Nascida em Torres Novas em 1893 e falecida em Lisboa em 1983, Maria
Lamas foi, além de antifascista e democrata, escritora e jornalista de mérito:
trabalhou em O Século, dirigiu, até
1947, Modas & Bordados, com
grande sucesso, imprimindo a este semanário feminino uma nova e mais correcta
orientação, e dirigiu ainda a revista Mulheres,
criada em 1976. Além da sua escrita para crianças e jovens e dessas duas obras
monumentais que são As Mulheres do Meu
País (1950) e As Mulheres no Mundo
(1952), da sua obra de criação literária para adultos cumpre destacar o livro
de poesia Humildes (1923), os
romances Diferença de Raças (1923), O Caminho
Luminoso (1928), Para além do Amor
(1935) e A Ilha Verde (1938).
Destas narrativas, Para além do
Amor (reedição: Lisboa: Parceria A. M. Pereira, 2003), cuja acção se inicia
na ambiência genesíaca e erotizante do Buçaco e se transfere depois para o
Estoril e Lisboa, com uma incursão também num meio fabril dos arredores,
afirma-se como pioneiro trabalho de ficção sobre os dilemas de uma personagem
burguesa e católica, Marta. Casada com um industrial incapaz de reconhecer a
sua individualidade de pessoa e de mulher, Marta equaciona uma alternativa de
vida, que acaba por apontar para dois rumos.
Por um lado, o amor por outro homem, revelação de todo um mundo novo,
tanto no plano afectivo e passional, como no do respeito mútuo – mundo esse
que, no entanto, nunca a fará abrir mão da sua condição de mãe. Por outra
parte, a entrega a um pensamento social e, finalmente, à acção, já que a
relação amorosa de Marta com Gabriel – que não conhecerá um happy end – fará nela desabrochar uma
renovada atenção aos outros, em especial aos deserdados, a quem os bens de uma
vida digna, com educação e cultura, são negados, por razões sociais e
económicas.
Com uma recepção crítica que, à época, se dividiu face à desassombrada
tematização do adultério e do papel da mulher na sociedade (v. Vasques, 2003), Para além do Amor é, além disso, um
libelo contra uma moral burguesa esclerosada, patriarcal e machista, que almeja
manter a mulher num limbo doméstico, reduzida ao papel de mãe e esposa,
limitada à superficialidade de relações sociais de classe (a burguesia) e
condenada a uma existência vazia no plano afectivo. Para conferir autenticidade
a estas tensões psicológicas e sociais, a autora adopta um registo
confessional, intimista e reflexivo, que a narração autodiegética potencia.
Um romance, pois, a reler, não tanto pela sua arquitectura diegética
relativamente elementar, mas mais pelo seu pendor reflexivo, sobretudo no que
toca à condição da mulher, em anos em que assumir tal posição constituía ainda
um acto de insubmissão e de coragem.
Referência bibliográfica
VASQUES, Eugénia (2003). «Um crime de lesa romance (Maria Lamas
1893-1983)», prefácio a Lamas, Maria. Para
além do Amor. Lisboa: Parceria A. M. Pereira, pp. 7-28.
José António Gomes
NELA – Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto