sexta-feira, 1 de maio de 2020

Efémero mas incandescente – a poesia breve de Flor Campino



Pintora conhecida, autora de várias obras narrativas destinadas à infância (algumas por si ilustradas), Flor Campino (n. Tomar, 1934) é também poeta, como atestam os seus livros A Aresta das Folhas (2000), O Crivo dos Dedos(2006), Pérolas de Vidro / Perles de Verre (2008), O Lume dos Dias (2011) e, agora, Elogio do Efémero: Incandescências / Éloge de l’Ephemère: Incandescences (2017) 1, introduzido por um «Pequeno exercício de apresentação e louvor», da autoria do poeta e ensaísta Diogo Alcoforado, que é, ele próprio, um desafiador texto pontilhista, de natureza poética.

Alguns destes livros possuem um traço comum: a brevidade textual; e dois deles partilham a condição de livros bilingues. Em Português e em Francês nos são apresentados Pérolas de Vidro e Elogio do Efémero, revelando a afeição de Flor Campino à língua francesa, a que não são alheias a sua longa permanência em França, e uma natural e forte ligação à cultura e à poesia deste país. Creio eu que, além do interesse em disponibilizar estes textos a leitores de ambos os idiomas, existe, sobretudo, o desejo de compartir o efectivo manejo poético de uma língua que, tendo raízes no latim, como a nossa, a ouvidos portugueses soa em geral como uma língua de grande beleza e expressividade rítmico-musical. Estamos a falar da língua de Claudel, Éluard, Guillevic – para apenas referirmos poetas que também fizeram incursões nas formas breves – e de outras grandes vozes. E, naturalmente, estamos a falar de uma cultura que, durante séculos, exerceu enorme influência na produção cultural portuguesa. 

Mas centremo-nos neste livro e escutemos o que, na Nota introdutória, a própria autora tem a dizer sobre o assunto. Começando por declarar que por vezes os poemas lhe surgem, na sua primeira forma, em Português e, outras vezes, em Francês, acrescenta: «em qualquer dos casos tenho curiosidade de ver o que se passa no segundo caso, motivada pela plasticidade e musicalidade próprias de cada língua. Agrada-me o diálogo entre elas e o que cada uma pode trazer por vezes de inesperado, longe da tradução linear.» (p. 5)

Eu diria que este diálogo, no livro de Flor Campino, resulta sempre numa interacção sugestiva (também eu sinto o apelo musical da língua de Racine), estimulando, aqui e acolá, uma leitura em voz alta. Por outro lado, as variações semânticas e fónico-rítmicas entre texto em português e texto em francês constituem um segundo desafio de leitura a que a obra permanentemente convida. Um pequeno exemplo que, na versão francesa, cria uma saborosa ambiguidade permitida pela palavra air, a qual, na sua polissemia, tanto pode significar ar como melodia:

Fonte de sonho:
a luz da manhã
e um fio de música
brincam na cortina.

Source de rêve:
la lumière du matin
et un air très lointain
jouent dans le rideau. (p. 67)
  
Elogio do Efémero é composto por 157 poemas muito breves, sem títulos, sendo primeiramente apresentada, em cada página, a versão portuguesa e depois, em itálico, a francesa (esta última foi revista pelo poeta e tradutor Max de Carvalho). Segue-se, desta maneira, um preceito desejável neste tipo de livros: um poema por página com muito espaço branco à volta, o que em si possui um valor intrínseco. Ou seja, o texto vê-se sublinhado na sua inteireza lapidar, pode ser de imediato relido ou lido terceira e quarta vez, sendo o espaço em branco como que um convite a essa releitura e à reflexão por parte do leitor. Finalmente, insuladas, as palavras dir-se-ia ganharem uma vibração material e de sentidos favorecida pela grande superfície branca e vazia – o que de certa maneira representa visualmente um espaço prestes a ser preenchido por essa subjectividade interpretativa do leitor, muito concentrada, que é própria da leitura de poesia e da construção da significação poética a que esse leitor procede. 

Este tipo de disposição gráfica é comum nos livros de haiku mais bem editados. E é evidente que algo na escrita de Flor Campino é devedor da poética do haiku. Tal não significa, porém, que possamos chamar haikus à maioria dos poemas – nem a poeta o deseja –, isto se nos ativermos às regras mais tradicionais e antigas de composição desta forma breve, que Flor Campino, aliás, afirma não lhe interessarem: as dezassete sílabas métricas; a presença da palavra-estação ou kigo; a sujeição ao princípio de o poema, na sua referencialidade, remeter para uma particular estação do ano.

Mas permito-me recordar ainda outros traços do haiku, pois, apesar de tudo, alguns deles (apenas alguns) encontramo-los na poesia de Flor Campino.

«Essencialmente descritivo», afirma Anthero Monteiro (2002), «o haiku alude a coisas concretas com existência física, reporta-se a um presente geralmente vinculado ao kigo, ou seja à estação do ano, e é expressão do efémero e da transitoriedade de um mundo em permanente mudança. Baseando-se nas sensações físicas, que podem eventualmente fazer disparar o sentimento ou a recordação, sem que seja quase nunca possível o processo inverso, o haiku é uma espécie de instantâneo fotográfico».

Para muitos, a essência do haiku é o «corte» (kiru). Isto é geralmente representado pela justaposição de duas imagens ou ideias e um kireji («palavra que corta») entre elas. Esta marca sinaliza o momento da separação e destaca o modo como os elementos justapostos são relacionados. Possui outros traços: o último verso, por exemplo, tende a ser uma síntese/conclusão e a funcionar como uma revelação.

Expressão de uma atitude contemplativa/reflexiva, o haiku, no Japão, foi influenciado pelo budismo zen e está ligado, muitas vezes, à errância do sujeito pelo mundo, em profunda irmanação com a natureza. Recordo de passagem que Matsuo Bashô (1644-1694), reconhecido como influente poeta, foi um dos mestres do género. Outros foram Taigui (1709-1771), Buson (1716-1783), Enomoto Seifu (mulher – 1732-1815), Ryokan (1758-1831), Issa (1763-1827), Shiki (1869-1902) e Kioshi (1874-1959).

Além de evidenciar o gosto japonês pela caligrafia e pela miniatura, o haiku não tem rima; avesso à metáfora e a excessos retóricos, faz uso do jogo de palavras e da onomatopeia e não recusa o humor.

Nos dias de hoje, o leque temático deste género poético é quase infinito, não apenas no Japão mas também no ocidente, onde foi descoberto entre meados e finais do século XIX.

Ora, ao ler-se Elogio do Efémero, observa-se que constituem traços comuns ao haiku e aos poemas, aliás belíssimos, de Flor Campino, a contenção e a predominância de poemas de três versos (embora existam também dísticos e composições de quatro e cinco versos) e, por outro lado, a atenção extremamente sensível, ao mundo natural (flores, árvores, animais…), a atitude contemplativa (mas igualmente reflexiva) e a arte de captação do instante – do efémero (como refere o título), daquilo que, sendo passageiro, é no entanto essencial reter, porque, na perspectiva do eu, arde.

Deve-se, aliás, acrescentar que, nesta ou naquela composição de Flor Campino, o haiku, no plano formal (dezassete sílabas métricas), é respeitado, mas noutros aspectos – o imagístico, por exemplo – é subvertido. Vejamos um caso:

Com o ouro furtado
a abelha filigrana
a charneca em flor. (p. 16)

Efémero é o que dura pouco. É esse momento da realidade, esse diamante de tempo na sua peculiar vibração, o que o poema tenta capturar e fixar. E por se tratar de pequenas fulgurações, é compreensível que o subtítulo fale em incandescências

Embora breves, do ponto de vista temático, os poemas de Flor Campino são diversos, e permitem ao leitor uma viagem intensa por dentro de uma subjectividade mais que susceptível de o interessar e seduzir. A conferir-lhes unidade, além dos aspectos formais e de um registo poético pessoalíssimo, está uma certa implicação que me permitiria chamar autobiográfica. Ela é sugerida (os textos de Flor Campino sugerem mais do que dizem) no poema da p. 23, e confirma-se nos que se lhe seguem e que se reportam a flores:

Que o corpo
– êxtase e ascese em harmonia –
me guarde inteiro o nome vegetal. (p. 23)

De que fala este sujeito de «nome vegetal» devotado à escuta do mundo? Do espaço íntimo que o rodeia (a casa, a criança, os objectos, as imagens que observa – podem ser as de um pintor, como Klee…), do mundo exterior mais ou menos próximo, que escuta e contempla, que o extasia (ar e céu, jardins, espaços naturais, povoados de plantas, aves, insectos, gatos…). Depois, um tópico, capital nesta poesia: a relação do eu com um tu – a questão do amor, da dor da separação, da falta, da procura, da perda. Uma dimensão que, não raro, se articula com outro eixo essencial do livro: tempo e memória.

O que acabo de apontar não faz, porém, desta escrita, um discurso poético sombrio. Talvez seja até, sobretudo, um discurso serenamente extasiado, ainda que aqui e acolá, dolorido. É que há dias «brunidos de alegria». Mas é, seguramente, um discurso preparado para a sombra: 

Andar os caminhos
sabendo que os dias
brunidos de alegria
nos ocultam o cortejo de sombra. (p. 74)

Vejamos uma dessas sombras que, na sua formulação, respeita quase a regra métrica do haiku:

No avesso sedoso 
do teu casaco, minhas mãos
afagam tua pele. (p. 72)

Outra linha deste mapa poético é a aforística, discretamente gnómica ou sentenciosa, muito própria de algumas formas breves, por vezes articulada com a auto-analítica (ex. p. 99). São traços em que estes micropoemas, aliás, se distanciam efetivamente da poética tradicional do haiku. Eis três exemplos:

Os muros que levantarmos
irão connosco
aonde quer que vamos. (p. 33)

Insuflemos
à simetria do previsível
a graça de uma brisa. (p. 35)

A solidão? Há quem a vista
tão bem cosida à pele
que nem a si mesmo se enxergue. (p. 135)

Apenas dei a conhecer meia dúzia da mais de centena e meia de curtíssimas composições deste poemário de Flor Campino, sensível e poliédrico, mas uno, que me fez companhia durante uns poucos dias, proporcionando-me momentos de fruição poética. Lamentei ter de terminar a leitura inaugural, pois desejava prolongá-la, conviver com esta escrita enraizada no vivido, contida e rigorosa, espécie de breviário da terra, de especiosa delicadeza espiritual, impressivo visualismo e bom gosto – ou não estivéssemos ante a escrita poética de uma pintora e ilustradora.

Nota

1 Flor Campino. Elogio do Efémero: Incandescências / Éloge de l’Ephemère: Incandescences. Porto, Afrontamento: 2017. Todas as citações de textos do livro são retiradas desta edição, indicando-se as respectivas páginas entre parênteses.


Referência bibliográfica

MONTEIRO, Anthero (2002). «À Noite as Estrelas Descem do Céu: João Pedro Mésseder abre à juventude mais uma porta para a poesia», suplemento «Das Artes das Letras», O Primeiro de Janeiro, 30/12.


José António Gomes



IEL-C (Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais da ESE do Porto)