segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Paco Ibañez: o que a muitos revelou o que é a poesia


Em 2019, celebrou-se um aniversário bem especial: os cinquenta anos da inesquecível actuação de Paco Ibañez no Olympia, de Paris, a 2 de Dezembro de 1969, um ano e tal após o Maio de 68. A recente reedição do disco Paco Ibañez en el Olympia (Paris) tornou-se, por isso, um acontecimento.

Sobre o enorme Paco Ibañez explore-se o seu bem organizado sítio oficial na Internet e leia-se o que Saramago e outros acerca dele disseram.  Detestado pelo franquismo, pelas direitas e pelo corrupto PP, tolerado (mas mal) pelo PSOE, Paco Ibañez é das figuras maiores da cultura ibérica (eu diria europeia). É aquele que a muitos revelou o que era a poesia e, sobretudo, a grande lírica de língua castelhana, que ele musicou e cantou como ninguém: Góngora, Quevedo, Arcipreste de Hita, Jorge Manrique, Machado, Lorca, Hernández, Alberti, Cernuda, Celaya, Léon Felipe, José Agustín Goytisolo, Blas de Otero, Gloria Fuertes, o cubano Nicolás Guillén, o chileno Neruda e muitos, muitos outros – basta consultar a impressionante antologia de poemas em língua castelhana noutras línguas a que o génio do compositor/cantor/guitarrista valenciano deu inigualável moldura musical e voz.  

Não foram poucos os que, graças a Ibañez, começaram a conhecer a riqueza do Romanceiro popular espanhol, a poesia do Siglo de Oro (séculos XVI-XVII: Quevedo, Góngora…) ou as poéticas das Gerações espanholas de 98 (Machado, por exemplo) e de 27 (Lorca, Alberti, Cernuda…) – sobre as quais haveriam de tombar os espectros da Guerra Civil, da perseguição e do exílio. Mas o cantor foi, ainda é, excepcional veículo de divulgação de muitos daqueles poetas que ao franquismo se opuseram nos anos de brasa: décadas de 40 a 70 do século XX (como Celaya ou Goytisolo). Alguém que veio pôr em evidência a nobreza e grandeza estética do canto de luta e de protesto, dando a ver a criação poética como o acto de rebeldia que também é.

Leitor admirável de poesia, Paco Ibañez constitui a síntese genial de uma voz de timbre único e de um notável talento de compositor de canções e de tocador de guitarra, bem como de adequação da estrutura melódica ao conteúdo e ao perfil formal do poema, sem descurar o seu registo próprio, seja ele mais trágico, mais satírico ou mais interventivo. 

Nas suas canções cruzam-se tradições e veios diversos: Georges Brassens (a quem Paco chama o J. S. Bach dos cantautores), a ‘chanson’ francesa e a música de intervenção espanhola e sul-americana, o flamenco e o folcore musical ibérico. Filho de republicanos (pai exilado), Ibañez – que conheceu bem a chilena Violeta Parra em Paris, no início da década de 60, como aliás conheceu Luís Cília e admirou José Afonso – converter-se-ia num dos incontornáveis cantautores do nosso tempo, voz rebelde e interventiva, internacionalista e sempre firme no seu afrontamento do fascismo, das forças do capital e do imperialismo, empenhada voz, acima de tudo, na incitação ao sentido crítico e ao amor pela grande poesia.  

Escute-se este jogral dos tempos modernos, por exemplo, em duas das suas canções mais emblemáticas: «Lo que puede el dinero» poema do Arcipreste de Hita (c. 1284-c.1351), e «Don Dinero», de Francisco de Quevedo (1580-1645), que funcionam hoje como certeiras críticas e condenações do capitalismo burguês e dos seus mais perversos efeitos na alma humana.



José António Gomes

CIPEM | INET-md (IPP e UNL) e IEL-C – Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais da ESE do Porto