Já vão uns anos, participei, em Espanha, num congresso sobre literatura e promoção da leitura que tinha como lema o infeliz slogan «Ler não engorda!», fórmula típica deste tempo anoréctico em que vivemos. Ironicamente, fora inventado, segundo julgo saber, por um dos principais responsáveis da organização, personagem divertida e avantajada que nunca perdia a oportunidade de apreciar uma boa comida ou um vinho de qualidade.
É que ler, efectivamente, engorda. Em primeiro lugar, o raciocínio, a sensibilidade, a imaginação, além das competências linguística e literária. Livros há, no entanto, que têm a virtude de nos abrir um duplo apetite: o de ler e o de comer.
Escrever com saber e delícia sobre o comer e o beber, provocando em quem lê essa água-que-cresce-na-boca e reclama o aconchego do estômago, é arte que poucos dominam. Quem se não lembra das impossíveis merendas d’Os Cinco, d’Os Sete e de outras aventuras juvenis? – que me fizeram delir um nunca acabar de jesuítas e torradas com manteiga, nesses intermináveis lanches da infância em que o prazer de devorar um livro e o de comer se confundiam. Quem, ao ler os romances de Saramago, não se apercebe da delícia com que se fala do pão torrado com manteiga; e quem, lendo A Cidade e as Serras, não invejou Jacinto saboreando em Tormes uma canja de galinha e um arroz de favas capazes de fazer os anjos optar pela vida terrena e de surpreender um civilizado palato parisiense? E como não recordar a passagem de The Importance of Being Earnest, de Oscar Wilde, que para sempre me conquistou para o chá preto com sanduíches de pepino? Ou ainda as pantagruélicas refeições do senhor António José da Silva, abastado mercador de panos da Rua das Flores, no Porto, que, num jantar de maior fastio provocado pela má sorte aos amores, se limitava a comer, no dizer de Camilo Castelo Branco, «obra de arrátel e meio de cozido da perna, uma travessa de arroz com rodelas de linguiça, uma côncava pelangana de carneiro ensopado com batatas, uma tigela de chorudo caldo com sopas que se levantavam entumescidas quatro polegadas acima do nível da tigela, um quarto de ceira de figos de comadre, alguns copos de vinho à proporção, e mais nada.» E acrescenta Camilo, ainda em A Filha do Arcediago (Mem Martins: Europa-América, s.d.), que «a Sr.ª Angélica, assustada do fastio de seu irmão, pouco mais comeu.»
Matizo o que afirmei no início: quando a imaginação é alimentada por bons livros, ler não engorda a mente; antes a torna musculada e ágil. E a fruição de palavras e enredos não anda longe da degustação. É que, como escreve A. B. Alcott, «um bom livro é aquele que se abre com esperança e se fecha com proveito». Tal qual uma boa e honesta refeição.
José António Gomes
NELA – Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto