Numa entrevista datada de 1993, Manuel António Pina declarou que os seus textos mais autênticos eram escritos «com sangue que é composto de ideias, sentimentos, afectos, desejos, anseios, memórias. E essas memórias estão repletas de leituras.» (Pina, 1993: 13).
Na realidade, em Os Livros (Lisboa: Assírio & Alvim, 2003), não é difícil encontrar tudo isto, tudo o que parece estar na origem da produção literária de Manuel António Pina e que, em larga medida, coincide, na obra em apreço, com as multímodas faces da memória.
Logo no poema inaugural, «O Livro», surge anunciada uma das linhas isotópicas mais recorrentes e unificadoras dos vinte e dois poemas guardados na colectânea: a procura incansável, ininterrupta e, por vezes, vã dos sentidos do livro, da literatura e da leitura ou, de um modo geral, do conhecimento de si próprio e dos outros.
Em Os Livros, descobrem-se e escondem-se simultaneamente alguns dos ecos que, com naturalidade, pontuam a escrita do autor da envolvente novela Os Papéis de K. (Lisboa: Assírio & Alvim, 2003), fazendo-se deste livro, no qual se encontram pedaços seleccionados de outros livros, um repositório exemplar desse amor pela literatura, uma afectividade deixada inevitavelmente escapar tanto na escrita para adultos como na que se destina aos leitores mais jovens. Daí que, nestes poemas, as obras dos outros, os versos ou as palavras dos outros (como as de Baudelaire, Coleridge ou Dante Gabriel Rossetti) se (entre)cruzem, a cada passo, com a voz póetica de Manuel António Pina, num discurso pleno de leituras plurais do passado (da infância, por exemplo) e do presente (das vivências solitárias ou das figuras do quotidiano, por exemplo).
Mas se, neste livro, se fala muito das palavras e da sua escrita, questionando-se até o papel e o valor destas (como em «Separação do Corpo»), não menos se debate o eu poético numa espécie de ininterrupta tarefa de se procurar ou de se questionar, porque esta é, também, uma escrita da qual não se encontra ausente uma pronunciada vertente dubitativa (note-se que as palavras de encerramento de muitos destes textos são de tipo interrogativo). Aliás, a poesia de Manuel António Pina, esta poesia, em particular, representa um documento humano, composto por um conjunto de reflexões das quais emergem, não raras vezes, várias interpelações directas a um tu – leitor ou não –, diversas “discórdias” frequentemente paradoxais e alguns inquietos desdobramentos psíquicos.
Os Livros é livro breve, feito de uma poesia densa e forte, um livro que emite o som de muitas palavras e que abre generosamente o «caminho das interpretações e dos sentidos» (Pina, 2003: 19), um caminho a apelar a um regresso. «Aonde regressamos então?» (idem, ibidem: 24).
Referência bibliográfica
PINA, Manuel António (1993): «A poesia como forma de vida» (entrevista conduzida por Sandra Sousa) in Jornal de Letras, 02/03/04, pp. 13-14.
Sara Reis da Silva
(Universidade do Minho e membro associado do NELA - Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)