No passado 2 de Outubro de 2011, celebrou-se o 94.º aniversário de Óscar Lopes, figura ímpar das nossas letras e ensaísta de reconhecido prestígio a quem – recorde-se –, por iniciativa do infatigável editor José da Cruz Santos e da Cooperativa Árvore, se prestou, entre os dias 10 e 14 de Outubro de 2007, um tributo à altura da dimensão científica, cívica e pessoal do homenageado. Indissociável da valiosíssima obra realizada, a trajetória da vida de Óscar Lopes impõe-se-nos como um exemplo de verticalidade e inteireza moral. Até porque ela se distingue, desde logo, pelo modo como soube alicerçar um excepcional percurso de investigação e docência – em áreas como as Ciências da Linguagem, a Historiografia e a Crítica Literárias – numa visão mais ampla do mundo, determinada pela condição de marxista e de militante comunista de longa data.
Neste momento – e em jeito de breve homenagem – limito-me, pois, a duas notas. Ler o autor de Ler e Depois, assistir às suas conferências (ouvi-o falar de Aquilino, Torga, Eugénio de Andrade e de tantos outros) ou escutar as palavras por ele proferidas em ocasiões em que é objeto de homenagens públicas (palavras que não hesitam, quando necessário, em fazer luz sobre o estado do mundo) constitui uma aventura. A aventura de seguir o rasto de uma inteligência que a todo o momento convoca elementos das mais inesperadas áreas do saber (filosofia, história, economia, física e química, linguística, história da língua, etc.), a fim de lançar luz sobre as tessituras literárias. Escutar e ler Óscar Lopes é testemunhar um pensamento que se desdobra e expande com rigor e coerência, de modo lúcido (palavra cuja remota raiz é a lux, lucis latina) e irradiante. É testemunhar um sentido que se constrói na pista de outro sentido e uma inteligência verbal sem paralelo. É dar graças por estar vivo e poder pensar com as palavras do outro. E é sentir que certos gestos de partilha e de procura de diálogo não têm retribuição possível.
Ao lembrar, por outro lado, o resistente antifascista (que a ditadura salazarista e marcelista prendeu, perseguiu e prejudicou profissionalmente), ao lembrar o homem de bem, o combatente pela liberdade, pela democracia e pela justiça social, direi contudo que «revolucionário» continua a ser aquela palavra incómoda, ou quase, quando se aborda, no aconchego dos salões e dos auditórios académicos, a personalidade e a obra ímpares de Óscar Lopes. (Neste ponto, nada de diferente do que ocorre ou ocorreu com outras figuras, como Maria Lamas, José Gomes Ferreira ou Fernando Lopes-Graça, para apenas citar dois exemplos.)
Quando o registo mais pessoal e íntimo ganha primazia, muitos dos seus discípulos e colegas evocam, e bem, o homem bom e íntegro, o lutador coerente e generoso, atento em permanência ao outro, animado de uma curiosidade ilimitada (reverso da sua simplicidade e natural modéstia). E falam então do homem doce e de olhar vivo, que ama as crianças, os gatos, o chá e as camélias. Do apaixonado pela música (Bach, Mozart, Corelli…) e pela pintura (Paul Klee…). E eis-nos aqui, no terreno da unanimidade. Tudo isto – e não seria pouco – bastaria para dar sentido a uma vida. E ninguém ousará negar a excecionalidade deste complexo de humanas qualidades. Em que, no entanto, os dons e o talento intrínsecos se viram não só modelados por um contexto familiar e local (recorde-se a pobre gente de Leça da Palmeira, onde Óscar Lopes nasceu, e que tantas vezes evoca em entrevistas), mas também afeiçoados por uma educação e um percurso de socialização, em convivência e aprendizagem com os outros. Importa por isso que aquele discurso dos afetos não sirva – como tantas vezes sucede – para deixar na sombra outras realidades: a do homem que assim é e assim se fez porque, neste ponto, a sua personalidade é comparável à própria literatura enquanto criação humana. E, «na literatura, como em geral na cultura, pode sempre distinguir-se uma ideologia, quer dizer, um conjunto de intenções historicamente determinadas, uma visão geral e discutível da realidade e das aspirações humanas» (faço questão de citar palavras da primeira edição que conheci da História da Literatura Portuguesa, 6.ª ed., Porto Editora, s.d., p. 9). Ora, a condição de comunista que Óscar Lopes afirmou desde jovem, com a naturalidade, simplicidade e coragem que lhe são próprias, constitui o fundamento de uma ética, de uma certa maneira de estar na crítica e na investigação, como na vida e na acção política. Porque o seu tempo – não o esqueçamos – é ainda o tempo de Bento de Jesus Caraça, Abel Salazar, Mário Sacramento, Maria Lamas, Ruy Luís Gomes, Armando de Castro ou Fernando Lopes-Graça. Figuras inesquecíveis do século XX português, que nunca dissociaram a cultura científica da cultura humanística e artística. Nem a investigação e a intervenção cultural do exercício de uma cidadania corajosa ao lado do povo com o qual quiseram e souberam aprender. Também por isso, Óscar Lopes é um exemplo para os dias por vir, porque sempre se situou nos antípodas de um modo individualista e egocêntrico, imodesto e oportunista de estar na vida e na academia, na crítica, na cultura. Modo este que não poucos dos seus discípulos e confrades das letras lamentavelmente preferiram adoptar.
José António Gomes
NELA – Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto