A
etimologia não resolve nada só por si, mas levanta pistas, às vezes
insuspeitas, às vezes óbvias mas esquecidas.
Por
exemplo, o título desta colectânea1. Sempre. Na sua origem
latina mais antiga, há um elemento sem – que, curiosamente, está também
na base de semelhante, de simultâneo e de singular. A
noção fundamental que lhe corresponde é a de uma unidade, singularidade ou
conjunção, seja no espaço seja no tempo. O segundo elemento, per (em
latim a palavra é semper), assinala uma ideia de duração, ou antes
perduração, ou trajectória, através de vários lugares, tempos ou vicissitudes. Sempre
exprime, portanto, uma unidade perduradoira através (ou apesar) das
vicissitudes, uma unidade de mudança, uma unidade dialéctica e não substancial,
ou, se preferem, substancialmente dialéctica, sem definição subsistente, porque
apenas subsiste em redefinição constante.
Abril
era o segundo mês do calendário anual romano. O ano cíclico actual foi
adiantado de dois meses, e por isso em Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro
assinalam erradamente, na sua designação, respectivamente, o sétimo, o oitavo,
o nono e o décimo mês. Segundo uma etimologia popular, registada pelo primeiro
grande linguista romano, Varrão, o mês de Abril, em latim Aprilis, teria
este nome porque nele ver omnia aperit: «a Primavera abre tudo». Quando
Ary dos Santos fala nas «portas que Abril abriu» não está, portanto, a fazer um
simples jogo de paronímia, ou semelhança verbal, está (talvez sem dar por isso)
a reactivar a carga etimológica tradicional do nome do mês, dando-lhe uma
conotação que o liga ao maior (e até hoje melhor) acontecimento histórico do
Portugal moderno.
Mas
o próprio Varrão aponta que, numa origem mais remota e inaparente, o nome Abril
se relaciona com o nome Afrodite, o nome grego da deusa do amor. Os
filólogos modernos parecem dar-lhe razão; o nome Abril relaciona, entre
si, o abrir das corolas, o abrir dos dias à inundação solar, o abrir às seivas
nas veredas vegetais, e o tumultuar do amor no sangue, seiva animal e humana.
Num belo poemeto de Os Amantes sem Dinheiro que tem
precisamente o nome deste mês e que data de 1947-49, Eugénio de Andrade diz:
Abril
anda à solta dos pinhais
Coroado
de rosas e de cio,
E
num salto brusco, sem deixar sinais,
Rasga
o céu azul num assobio
Estes
versos retomam uma vivência de tradição inconsciente e agarrada ao próprio nome
do mês, nome que se julga ter nascido de algo como uma redução afectiva, meiga,
ou hipocorística, Aphrô, do nome de Afrodite.
Abril,
sempre: o
borbulhar cíclico da esperança, que se impõe mesmo antes de pensar-se, por
impulso genésico incontível, através de todos os meandros da história. A
certeza de que viver faz sentido, mesmo que não se saiba qual, e às vezes não
pareça. Um sentido tão evidente como é evidente o seu contrapólo: a morte, as
mil mortes da limitação individual, da inabilidade, do fiasco, da decrepitude,
da doença, da opressão ou exploração, da mentira, da traição, do egoísmo de
classe.
Não
há amor feliz, disse Aragon, e é verdade. Também não há amor sem a certeza da
sua razão, que nunca se conhece. Primeiro vive-se, depois é que se vive –
pensando. O próprio prazer é tardio, é já, se calhar, um começo de velhice. O
desejo não se liga na sua fonte juvenil a uma fruição: o amor, qualquer amor,
urge-nos, e dói. Todo o amor é, não um erro, mas uma errância, e tem a sua
imagem clássica nos errores de Ulisses, Eneias ou dos Lusíadas, com
passagem por uma (ou mais que uma) ilha Edénica, uma ilha Afortunada,
uma ilha da Perfeição, que satura sempre, porque é dada, e não feita, e os
humanos não se contentam com menos do que com uma candidatura ao divino. O
encanto de uma corola, um rosto, de uma liberdade entrevista, dói-nos, como a
ansiedade de fazer o que se não sabe fazer, nem como fazer.
Abril.
Sempre. Através de todos os errores. Certo na hora incerta. Como a morte, tal
qual. Porque a resgata.
Nota
1 Este texto de
Óscar Lopes foi inicialmente publicado em AA VV. Sempre. Porto:
Comissão Promotora das Comemorações Populares do XII Aniversário do 25 de
Abril, 1986, p. 16.