terça-feira, 31 de março de 2015

Um pouco de história: Soeiro Pereira Gomes, uma família no Porto



















Abordar, como faz Alice Rios (Rios, 2008 e 2009), a presença marcante de certas famílias na vida do Porto implica, naturalmente, falar da família dos escritores Joaquim Soeiro Pereira Gomes e Alice Gomes. Entre muitas e muitas outras, claro está, incluindo as mais anónimas e desfavorecidas da fortuna, que são quase sempre a verdadeira força motriz da História, tão responsáveis afinal, como algumas das famílias ditas mais ilustres, por aquilo a que alguns chamam a identidade portuense.
Uma família, a dos Soeiro Pereira Gomes, que não é, todavia, natural do Porto, embora seja oriunda do distrito e, efectivamente, tenha vivido e trabalhado na cidade. Frutos da união de Alexandre Pereira Gomes – personalidade íntegra, generosa e amiga da cultura, filho de um lavrador relativamente abastado de Baião e «primeiro homem do concelho a inscrever-se no partido republicano» (Rios, 2009: 158) – e de Celestina Soeiro Gomes – originária de uma família da burguesia rural e educada de Tabuaço –, os Soeiro Pereira Gomes instalar-se-ão no Porto, em 1924, mais concretamente no n.º 745 da rua Oliveira Monteiro, no Carvalhido. A razão desta deslocação prende-se com a necessidade, sentida por Alexandre e Celestina, de estarem próximos dos filhos e os acompanharem durante os seus estudos (não existiam escolas capazes na região de onde provinham) e, provavelmente, com a vontade, por parte de Alexandre, de abandonar a gestão das suas propriedades agrícolas e das dos seus familiares, enveredando por outros rumos para garantir a subsistência de uma prole numerosa.
O certo é que Alexandre não tinha talento para os negócios e as empresas que criou acabaram por falhar, o que acarretou também a gradual alienação das suas propriedades rurais no Douro. Empregou-se então, como responsável da cantina, na fábrica de tecidos Areosa – propriedade do pai de uma aluna particular da filha mais velha, Alice Pereira Gomes que, já antes de 1924, viera para o Porto.
Os filhos de Alexandre e Celestina eram seis: o primeiro, Joaquim Soeiro Pereira Gomes, nasceu em 1909, em Gestaçô, Baião, e morreu em Lisboa, em 1949; seguir-se-iam, por ordem decrescente de idades, Alice Pereira Gomes, nascida em 1910, em Granjinha (Tabuaço), e falecida em 1983; Berenice Pereira Gomes (1913-2004), que viria a ser uma ilustre professora do ensino primário durante quarenta anos, os vinte e dois últimos na escola de Santa Eulália, em Fânzeres, Gondomar (Rios, 209: 160), onde o seu nome foi dado a uma rua. Os irmãos mais novos eram Alexandre Herculano Pereira Gomes que, concluído o curso comercial, emigrou para o Congo Belga, onde foi bem sucedido, mas perdeu parte do que granjeara, após a descolonização do território, acabando por morrer um ano após o regresso a Portugal, com quarenta e cinco anos; Jaime Pereira Gomes, militante comunista, como Joaquim, que começou por ser docente na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto e exerceu posteriormente funções dirigentes no Ministério das Obras Públicas; e Alfredo Pereira Gomes que se doutoraria em Matemática na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, de onde, segundo Alice Rios (2009: 160-161), seria «afastado por motivos políticos» por volta de 1947 – era assistente de Ruy Luís Gomes – tendo-se exilado voluntariamente em França (onde foi elemento de ligação entre o Partido Comunista Português (PCP) e o Partido Comunista Francês, nos anos 40 (v. Pereira, 2001: 784-785)), depois no Brasil e, a partir de 1964, na Argentina, países onde exerceu a docência universitária. Tendo regressado a Portugal em 1971, ingressou na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, jubilando-se em 1989 e vindo a dirigir depois o Departamento de Matemática da Universidade Lusíada. Ilustre matemático, participou na reactivação da Sociedade Portuguesa de Matemática e faleceu em 2006 (v. http://www.spm.pt/alfredo_pereira_gomes/.)
O conhecimento das biografias de Soeiro Pereira Gomes e de Alice Gomes, os diversos testemunhos que alguns dos irmãos nos deixaram permitem-nos traçar o perfil de uma família feliz, unida por laços de funda afectividade, que viveu, de forma muito dolorosa e por muitos anos, a tragédia da morte precoce do filho mais velho de Alexandre e Celestina Pereira Gomes. Uma família, acrescente-se, que se sentiu sempre dividida entre, por um lado, a belíssima paisagem rural duriense de onde provinham todos – espécie de locus amoenus de uma infância feliz, lugar a que os filhos, sempre que a vida lhes permitiu, regressaram para recuperar uma energia primordial, até porque as irmãs do pai Alexandre aí se mantiveram – e, por outro lado, os centros urbanos onde viriam a fixar-se, e que, essencialmente, foram o Porto e a região de Lisboa, em especial Alhandra, no caso de Joaquim Soeiro Pereira Gomes.
Após os estudos primários e o início dos secundários feitos em Espinho, para onde foi viver, sob a alçada fria e autoritária de uma tia, estudos esses nem sempre bem sucedidos, e depois de concluído, em Maio de 1928, o curso de regente agrícola em Coimbra, Joaquim partiu para Angola em finais de 1930, onde permaneceu alguns meses, em trabalhos duros e sob um clima inclemente. Bastante doente e frágil, regressa a Portugal logo no ano seguinte e fixa-se em Alhandra após o casamento com Manuela Câncio, irmã de um colega e amigo de curso em Coimbra. Manuela era uma jovem de assinalável beleza, com algum sucesso nos meios radiofónicos e teatrais lisboetas, devido à sua condição de música e compositora – o marido, aliás, com ela colaborou, escrevendo versos para canções, argumentos, etc.. Joaquim emprega-se então nos escritórios da Fábrica de Cimentos Tejo, com o apoio do sogro, homem possuidor de bens e benquisto em Alhandra, ele próprio com funções de chefia na empresa.

Além da presença no Porto durante a adolescência e no decurso dos estudos em Coimbra – muitas vezes a caminho do Douro, em tempo de férias –, Joaquim terá passado pela casa da Rua Oliveira Monteiro na época que se seguiu ao seu retorno de África e dado lições particulares, a fim de não sobrecarregar o orçamento familiar, enquanto procurava emprego compatível com as suas habilitações, objectivo que nunca se concretizou. No período que antecedeu o casamento com Manuela Câncio, celebrado em Coimbra, onde se haviam conhecido na festa de formatura de Joaquim, este desfrutará no Douro, em casa das tias, de algum tempo de recuperação das sérias mazelas africanas (designadamente o paludismo) que por pouco lhe não arruinaram a saúde.
Os anos que se seguiram são bastante conhecidos, apesar de existirem zonas obscuras em diversos relatos da vida de Joaquim, e encontram-se narrados em textos biográficos ou evocativos pela viúva, Manuela Câncio Reis (2007), por Giovanni Ricciardi (1999), pelos camaradas de Partido de Joaquim e por historiadores. 
Uma vez em Alhandra, vila industrial da região de Lisboa, Joaquim Soeiro Pereira Gomes terá aderido ao PCP em 1936 ou por volta dos anos de 1938-401, após ter mergulhado num ambiente politico-cultural onde pontificavam figuras como o dirigente comunista Dias Lourenço e o escritor Alves Redol, ambos ligados ao que ficaria conhecido como o grupo neo-realista de Vila Franca de Xira (além dos já mencionados, Arquimedes da Silva Santos, Júlio Graça, Carlos Pato e outros). Mas as motivações políticas já vinham de trás e decorriam do envolvimento de Joaquim com a comunidade operária e as crianças e jovens dos meios populares de Alhandra, onde vivia e trabalhava, e onde se tornou activo e admirável dinamizador cultural e desportivo. São conhecidos os numerosos saraus culturais, conferências e eventos desportivos que aí organizou e que culminaram na célebre construção de uma piscina (projecto que durou sete anos e resultou da ligação de Soeiro Pereira Gomes à direcção do Alhandra Sporting Club), piscina essa destinada à prática da natação pelas crianças pobres de Alhandra e que viria a transformar-se em berço de desportistas e até de campeões.
Toda esta actividade lhe granjeou o respeito e a amizade da população da vila. Como escreve o seu biógrafo italiano, Giovanni Ricciardi (1999: 124), a «educação» alhandrense de Soeiro, que haveria de o levar quer à militância política quer a escrever o que escreveu, «começa desde a sua chegada em 1931, e passa através do contacto quotidiano com operários e camponeses, com as condições de pobreza e miséria grandes que havia na vila. Com a exploração bestial das crianças dos telhais2, com a rígida divisão em classes da sociedade. Daqui o progressivo envolvimento nas actividades de cidadania, no trabalho desinteressado e solidário com os alhandrenses, até à opção final de se dedicar com mais afinco, e profissionalmente (…) à construção daquele mundo e daquele país, novos e melhores, que ele sonhava e antevia e para cuja realização estava disposto a abandonar até a literatura e a “utilizar a mão, as mãos”».
Seria justamente a vida dessas crianças dos telhais e de outras ainda que lhe inspirou o famoso romance Esteiros (Lisboa: Sirius, 1941, com capa de Álvaro Cunhal), além de contos como «O Pastiùre», textos nucleares do neo-realismo literário português, o primeiro, aliás, uma pequena obra-prima e um dos mais relevantes romances portugueses editados na década de quarenta, em primeiro lugar pela qualidade da sua linguagem, da sua narração imbuída de lírica poeticidade, da arquitectura romanesca e da densa humanidade das suas personagens (Gineto, Sagui, Gaitinhas, Maquineta, Malesso…), e, em segundo lugar, pela originalidade temática e pela dimensão ideológica do texto à época em que foi escrito: tratava-se de recriar literariamente a realidade de miséria social e económica e de exploração do trabalho infantil, de que eram vítimas, na década de trinta do século XX e em plena ditadura salazarista, as populações da zona ribeirinha do Tejo, junto a Alhandra, e em especial, os «filhos dos homens que nunca foram meninos», como se pode ler na dedicatória. No entanto, Soeiro Pereira Gomes não é apenas um expoente do neo-realismo, mas um precursor que, antes ainda da publicação de Gaibéus, de Alves Redol, em 1939, se encontrava já imbuído do que viria a ser o espírito desta corrente literária, como se pode observar lendo, por exemplo, o conto «O capataz», publicado em 1935 (v. Ricciardi, 1999: 51-58).
A simpatia irradiante de Soeiro, as suas qualidades humanas e intelectuais, o espírito solidário e o seu talento de organizador e dinamizador de grupos levá-lo-iam a tornar-se também, como foi dito, destacado militante e, mais tarde, dirigente do PCP (tendo inspirado aspectos de diferentes personagens do romance Até Amanhã, Camaradas, de Manuel Tiago / Álvaro Cunhal), na sequência da sua intervenção activa na organização das greves e lutas sociais, operárias e camponesas, que abalaram o salazarismo na região de Lisboa e do Ribatejo, na primeira metade da década de quarenta.
Foi esta opção de classe que, após o referido período de luta, o obrigou ao mergulho na clandestinidade, em que seria compelido a manter-se até à morte, em 1949, desempenhando tarefas político-partidárias da maior importância e sacrificando a escrita literária que, contudo, não abandonaria, mesmo depois de lhe ter sido diagnosticada uma doença de pulmões, na sequência de uma queda de bicicleta ocorrida durante uma das suas deslocações enquanto militante clandestino.
Perseguido ferozmente pela PIDE, Soeiro Pereira Gomes nunca conseguirá, por isso, obter o devido tratamento médico, não obstante as démarches do seu partido, e em particular de Álvaro Cunhal – que sentia genuína amizade e admiração pelo seu camarada –, tanto em Portugal (chegou a estar internado no Instituto de Oncologia clandestinamente) como no estrangeiro.
A sua derradeira passagem pelo Porto dar-se-á no ano da morte, quando se refugia, por algum tempo, em casa de Rui e Nina Perdigão, na rua Arquitecto Marques da Silva, uma família da burguesia portuense, ligada à indústria têxtil, que apoiava financeiramente o PCP e cuja habitação era, no Norte, um dos principais pontos de apoio para os militantes do Partido na clandestinidade (por ela passaram Pires Jorge, Cândida Ventura e muitos outros).
É durante esse período que Soeiro Pereira Gomes, já em fase terminal de um cancro no pulmão, ultima os seus Contos Vermelhos – extraordinário testemunho, em forma de ficção, da vida de luta e sofrimento dos militantes comunistas na clandestinidade –, os quais viriam a ser publicados postumamente e a circular, também clandestinamente, pelas mãos de muitos antifascistas.
Segundo a versão corrente e de um dos seus biógrafos, Ricciardi3, nos últimos dias de vida, Soeiro é transportado para casa da irmã, Alice Gomes, e do cunhado, o escritor Adolfo Casais Monteiro, em Lisboa. Aí faleceu, na companhia da mulher, que não pudera acompanhá-lo na clandestinidade, mas fora presa por algum tempo, após a fuga de Soeiro. Escoltado pela polícia e pela PIDE, o seu funeral – encontra-se sepultado em Espinho – transformou-se, à passagem por Alhandra, e por pressão do povo, em comovente manifestação de homenagem e luta antifascista. Ainda hoje, a população de Alhandra conserva no coração a memória do homem encantador, generoso, solidário e do artista singular que foi o autor de Engrenagem, o seu segundo romance, que quedaria inacabado.
No quarto volume do Dicionário Cronológico de Autores Portugueses (Rocha, 1997: 386), é possível ler, a propósito deste livro: «Ao espírito de rebeldia inscrito à flor de Esteiros sucede a génese de uma manifesta consciência de classe no romance de que ultimava a revisão quando a morte o surpreendeu prematuramente: Engrenagem. Este livro – que se destinaria ((…) segundo Costa Dias, fundamentado na correspondência trocada entre o escritor e Fernando Namora e Joaquim Namorado) a integrar a colecção coimbrã de “Novos Prosadores” – foi publicado em 1951 por iniciativa dos dois irmãos do autor, Alice Gomes e Jaime Pereira Gomes, e principalmente de Adolfo Casais Monteiro, seu cunhado.»

  
A irmã mais velha de Soeiro Pereira Gomes, por seu lado, foi uma personalidade cuja vida e obra tiveram inegável relevo na história da cultura e da educação portuguesas da segunda metade do século XX, em especial nas esferas da criação literária e da reflexão sobre literatura e arte para crianças.

Alice Pereira Gomes fez os seus estudos no Porto, primeiro, como interna, no Colégio de Nossa Senhora da Esperança, depois no Liceu de Carolina Michaëlis; mais tarde, concluiu o curso do Magistério Primário, tendo completado, em Lisboa, um curso em Ciências Pedagógicas.
Como escreve Alice Rios (2009: 161), «começou cedo a interessar-se pelas Letras, algo que a unia de forma especial ao irmão, Joaquim, com quem, ainda adolescente, participou num concurso literário escolar. Foi ela a autora de uma peça, em três actos, que as colegas representaram no Teatro de S. João, assinalando o fim de curso, no Liceu Carolina Michaëlis».
Casada com o poeta, romancista e ensaísta Adolfo Casais Monteiro – homem da Presença, opositor ao regime de Salazar, não comunista –, seria, juntamente com o marido, demitida e presa pela PIDE. É ainda Alice Rios (2009: 161) quem refere: «Adolfo leccionava no Liceu Rodrigues de Freitas e Alice numa escola primária», tendo a demissão de ambos sido provocada pelo facto de pertencerem ao Socorro Vermelho Internacional, movimento de apoio aos republicanos espanhóis durante a Guerra Civil de Espanha. Além disso, Adolfo Casais Monteiro ter-se-á recusado a assinar a declaração, exigida na altura, em que o funcionário público era obrigado a afirmar não perfilhar ideias comunistas4, o que terá constituído o principal motivo do seu afastamento.
Casais Monteiro exilou-se, mais tarde, no Brasil, onde continuou a desenvolver a sua acção oposicionista, trabalhando também como professor universitário e prosseguindo a construção da sua obra literária e ensaística.
Alice Gomes devotou-se à educação, primeiramente no Porto, como professora do Instituto Normal Primário, e, depois, na capital, onde exerceu funções docentes no ensino infantil e primário. Mas foi sobretudo no Liceu francês Charles Lepierre que encontrou o terreno propício para levar à prática as suas ideias pedagógicas, tendo idealizado um método, destinado a crianças estrangeiras, com vista a uma aprendizagem gratificante da língua portuguesa (Aprender Sorrindo (1970)).
A visível paixão de Alice Gomes pela literatura, pela arte e pelo universo da infância levou-a, juntamente com outras personalidades (Maria Lúcia Namorado, Calvet de Magalhães, João Couto, Cecília Menano), a fundar, em 1957, a Associação Portuguesa para a Educação pela Arte, da qual foi a primeira presidente. O desenvolvimento do gosto pela leitura e da afeição pela literatura e pela arte em geral, bem como a consciência do valor educativo da poesia na formação da sensibilidade estética foram preocupações omnipresentes no espírito de Alice Gomes.
A noção da importância da educação literária na formação dos mais jovens encontra-se na origem de duas das obras que publicou (O Autor e a Comunicação no Livro Infantil (1973) e A Literatura para a Infância (1979)), bem como dos muitos artigos e crónicas que deixou dispersos na imprensa, nomeadamente no Jornal da Educação. Pois a autora – importa lembrá-lo – fez parte de um núcleo de intelectuais que, na segunda metade do século XX, teve o mérito de acordar as consciências para a necessidade de formar leitores desde cedo e de colocar, no centro dessa formação, a criação artística e o livro. Lembrarei, de passagem, alguns nomes deste núcleo, como Lília da Fonseca, Maria Lúcia Namorado, Natércia Rocha e Leonoreta Leitão.
Espírito inquieto e sensível, Alice Gomes desdobrou-se assim em palestras, colóquios e outras intervenções públicas, centrados ora na necessidade da educação pela arte, ora nas artes plásticas, no teatro e na literatura para os mais novos. Organizou, além disso, exposições e livros (como Poesia da Infância, 1966) em que procurou dar a ver como a criança, se imersa num contexto educativo enformado pelos princípios da educação pela arte, é ela própria capaz de criar textos e objectos plásticos de intenção artística.

Conhecedora da literatura para crianças portuguesa e estrangeira (não esqueçamos que foi a primeira tradutora para português de O Principezinho de Saint-Exupéry, além de ter traduzido outros livros), Alice Gomes leccionou também a disciplina de Literatura Infantil na Escola de Formação de Educadores de Infância João de Deus e muito reflectiu e escreveu sobre a matéria

Hoje, porém, é sobretudo como voz singular da nossa literatura para a infância que importa recordá-la. Em primeiro lugar, como poeta de mérito, no que à escrita para crianças diz respeito. Publicou Bichinho Poeta (1970), um belo bestiário poético, de cuidada e expressiva escrita, onde, por vezes, sob a máscara dos animais humanizados, ressurgem a criança ou o homem que sentem e, por isso, sofrem ou, ao invés, experimentam situações de júbilo. Editou ainda Barco no Rio (1977), Coração do Tempo (1984) e Na Idade dos Porquês (Lisboa: ITAU, [1972], cartaz de 42x52 cm, foto de Eduardo Gageiro), poema-poster que a tornaria conhecida, ao apresentar uma criança de nove anos dirigindo-se a um professor, numa espécie de doce libelo infantil contra a directividade e em favor de uma relação afectiva entre professor e aluno, que nos dá a ler um discurso de evidente impacto em termos educativos:

Tanto porquê que eu queria saber!
E tu não me queres responder!
Tu falas professor
daquilo que te interessa.
Tu obrigas-me a ouvir
quando eu quero falar.
Obrigas-me a dizer
quando eu quero escutar.
Se eu vou a descobrir 
fazes-me decorar.

É a luta professor
a luta em vez de amor. 


Mas a obra literária para crianças de Alice Gomes é vasta – os seus títulos repartem-se pela poesia, pelo conto, pela novela e pela literatura dramática. Salientem-se apenas alguns títulos como Teatro para Crianças: A Nau Catrineta. A Lenda das Amendoreiras. A Outra História do Capuchinho Vermelho (1967; a primeira destas peças foi representada no Teatro D. Maria II com música de Manuela Câncio Reis, que assinou sob pseudónimo); Vidrinho de Cheiro (1971); História de uma Menina: Romancinho (1971); Giroflé Giroflá (1972); Os Ratos e o Trovador (1973); As Histórias da Coca-Bichinhos (1974); e a novela Alexandre e os Lobos (1983).
Recorde-se ainda, por um lado, que Alice Gomes publicou uma das mais belas e bem organizadas antologias de poesia portuguesa susceptível de ser lida por crianças: Poesia para a Infância (1955), reeditada, em 1974, com novas composições. Por outro lado, não enjeitou a criação literária destinada a leitores adultos, de que é exemplo o seu livro de ficção narrativa, Fogueira de Lenha Verde (1979), contos de implicação autobiográfica, centrados na condição feminina e escritos, alguns muito tempo antes da edição em livro (vieram a lume na Eva, no Mundo Literário e noutras publicações periódicas), numa época em que a reflexão sobre os direitos da mulher estava longe de ter o acolhimento que hoje se conhece. Editou ainda Douro Encantado (1967), um sentido tributo à sua região natal.

Por tudo isto, Alice Gomes é uma autora a ler, a reler, a reeditar. E é, por outra parte, uma personalidade inquieta, rica e multifacetada que importa redescobrir.

Notas

1 Segundo testemunho do sobrinho, José Pedro Gomes Santos Carvalho (filho de Berenice Pereira Gomes), colhido em 6-7-2010, Joaquim terá aderido ao PCP em 1936, informação cuja fonte é António Dias Lourenço, seu companheiro de luta nos anos trinta e quarenta.

2 Sobre o tema, leia-se o artigo de Elisabete França (1990: 40-44).

3 Confirmada pelo sobrinho, José Pedro Gomes Santos Carvalho, em testemunho referido na nota anterior. Confronte-se, a este propósito, as versões aparentemente contraditórias que podemos ler no mesmo autor (Pereira, 2001: 858-859; e Pereira, 2005: 43-44).

Testemunho de José Pedro Gomes Santos Carvalho, colhido em 6-7-2010.


Referências bibliográficas

FRANÇA, Elisabete (1990). «Memória de Esteiros do Tejo: um cenário com figuras», DN Magazine (revista do Diário de Notícias), n.º 217, 25/11, pp. 40-44.
PEREIRA, José Pacheco (2001). Álvaro Cunhal – Uma Biografia Política: «Duarte», o Dirigente Clandestino. Lisboa: Temas e Debates.
PEREIRA, José Pacheco (2005). Álvaro Cunhal – Uma Biografia Política: O Prisioneiro. Lisboa: Temas e Debates.
REIS, Manuela Câncio (2007). A Passagem: Uma Biografia de Soeiro Pereira Gomes. Lisboa: Caminho.
RICCIARDI, Giovanni (1999). Soeiro Pereira Gomes: Uma Biografia Literária. Lisboa: Caminho.
RIOS, Alice (2008). Famílias Tradicionais do Porto. Porto: Autor (vol. I).
RIOS, Alice (2009). Famílias Tradicionais do Porto. Porto: Autor (vol. II).
ROCHA, Ilídio (coord.) (1998). Dicionário Cronológico de Autores Portugueses. Mem Martins. Europa-América, vol. IV.



José António Gomes
IEL-C (Núcleo de Estudos Literários e Culturais da ESE do Porto)