e obteve um destaque do Júri do Prémio Nacional de Ilustração no mesmo ano.


A 17 de Janeiro de 2024, passaram vinte e nove anos sobre a morte de Torga. E a sua literatura continua viva. 

 

 

José António Gomes

IEL-C (Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais da ESE do Porto)