quinta-feira, 18 de março de 2021

Da poesia de Rita Taborda Duarte a Roturas e Ligamentos e As Orelhas de Karenin


Nascida em Lisboa, em 1973, e com um mestrado em Teoria da Literatura, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa – intitulando-se a sua dissertação Crítica e Representação: Da Aporia na Crítica de Um Texto Poético –, Rita Taborda Duarte é professora do ensino superior e a sua atividade como crítica literária, sobretudo de poesia, deixa rasto bem visível em diversas publicações periódicas especializadas, como o antigo suplemento literário do Público e as revistas Relâmpago e Colóquio-Letras, entre outras.

Assim, o conhecimento desta também escritora de belíssimos e desafiadores livros para crianças e jovens deverá principiar com a descoberta da sua singular poesia de preferencial destinatário adulto: livros como Experiências Descritivas: dos sentidos das coisas / círculos (Duarte, 2007), em co-autoria com André Barata; Elogio do Outono(Duarte, 2014); Roturas e Ligamentos (Duarte, 2015); e As Orelhas de Karenin (Duarte, 2019), ilustrados respetivamente por Luís Henriques (os dois primeiros), André da Loba e Pedro Proença, entre outros títulos de poesia.

Sendo impossível analisá-los todos neste espaço – até pela sua relativa complexidade conceptual – registem-se, no entanto, alguns aspetos marcantes destes volumes. Em primeiro lugar, a circunstância de serem livros de poesia ilustrados e graficamente muito cuidados (a materialidade e a paratextualidade do objeto é, desde logo, activadora de sentidos), confrontando sempre o leitor com um desafio: a leitura da possível intersemiose palavra/imagem. 

Em segundo lugar, trata-se de colectâneas estruturadas de modo muito estudado, por vezes divididas em secções com títulos, obrigando a ler cada colectânea como um livro, com unidade e coerência próprias, e não como simples recolha. 

Em terceiro lugar, são escritos cujos ecos intertextuais, não raro assumidos em epígrafes, não desejam passar despercebidos, e que ligam esta poética a vozes tutelares da poesia moderna e contemporânea de língua portuguesa, que a autora conhece bem – Pessanha, Pessoa, Ruy Belo, Herberto Helder, Luiza Neto Jorge, Ana Hatherly, Gastão Cruz, Manuel Gusmão, Manoel de Barros e outros –, a somar por exemplo a Tolstoi (em As Orelhas de Karenin) e a clássicos da Antiguidade: a Odisseia, as Metamorfoses de Ovídio e outras narrativas míticas. Um diálogo intertextual que, neste caso, explora as matrizes hipotextuais para propor, às vezes num registo parodístico entre o irónico e o amargo, visões de um «presente» relido à luz desses modelos clássicos. 

Destaque-se, ainda, a corporalidade, a fisicalidade, o erotismo (mas também o seu reverso: o tédio) que atravessam esta escrita de mulher, núcleos sémicos que, evidentemente, se relacionam com um léxico, uma imagética e um jogo linguístico individualizados; mas assinale-se também a recriação poética de episódios e situações que permitem ler, amiúde, um afirmativo eu feminino, implicado na assunção e defesa da sua identidade pessoal e sexual. Paixão, coita amorosa, abandono e desilusão, lamber de feridas – se a expressão me é permitida –, condição materna, meditação sobre o próprio acto da escrita são apenas algumas das linhas estruturantes dos últimos livros da autora, em que magníficos poemas como «Amanhando peixe fresco das manhãs» ou «Salto ao sexo» (ambos em As Orelhas de Karenin (Duarte, 2019: 25-26, 30-31), com excelentes ilustrações de Pedro Proença) tocam, inegavelmente, a sensibilidade do leitor, o interpelam e o desafiam a explorar as profundezas desta poesia de reconhecida qualidade. (E cumpre, de passagem, recordar aqui que As Orelhas de Karenin foi uma das obras finalistas do Prémio Literário Correntes d’Escritas 2021).

Atente-se ainda no belo e graficamente invulgar Roturas e Ligamentos, a obra anterior ao livro distinguido, em que as magníficas ilustrações de André da Loba combinadas com o design gráfico de Dulce Cruz, fazem do objecto-livro uma aventura visual, repleta de pequenos truques e efeitos de estranhamento. Uma visualidade à altura da escrita, acrescente-se, já que esta faz com que nos percamos e ganhemos nas suas composições, belas e estranhas, mas sempre cativantes: «o poema olha a imagem, já seca e enrugada. Diz-lhe, sorrindo, sorrindo sempre muito: ‘Que bonito!’, uma fotografia e toda em verso branco. // E perguntou-lhe, enfim, enquanto sorria em decassílabo: / – E sempre esteve morta, esta tua natureza?» (Duarte, 2015: 55). Tudo isto, apetece acreditar, porque «só se pode ser poema no outono», como declara o título de uma das composições (Duarte, 2015: 31). Em suma, uma meditação sobre a relação com o outro, sobre a condição feminina, sobre o amor e a dimensão erótica, que não deixa de ser muitas vezes reflexão sobre a linguagem e a própria escrita, enquanto teia amorosa – e sobre muitas outras coisas. Uma poesia merecedora de que nela nos demoremos. Tal como as imagens que quase sempre a acompanham.

Encontramo-nos, não restem dúvidas, perante uma das vozes mais interessantes, pessoais e desafiadoras da poesia portuguesa contemporânea. Uma voz que urge ler, reconhecer e dar a ler.

 

Referências bibliográficas

 

DUARTE, Rita Taborda (2007). Experiências Descritivas: dos sentidos das coisas / círculos. Lisboa: Caminho (em co-autoria com André Barata; ilustrações de Luís Henriques).

DUARTE, Rita Taborda (2014). Elogio do Outono. Lisboa: Edição 100 Cabeças (ilustrações de Luís Henriques).

DUARTE, Rita Taborda (2015). Roturas e Ligamentos. Lisboa: Abysmo (ilustrações de André da Loba).

DUARTE, Rita Taborda (2019). As Orelhas de Karenin. Lisboa: Abysmo (ilustrações de Pedro Proença).

 

José António Gomes

IEL-C – Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais da ESE do Porto