Abordar,
como faz Alice Rios (Rios, 2008 e 2009), a presença marcante de certas famílias
na vida do Porto implica, naturalmente, falar da família dos escritores Joaquim
Soeiro Pereira Gomes e Alice Gomes. Entre muitas e muitas outras, claro está,
incluindo as mais anónimas e desfavorecidas da fortuna, que são quase sempre a
verdadeira força motriz da História, tão responsáveis afinal, como algumas das
famílias ditas mais ilustres, por aquilo a que alguns chamam a identidade
portuense.
Uma
família, a dos Soeiro Pereira Gomes, que não é, todavia, natural do Porto,
embora seja oriunda do distrito e, efectivamente, tenha vivido e trabalhado na
cidade. Frutos da união de Alexandre Pereira Gomes – personalidade íntegra,
generosa e amiga da cultura, filho de um lavrador relativamente abastado de
Baião e «primeiro homem do concelho a inscrever-se no partido republicano»
(Rios, 2009: 158) – e de Celestina Soeiro Gomes – originária de uma família da burguesia
rural e educada de Tabuaço –, os Soeiro Pereira Gomes instalar-se-ão no Porto,
em 1924, mais concretamente no n.º 745 da rua Oliveira Monteiro, no Carvalhido.
A razão desta deslocação prende-se com a necessidade, sentida por Alexandre e
Celestina, de estarem próximos dos filhos e os acompanharem durante os seus
estudos (não existiam escolas capazes na região de onde provinham) e,
provavelmente, com a vontade, por parte de Alexandre, de abandonar a gestão das
suas propriedades agrícolas e das dos seus familiares, enveredando por outros
rumos para garantir a subsistência de uma prole numerosa.
O
certo é que Alexandre não tinha talento para os negócios e as empresas que
criou acabaram por falhar, o que acarretou também a gradual alienação das suas
propriedades rurais no Douro. Empregou-se então, como responsável da cantina,
na fábrica de tecidos Areosa – propriedade do pai de uma aluna particular da
filha mais velha, Alice Pereira Gomes que, já antes de 1924, viera para o
Porto.
Os
filhos de Alexandre e Celestina eram seis: o primeiro, Joaquim Soeiro Pereira
Gomes, nasceu em 1909, em Gestaçô, Baião, e morreu em Lisboa, em 1949;
seguir-se-iam, por ordem decrescente de idades, Alice Pereira Gomes, nascida em
1910, em Granjinha (Tabuaço), e falecida em 1983; Berenice Pereira Gomes
(1913-2004), que viria a ser uma ilustre professora do ensino primário durante
quarenta anos, os vinte e dois últimos na escola de Santa Eulália, em Fânzeres,
Gondomar (Rios, 209: 160), onde o seu nome foi dado a uma rua. Os irmãos mais
novos eram Alexandre Herculano Pereira Gomes que, concluído o curso comercial,
emigrou para o Congo Belga, onde foi bem sucedido, mas perdeu parte do que
granjeara, após a descolonização do território, acabando por morrer um ano após
o regresso a Portugal, com quarenta e cinco anos; Jaime Pereira Gomes,
militante comunista, como Joaquim, que começou por ser docente na Faculdade de
Engenharia da Universidade do Porto e exerceu posteriormente funções dirigentes
no Ministério das Obras Públicas; e Alfredo Pereira Gomes que se doutoraria em
Matemática na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, de onde, segundo
Alice Rios (2009: 160-161), seria «afastado por motivos políticos» por volta de
1947 – era assistente de Ruy Luís Gomes – tendo-se exilado voluntariamente em
França (onde foi elemento de ligação entre o Partido Comunista Português (PCP)
e o Partido Comunista Francês, nos anos 40 (v. Pereira, 2001: 784-785)), depois
no Brasil e, a partir de 1964, na Argentina, países onde exerceu a docência universitária.
Tendo regressado a Portugal em 1971, ingressou na Faculdade de Ciências da
Universidade de Lisboa, jubilando-se em 1989 e vindo a dirigir depois o
Departamento de Matemática da Universidade Lusíada. Ilustre matemático,
participou na reactivação da Sociedade Portuguesa de Matemática e faleceu em
2006 (v. http://www.spm.pt/alfredo_pereira_gomes/.)
O
conhecimento das biografias de Soeiro Pereira Gomes e de Alice Gomes, os
diversos testemunhos que alguns dos irmãos nos deixaram permitem-nos traçar o
perfil de uma família feliz, unida por laços de funda afectividade, que viveu,
de forma muito dolorosa e por muitos anos, a tragédia da morte precoce do filho
mais velho de Alexandre e Celestina Pereira Gomes. Uma família, acrescente-se,
que se sentiu sempre dividida entre, por um lado, a belíssima paisagem rural
duriense de onde provinham todos – espécie de locus amoenus de uma infância feliz, lugar a que os filhos,
sempre que a vida lhes permitiu, regressaram para recuperar uma energia
primordial, até porque as irmãs do pai Alexandre aí se mantiveram – e, por
outro lado, os centros urbanos onde viriam a fixar-se, e que, essencialmente,
foram o Porto e a região de Lisboa, em especial Alhandra, no caso de Joaquim
Soeiro Pereira Gomes.
Após
os estudos primários e o início dos secundários feitos em Espinho, para onde
foi viver, sob a alçada fria e autoritária de uma tia, estudos esses nem sempre
bem sucedidos, e depois de concluído, em Maio de 1928, o curso de regente
agrícola em Coimbra, Joaquim partiu para Angola em finais de 1930, onde
permaneceu alguns meses, em trabalhos duros e sob um clima inclemente. Bastante doente e frágil, regressa a Portugal logo no
ano seguinte e fixa-se em Alhandra após o casamento com Manuela Câncio, irmã de
um colega e amigo de curso em Coimbra. Manuela era uma jovem de assinalável
beleza, com algum sucesso nos meios radiofónicos e teatrais lisboetas, devido à
sua condição de música e compositora – o marido, aliás, com ela colaborou,
escrevendo versos para canções, argumentos, etc.. Joaquim emprega-se então nos
escritórios da Fábrica de Cimentos Tejo, com o apoio do sogro, homem possuidor
de bens e benquisto em Alhandra, ele próprio com funções de chefia na empresa.
Além
da presença no Porto durante a adolescência e no decurso dos estudos em Coimbra
– muitas vezes a caminho do Douro, em tempo de férias –, Joaquim terá passado
pela casa da Rua Oliveira Monteiro na época que se seguiu ao seu retorno de
África e dado lições particulares, a fim de não sobrecarregar o orçamento
familiar, enquanto procurava emprego compatível com as suas habilitações,
objectivo que nunca se concretizou. No período que antecedeu o casamento com
Manuela Câncio, celebrado em Coimbra, onde se haviam conhecido na festa de
formatura de Joaquim, este desfrutará no Douro, em casa das tias, de algum
tempo de recuperação das sérias mazelas africanas (designadamente o paludismo)
que por pouco lhe não arruinaram a saúde.
Os
anos que se seguiram são bastante conhecidos, apesar de existirem zonas
obscuras em diversos relatos da vida de Joaquim, e encontram-se narrados em
textos biográficos ou evocativos pela viúva, Manuela Câncio Reis (2007), por
Giovanni Ricciardi (1999), pelos camaradas de Partido de Joaquim e por
historiadores.
Uma
vez em Alhandra, vila industrial da região de Lisboa, Joaquim Soeiro Pereira
Gomes terá aderido ao PCP em 1936 ou por volta dos anos de 1938-401, após ter mergulhado num ambiente politico-cultural
onde pontificavam figuras como o dirigente comunista Dias Lourenço e o escritor
Alves Redol, ambos ligados ao que ficaria conhecido como o grupo neo-realista
de Vila Franca de Xira (além dos já mencionados, Arquimedes da Silva Santos,
Júlio Graça, Carlos Pato e outros). Mas as motivações políticas já vinham de
trás e decorriam do envolvimento de Joaquim com a comunidade operária e as
crianças e jovens dos meios populares de Alhandra, onde vivia e trabalhava, e
onde se tornou activo e admirável dinamizador cultural e desportivo. São
conhecidos os numerosos saraus culturais, conferências e eventos desportivos
que aí organizou e que culminaram na célebre construção de uma piscina
(projecto que durou sete anos e resultou da ligação de Soeiro Pereira Gomes à
direcção do Alhandra Sporting Club), piscina essa destinada à prática da
natação pelas crianças pobres de Alhandra e que viria a transformar-se em berço
de desportistas e até de campeões.
Toda
esta actividade lhe granjeou o respeito e a amizade da população da vila. Como
escreve o seu biógrafo italiano, Giovanni Ricciardi (1999: 124), a «educação»
alhandrense de Soeiro, que haveria de o levar quer à militância política quer a
escrever o que escreveu, «começa desde a sua chegada em 1931, e passa através
do contacto quotidiano com operários e camponeses, com as condições de pobreza
e miséria grandes que havia na vila. Com a exploração bestial das crianças dos
telhais2, com a rígida divisão em classes da
sociedade. Daqui o progressivo envolvimento nas actividades de cidadania, no
trabalho desinteressado e solidário com os alhandrenses, até à opção final de
se dedicar com mais afinco, e profissionalmente (…) à construção daquele mundo
e daquele país, novos e melhores, que ele sonhava e antevia e para cuja
realização estava disposto a abandonar até a literatura e a “utilizar a mão, as
mãos”».
Seria
justamente a vida dessas crianças dos telhais e de outras ainda que lhe
inspirou o famoso romance Esteiros (Lisboa: Sirius, 1941, com capa
de Álvaro Cunhal), além de contos como «O Pastiùre», textos nucleares do
neo-realismo literário português, o primeiro, aliás, uma pequena obra-prima e
um dos mais relevantes romances portugueses editados na década de quarenta, em
primeiro lugar pela qualidade da sua linguagem, da sua narração imbuída de lírica
poeticidade, da arquitectura romanesca e da densa humanidade das suas
personagens (Gineto, Sagui, Gaitinhas, Maquineta, Malesso…), e, em segundo
lugar, pela originalidade temática e pela dimensão ideológica do texto à época
em que foi escrito: tratava-se de recriar literariamente a realidade de miséria
social e económica e de exploração do trabalho infantil, de que eram vítimas,
na década de trinta do século XX e em plena ditadura salazarista, as populações
da zona ribeirinha do Tejo, junto a Alhandra, e em especial, os «filhos dos homens que nunca foram meninos», como se pode ler na dedicatória.
No entanto, Soeiro Pereira Gomes não é apenas um expoente do neo-realismo, mas
um precursor que, antes ainda da publicação de Gaibéus, de Alves Redol, em 1939, se encontrava já imbuído do
que viria a ser o espírito desta corrente literária, como se pode observar
lendo, por exemplo, o conto «O capataz», publicado em 1935 (v. Ricciardi, 1999:
51-58).
A
simpatia irradiante de Soeiro, as suas qualidades humanas e intelectuais, o
espírito solidário e o seu talento de organizador e dinamizador de grupos
levá-lo-iam a tornar-se também, como foi dito, destacado militante e, mais
tarde, dirigente do PCP (tendo inspirado aspectos de diferentes personagens do
romance Até Amanhã, Camaradas, de Manuel Tiago / Álvaro Cunhal),
na sequência da sua intervenção activa na organização das greves e lutas
sociais, operárias e camponesas, que abalaram o salazarismo na região de Lisboa
e do Ribatejo, na primeira metade da década de quarenta.
Foi
esta opção de classe que, após o referido período de luta, o obrigou ao
mergulho na clandestinidade, em que seria compelido a manter-se até à morte, em
1949, desempenhando tarefas político-partidárias da maior importância e
sacrificando a escrita literária que, contudo, não abandonaria, mesmo depois de
lhe ter sido diagnosticada uma doença de pulmões, na sequência de uma queda de
bicicleta ocorrida durante uma das suas deslocações enquanto militante
clandestino.
Perseguido
ferozmente pela PIDE, Soeiro Pereira Gomes nunca conseguirá, por isso, obter o
devido tratamento médico, não obstante as démarches do seu partido, e em particular de Álvaro Cunhal
– que sentia genuína amizade e admiração pelo seu camarada –, tanto em Portugal
(chegou a estar internado no Instituto de Oncologia clandestinamente) como no
estrangeiro.
A
sua derradeira passagem pelo Porto dar-se-á no ano da morte, quando se refugia,
por algum tempo, em casa de Rui e Nina Perdigão, na rua Arquitecto Marques da
Silva, uma família da burguesia portuense, ligada à indústria têxtil, que
apoiava financeiramente o PCP e cuja habitação era, no Norte, um dos principais
pontos de apoio para os militantes do Partido na clandestinidade (por ela
passaram Pires Jorge, Cândida Ventura e muitos outros).
É
durante esse período que Soeiro Pereira Gomes, já em fase terminal de um cancro
no pulmão, ultima os seus Contos
Vermelhos –
extraordinário testemunho, em forma de ficção, da vida de luta e sofrimento dos
militantes comunistas na clandestinidade –, os quais viriam a ser publicados
postumamente e a circular, também clandestinamente, pelas mãos de muitos
antifascistas.
Segundo
a versão corrente e de um dos seus biógrafos, Ricciardi3, nos últimos dias de vida, Soeiro é transportado para
casa da irmã, Alice Gomes, e do cunhado, o escritor Adolfo Casais Monteiro, em
Lisboa. Aí faleceu, na companhia da mulher, que não pudera acompanhá-lo na
clandestinidade, mas fora presa por algum tempo, após a fuga de Soeiro.
Escoltado pela polícia e pela PIDE, o seu funeral – encontra-se sepultado em
Espinho – transformou-se, à passagem por Alhandra, e por pressão do povo, em
comovente manifestação de homenagem e luta antifascista. Ainda hoje, a população
de Alhandra conserva no coração a memória do homem encantador, generoso,
solidário e do artista singular que foi o autor de Engrenagem, o seu segundo romance, que quedaria inacabado.
No
quarto volume do Dicionário
Cronológico de Autores Portugueses (Rocha, 1997: 386), é possível ler, a propósito
deste livro: «Ao espírito de rebeldia inscrito à
flor de Esteiros sucede a génese de uma
manifesta consciência de classe no romance de que ultimava a revisão quando a
morte o surpreendeu prematuramente: Engrenagem. Este livro – que se destinaria ((…) segundo Costa
Dias, fundamentado na correspondência trocada entre o escritor e Fernando
Namora e Joaquim Namorado) a integrar a colecção coimbrã de “Novos Prosadores”
– foi publicado em 1951 por iniciativa dos dois irmãos do autor, Alice Gomes e
Jaime Pereira Gomes, e principalmente de Adolfo Casais Monteiro, seu cunhado.»
A
irmã mais velha de Soeiro Pereira Gomes, por seu lado, foi uma personalidade
cuja vida e obra tiveram inegável relevo na história da cultura e da educação
portuguesas da segunda metade do século XX, em especial nas esferas da criação
literária e da reflexão sobre literatura e arte para crianças.
Alice
Pereira Gomes fez os seus estudos no Porto, primeiro, como interna, no Colégio
de Nossa Senhora da Esperança, depois no Liceu de Carolina Michaëlis; mais
tarde, concluiu o curso do Magistério Primário, tendo completado, em Lisboa, um
curso em Ciências Pedagógicas.
Como
escreve Alice Rios (2009: 161), «começou cedo a interessar-se pelas Letras,
algo que a unia de forma especial ao irmão, Joaquim, com quem, ainda
adolescente, participou num concurso literário escolar. Foi ela a autora de uma
peça, em três actos, que as colegas representaram no Teatro de S. João,
assinalando o fim de curso, no Liceu Carolina Michaëlis».
Casada
com o poeta, romancista e ensaísta Adolfo Casais Monteiro – homem da Presença, opositor ao regime de Salazar, não comunista –,
seria, juntamente com o marido, demitida e presa pela PIDE. É ainda Alice Rios
(2009: 161) quem refere: «Adolfo leccionava no Liceu Rodrigues de Freitas e
Alice numa escola primária», tendo a demissão de ambos sido provocada pelo
facto de pertencerem ao Socorro Vermelho Internacional, movimento de apoio aos
republicanos espanhóis durante a Guerra Civil de Espanha. Além disso, Adolfo
Casais Monteiro ter-se-á recusado a assinar a declaração, exigida na altura, em
que o funcionário público era obrigado a afirmar não perfilhar ideias
comunistas4, o que terá
constituído o principal motivo do seu afastamento.
Casais
Monteiro exilou-se, mais tarde, no Brasil, onde continuou a desenvolver a sua
acção oposicionista, trabalhando também como professor universitário e
prosseguindo a construção da sua obra literária e ensaística.
Alice
Gomes devotou-se à educação, primeiramente no Porto, como professora do
Instituto Normal Primário, e, depois, na capital, onde exerceu funções docentes
no ensino infantil e primário. Mas foi sobretudo no Liceu francês Charles
Lepierre que encontrou o terreno propício para levar à prática as suas ideias
pedagógicas, tendo idealizado um método, destinado a crianças estrangeiras, com
vista a uma aprendizagem gratificante da língua portuguesa (Aprender Sorrindo (1970)).
A
visível paixão de Alice Gomes pela literatura, pela arte e pelo universo da
infância levou-a, juntamente com outras personalidades (Maria Lúcia Namorado,
Calvet de Magalhães, João Couto, Cecília Menano), a fundar, em 1957, a
Associação Portuguesa para a Educação pela Arte, da qual foi a primeira
presidente. O desenvolvimento do gosto pela leitura e da afeição pela
literatura e pela arte em geral, bem como a consciência do valor educativo da
poesia na formação da sensibilidade estética foram preocupações omnipresentes
no espírito de Alice Gomes.
A
noção da importância da educação literária na formação dos mais jovens
encontra-se na origem de duas das obras que publicou (O Autor e a Comunicação no Livro Infantil (1973) e A Literatura para a Infância (1979)), bem como dos muitos
artigos e crónicas que deixou dispersos na imprensa, nomeadamente no Jornal da Educação. Pois a autora – importa lembrá-lo – fez parte de um
núcleo de intelectuais que, na segunda metade do século XX, teve o mérito de
acordar as consciências para a necessidade de formar leitores desde cedo e de
colocar, no centro dessa formação, a criação artística e o livro. Lembrarei, de
passagem, alguns nomes deste núcleo, como Lília da Fonseca, Maria Lúcia
Namorado, Natércia Rocha e Leonoreta Leitão.
Espírito
inquieto e sensível, Alice Gomes desdobrou-se assim em palestras, colóquios e
outras intervenções públicas, centrados ora na necessidade da educação pela
arte, ora nas artes plásticas, no teatro e na literatura para os mais novos.
Organizou, além disso, exposições e livros (como Poesia da Infância, 1966) em que procurou dar a ver como a criança, se
imersa num contexto educativo enformado pelos princípios da educação pela arte,
é ela própria capaz de criar textos e objectos plásticos de intenção artística.
Conhecedora
da literatura para crianças portuguesa e estrangeira (não esqueçamos que foi a
primeira tradutora para português de O Principezinho de Saint-Exupéry, além de ter traduzido outros
livros), Alice Gomes leccionou também a disciplina de Literatura Infantil na
Escola de Formação de Educadores de Infância João de Deus e muito reflectiu e
escreveu sobre a matéria
Hoje,
porém, é sobretudo como voz singular da nossa literatura para a infância que
importa recordá-la. Em primeiro lugar, como poeta de mérito, no que à escrita
para crianças diz respeito. Publicou Bichinho Poeta (1970), um belo bestiário poético, de cuidada e
expressiva escrita, onde, por vezes, sob a máscara dos animais humanizados,
ressurgem a criança ou o homem que sentem e, por isso, sofrem ou, ao invés,
experimentam situações de júbilo. Editou ainda Barco no Rio (1977), Coração do Tempo (1984) e Na Idade dos Porquês (Lisboa: ITAU, [1972], cartaz de 42x52 cm, foto
de Eduardo Gageiro), poema-poster que a tornaria conhecida, ao apresentar uma
criança de nove anos dirigindo-se a um professor, numa espécie de doce libelo
infantil contra a directividade e em favor de uma relação afectiva entre
professor e aluno, que nos dá a ler um discurso de evidente impacto em termos
educativos:
Tanto porquê que eu queria saber!
E tu não me queres responder!
Tu falas professor
daquilo que te interessa.
Tu obrigas-me a ouvir
quando eu quero falar.
Obrigas-me a dizer
quando eu quero escutar.
Se eu vou a descobrir
fazes-me decorar.
É a luta professor
a luta em
vez de amor.
Mas
a obra literária para crianças de Alice Gomes é vasta – os seus títulos
repartem-se pela poesia, pelo conto, pela novela e pela literatura dramática.
Salientem-se apenas alguns títulos como Teatro para Crianças: A Nau Catrineta. A Lenda das Amendoreiras.
A Outra História do Capuchinho Vermelho (1967; a primeira destas peças foi representada
no Teatro D. Maria II com música de Manuela Câncio Reis, que assinou sob
pseudónimo); Vidrinho
de Cheiro (1971); História de uma Menina: Romancinho (1971); Giroflé Giroflá (1972); Os Ratos e o Trovador (1973); As Histórias da Coca-Bichinhos (1974); e a novela Alexandre e os Lobos (1983).
Recorde-se
ainda, por um lado, que Alice Gomes publicou uma das mais belas e bem
organizadas antologias de poesia portuguesa susceptível de ser lida por
crianças: Poesia para a
Infância (1955),
reeditada, em 1974, com novas composições. Por outro lado, não enjeitou a
criação literária destinada a leitores adultos, de que é exemplo o seu livro de
ficção narrativa, Fogueira
de Lenha Verde (1979),
contos de implicação autobiográfica, centrados na condição feminina e escritos,
alguns muito tempo antes da edição em livro (vieram a lume na Eva, no Mundo Literário e noutras publicações
periódicas), numa época em que a reflexão sobre os direitos da mulher estava
longe de ter o acolhimento que hoje se conhece. Editou ainda Douro Encantado (1967), um sentido tributo à sua região natal.
Por
tudo isto, Alice Gomes é uma autora a ler, a reler, a reeditar. E é, por outra
parte, uma personalidade inquieta, rica e multifacetada que importa
redescobrir.
Notas
1 Segundo testemunho do sobrinho, José Pedro Gomes Santos Carvalho (filho de Berenice Pereira Gomes), colhido em 6-7-2010, Joaquim terá aderido ao PCP em 1936, informação cuja fonte é António Dias Lourenço, seu companheiro de luta nos anos trinta e quarenta.
2 Sobre o tema, leia-se o artigo de Elisabete França (1990: 40-44).
3 Confirmada pelo sobrinho, José Pedro Gomes Santos Carvalho, em testemunho referido na nota anterior. Confronte-se, a este propósito, as versões aparentemente contraditórias que podemos ler no mesmo autor (Pereira, 2001: 858-859; e Pereira, 2005: 43-44).
4 Testemunho de José Pedro Gomes Santos Carvalho, colhido em 6-7-2010.
Referências bibliográficas
FRANÇA, Elisabete (1990). «Memória de Esteiros do Tejo: um cenário com figuras», DN Magazine (revista do Diário de Notícias), n.º 217, 25/11, pp. 40-44.
PEREIRA, José Pacheco (2001). Álvaro Cunhal – Uma Biografia Política: «Duarte», o Dirigente Clandestino. Lisboa: Temas e Debates.
PEREIRA, José Pacheco (2005). Álvaro Cunhal – Uma Biografia Política: O Prisioneiro. Lisboa: Temas e Debates.
REIS, Manuela Câncio (2007). A Passagem: Uma Biografia de Soeiro Pereira Gomes. Lisboa: Caminho.
RICCIARDI, Giovanni (1999). Soeiro Pereira Gomes: Uma Biografia Literária. Lisboa: Caminho.
RIOS, Alice (2008). Famílias Tradicionais do Porto. Porto: Autor (vol. I).
RIOS, Alice (2009). Famílias Tradicionais do Porto. Porto: Autor (vol. II).
ROCHA, Ilídio (coord.) (1998). Dicionário Cronológico de Autores Portugueses. Mem Martins. Europa-América, vol. IV.
José António Gomes
IEL-C (Núcleo de Estudos Literários e Culturais da ESE do Porto)