Domingos Lobo possui uma obra já vasta no campo da criação poética: Voos de Pássaro Cego (1998); As Mãos nos Labirintos (2003); Para Guardar o Fogo (2010, Prémio Literário Cidade de Almada 2009); Lisboa, Modos de Habitar (2014); A Pele das Sombras (2011); Os Dias Desarmados (2018); O Rosto em Ruínas(2020); e Quotidianos e Outras Noites, título editado em 2020 pela AJHLP – Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto.
São traços da poética do autor, por exemplo, o fôlego discursivo de muitas composições, bem como a atenção ao outro e a um certo real em que se intersectam a dimensão psicossocial do sujeito e o espaço sócio-económico e cultural em que se move. Com efeito, em vários destes poemas, existe com frequência a ficcionalização de um cenário deste tipo, em especial naqueles, mais extensos, que quase se constituem como monólogos enunciados por personae dramáticas, masculinas ou femininas.
Isto mesmo ocorre em Quotidianos e Outras Noites. Nesta obra, poemas como «Agenda para os dias inúteis» (pp. 11-13), «Monólogo do burguês cansado» (pp. 13-16) ou «Certas mulheres – 3. Blue velvet» (pp. 19-21) dão voz a diferentes personae: um trabalhador, um pequeno burguês entediado, uma prostituta. Outros exemplos poderiam ser apontados e é evidente que à dimensão dramática destas figuras e dos seus monólogos não é alheia a conhecida vocação dramatúrgica e teatral do autor. Noutras composições, o sujeito poético constrói o retrato vivo de um tipo humano popular, como sucede em «O meu primo» (pp. 49-52) ou «Poema das minhas mulheres tristes» (pp. 43-44) que, juntamente com o mais programático «Vou promover a realidade a coisa que se veja» (pp. 45-48) são dos poemas mais conseguidos do conjunto, no seu primeiro apartado (pp. 9-52). Programático é também, mais adiante, o não menos conseguido poema «Emboscadas» (pp. 82-83), um útil ponto de partida para uma reflexão sobre a poética de Domingos Lobo.
A segunda parte do livro, intitulada «e outras noites» (pp. 53-87), é dominada pela disforia e pela perda, mas sem renunciar a uma nota de esperança, por exemplo no curto poema «Fora de horas» (p. 87), de ecos drummondianos mas também neo-realistas, com que termina o poemário: «não declines / nem te ausentes / em subjectivos lastros / cantemos de voz túrgida / mas cantemos / os nossos mortos / não perdoam a cobardia e o silêncio / que teima em algemar-nos». Esta é uma atitude compreensível, parece-nos, num poeta que revela uma visão das coisas gauche e revolucionária – outro elemento nuclear da sua poética. Pois, do mesmo modo que não temos pejo em reconhecer que escritores de grande valor como Almada Negreiros, Pedro Homem de Mello, António Manuel Couto Viana, Agustina Bessa Luís ou Vasco Graça Moura eram estruturalmente vozes de direita – como objectivamente evidencia a sua escrita –, outros como Sidónio Muralha, Maria Lamas, Carlos de Oliveira, José Gomes Ferreira, Manuel da Fonseca, Ilse Losa, Eugénio de Andrade, Egito Gonçalves, Luiza Neto Jorge, Saramago, Maria Velho da Costa, Maria Teresa Horta, Mário de Carvalho, Manuel Gusmão, José Vultos Sequeira, Vale Moutinho, Francisco Duarte Mangas ou Ana Margarida de Carvalho constroem expressões autorais de esquerda – aspecto que a concreta produção literária de cada um deles permite ler e que, naturalmente, enquanto traço ideotemático, constitui elemento caracterizador da respectiva poética.
Mas voltemos ao livro de Domingos Lobo. A vida nos subúrbios desumanizados da grande cidade, a exploração do homem pelo homem, o tédio e a solidão, o aparente absurdo da existência, a fadiga (que é também, com frequência, esgotamento dos corpos e do desejo) constituem algumas das linhas temáticas com que se cosem estes versos, sobretudo na primeira parte, intitulada «quotidianos». Já da segunda, são eixos estruturantes a disfunção relacional e a separação do par amoroso, a vibração erótica, a solidão do sujeito e a consciência da finitude, o topos do tempus fugit, mas também a memória na sua ligação ao espírito dos lugares (outro tópico a salientar neste poeta, que dedicou um livro a Lisboa e que insere, no presente volume, dois belos poemas em que o Porto é pano de fundo). Daí o título do segundo momento do livro: «e outras noites».
Jacques Brel, João José Cochofel, Manuel da Fonseca, Ruy Belo, Carlos de Oliveira (evocado em «Interpretação pessoal da Guernica de Picasso», pp. 84-86), Fernando Assis Pacheco e Joaquim Manuel Magalhães – de quem é citada a emblemática expressão «Voltar ao real (…)» –, mas também Orlando Neves, Cardoso Pires, Afonso Praça (três autores homenageados no pitoresco monólogo em lisboês cerrado «Subúrbio 2», pp. 29-31) são apenas algumas das vozes (quiçá tutelares, em alguns casos) com as quais a poesia de Domingos Lobo dialoga, através de uma estratégia citacional, mas não só. Certo, no entanto, é que o poeta possui uma mundivisão própria e uma dicção e uma linha imagética igualmente suas, além de uma retórica em que, por exemplo, a frase indutora reiterada e outros processos de anaforização / intensificação lírica revelam especial funcionalidade em termos estruturais e expressivos.
Uma palavra final merece o cuidado gráfico posto na edição de Quotidianos e Outras Noites, que se destaca pela capa belíssima da responsabilidade do fotógrafo, cartoonista, capista e escritor Augusto Baptista, com uma ilustração a preto e branco sobre um azul nocturno, gerada a partir de foto sua, e texto aberto a branco. Visualmente, talvez seja este o mais belo volume da colecção de poesia Explicação dos Pássaros da AJHLP.
Um par de notas biobibliográficas a terminar. Domingos Lobo (n. 1946), recorde-se, é natural de Nagozela, Santa Comba Dão. Em 1982 recebeu o Prémio de Melhor Encenador, do Festival de Teatro de Lisboa, distinção que se liga a uma das forças motrizes da sua vida: a actividade teatral, quer como encenador e actor quer como dramaturgo, adaptador de textos para teatro, crítico teatral e de cinema e membro de colectivos de jograis.
Director do jornal A Voz do Operário, Domingos Lobo é actualmente um dos poucos colaboradores da imprensa que se dedicam com assinalável regularidade à divulgação crítica, nas páginas do semanário Avante!, no quinzenário As Artes entre as Letras, na Vértice, na Gazeta Literária e noutros periódicos, tendo reunido, por exemplo no volume Palavras que Respiram – 30 olhares sobre a literatura portuguesa (Página a Página, 2016), uma selecção dos seus textos de crítica literária publicados nos últimos anos.
Mas Domingos Lobo é, sobretudo, um autor de ficções e de textos para teatro. No primeiro caso (ficcionalizando amiúde a partir do que foi a sua vivência angolana) editou Os Navios Negreiros Não Sobem o Cuando (1993, Prémio de Ficção Cidade de Torres Vedras), Pés Nus na Água Fria (1997), As Máscaras Sobre o Fogo (2000), As Lágrimas dos Vivos (2005), Território Inimigo (2009) e Largo da Mutamba (2015, Prémio Literário Alves Redol 2013).
No domínio teatral, é autor de Cenas de Um Terramoto (2010), Não Deixes que a Noite se Apague (2009, Prémio Nacional de Teatro Bernardo Santareno) e A Fome dos Corvos e Outros Pretextos Teatrais (2020).
Em síntese, uma obra multifacetada e ampla, que abarca os três modos literários fundamentais e que importa conhecer e reconhecer.
José António Gomes
IEL-C – Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais da Escola Superior de Educação do Politécnico do Porto