Em O Caminho de Casa (Lisboa: Frenesi,
1989), de Manuel António Pina, a tematização da infância (da busca da infância)
e da quase impossibilidade de reencontro do sujeito consigo mesmo, descobre-se
em «Kindergarten», o décimo primeiro poema, datado de Berlim, do ano de 1983:
«Também eu ou alguém brincou há muito tempo / em outro jardim, brincando, / Sem
que palavras lá estando? / Fora de que memória não me lembrando?» (p. 16). Essa
dificuldade do regresso à infância radica num certo efeito de estranheza
relativamente à imagem do sujeito projectada pela memória. Porque este parece
não se reconhecer no retrato que a lembrança lhe devolve.
Em
articulação com este tópico, emerge o motivo do duplo, tão comum, aliás, na
obra narrativa de Pina (veja-se a novela juvenil Os Piratas, de 1986, e as suas histórias infantis): «Aproximam-se
as horas do silêncio / e do ruído, e fico só de novo. / Abro a janela e fecho
alguma coisa / (provavelmente a infância) dentro d’alma. // Talvez não passe
tudo de memória, / de coisas de que Alguém se recordasse, / a minha vida, os
dias e as noites, / e a minha própria infância me faltasse.» (p. 11)
Na esteira
ainda do primeiro Modernismo (e de Pessoa, é claro), esta poesia coloca-nos,
frequentes vezes, na vizinhança daquele sentimento de dispersão com que certos
poemas de Mário de Sá-Carneiro também nos confrontam, muito embora dela se
encontre ausente a radicalidade do autor de Indícios de Oiro. Recordo o seu
célebre poema: «Eu não sou eu nem sou o outro, / Sou qualquer coisa de
intermédio: / Pilar da ponte de tédio / Que vai de mim para o Outro.» (Poemas Completos. Lisboa: Assírio &
Alvim, 1996, p. 80)
A admitir-se
certa radicalidade, ela residirá, antes, numa tentativa antiga de destruição da
memória ou de algumas das imagens que ela restitui. No centro dessas imagens, o
próprio sujeito. Ou o outro? Recue-se a 1974, ao primeiro livro de Manuel
António Pina: «Estou sempre a falar de mim ou não. – O meu trabalho / é
destruir, aos poucos, tudo o que me lembra. / Reflexão e, ao mesmo tempo,
exercício mortal / normalmente regresso a casa tarde, doente.» (Ainda Não É o Fim nem o Princípio do Mundo
Calma É Apenas um Pouco Tarde (1974), 2.ª ed., Porto: A Erva Daninha, 1982,
p. 17).
O poeta reescreve-se,
portanto. Daí, também, a retoma de elementos anteriores, como «o caminho de
casa», título do poema que dá nome ao seu livro de 1989. Já não se trata,
contudo, de um regresso «doente», como em Ainda
Não É o Fim..., mas antes de uma espécie de conformação com a dispersa
complexidade de um sujeito que se admite, admitindo o outro em si, fonte
inesgotável do autoconhecimento: «Volto de noite para casa. / Tudo é memória
fora de mim / ou onde em mim alguém conduz / fisicamente o automóvel. // (...) Subindo
as escadas grave e inocente / como quem volta à noite para casa / e voltando
para casa inteiramente / e adormecendo em mim como em casa?» (p. 18)
Deixemos,
contudo, que o poema nos abandone no limiar de outra dimensão sugerida pelo
simbolismo da casa e do adormecimento, o território onde os extremos parecem
enfim tocar-se. O regresso a casa é o retorno a um espaço protetor, materno: à
terra da infância?, ou ao derradeiro lugar do corpo, após a morte, a
terra-mãe?, ou a ambos? Ao leitor de O
Caminho de Casa caberá encontrar porventura respostas (?), noutros livros
de Manuel António Pina.
José António Gomes
(Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)