Advogado e escritor, Romeu Cunha Reis – natural de Vila do
Conde, onde vive actualmente – é autor de crónicas vindas a lume em publicações
periódicas diversas, e de três romances: Esta
Noite Forniquei com a Liberdade (Braga: Inovação à Leitura, 2005), O Sentido
de Estado de Patolino XVI (Vila Nova de Gaia: Calendário, 2008) e, mais
recentemente, Relatório ao Comité Central
(Vila Nova de Gaia: Calendário, 2013). Conhecido também, desde antes do 25 de
abril, pelo seu empenhamento cívico e político em prol da liberdade, da justiça
social e da democracia, o autor manifesta na sua escrita um interesse recorrente
pela tematização de aspectos ligados à vida política e ao destino de
personagens muito marcadas pela estreita relação com as vicissitudes de um determinado
tempo histórico. Cultor da ironia e do cómico, ao serviço de uma tessitura
crítica e da sátira, designadamente sociopolítica, Romeu Cunha Reis gosta das revisitações
ficcionais da História, carregando nas tintas da hiperbolização, introduzindo
em alguns dos seus textos elementos de fantástico, jogando com a
intertextualidade – no livro em apreço a endoliterária (o Pessoa da Mensagem, num específico passo,
porventura também o John Reed de Dez Dias
que Abalaram o Mundo) e a exoliterária, sobretudo os escritos de Marx,
Engels e Lenine, que adquirem aqui especial relevância semântico-pragmática,
considerando o enredo e a temática escolhidos.
Se esta evidente atracção pela História alimenta a ficção de
Cunha Reis – e começo a referir-me mais concretamente ao Relatório ao Comité Central, em que tal se verifica –, não é para
fazer romance histórico, mas antes para fantasiar a partir da História e narrar
não propriamente o que aconteceu – embora o que aconteceu também seja em parte contado
– mas sim o que poderia ter acontecido, caso o rumo dos eventos históricos que
constituem a base do romance, a partir de certo momento, tivesse sido outro. E
tudo isto o autor faz para pôr o leitor a pensar. Efectivamente, Relatório ao Comité Central é não só uma
obra actual e oportuna, mas também um texto que reclama um leitor analítico,
reflexivo, cultivador da memória histórica, avesso ao pensamento esquemático e
simplista, e amigo do diálogo argumentativo. Até porque a escrita deste livro está
nos antípodas daquilo a que, à falta de melhor expressão, se continua a chamar
literatura light.
Senão vejamos: o cenário fundamental da acção de Relatório ao Comité Central é a União
Soviética, em Agosto de 1987, quase sete décadas volvidas sobre a Revolução
bolchevique de Outubro. O cenário político, por assim dizer, é a Perestroica, na
sequência da publicação do livro de Mikhail Gorbatchev e numa fase, já, de
desenvolvimento da política que haveria de aplanar terreno para a ofensiva
capitalista, a qual, mais tarde, conduziu ao colapso da União Soviética e do
sistema político vigente nos países do chamado Bloco de Leste, bem como à
liquidação do socialismo e à destruição de direitos humanos e sociais.
O título da narrativa – de forte poder sugestivo (tudo o que
cheire a comunismo, a PCP, a Cunhal, às relações entre o PCP e a União
Soviética suscita hoje enorme curiosidade na sociedade portuguesa) – explica-se
facilmente: o protagonista, David Ramos, jovem membro do Comité Central do PCP,
saído, há pouco, das fileiras da Juventude Comunista Portuguesa, é enviado à
União Soviética, em representação oficial do partido, com um propósito. Enquanto
cumpre um intenso programa de conhecimento da realidade soviética em 1987, deve
observar as alterações em curso originadas pela Perestroica e elaborar um
relatório sobre o assunto a apresentar ao Comité Central do PCP. Como afirmará
o camarada que o incumbe da tarefa, «Ideias de abertura do sistema social já
muitos as enunciaram, mas quase sempre com a intenção de o subverter. É preciso
sabermos por nós próprios o que está a acontecer no país dos sovietes; não
podemos deixar-nos ultrapassar pelos acontecimentos.» (pp. 7-8).
É esta, pois, a missão do jovem David Ramos, o qual
entretanto se irá desenhando aos nossos olhos como um quase herói épico.
Efectivamente, no plano teórico, revelar-se-á, ao longo do enredo, personagem
de assinalável cultura filosófico-política, versada nos clássicos do
marxismo-leninismo, capaz de construir um pensamento crítico próprio sobre o
que vê, escuta e lê, pensamento esse alicerçado num confronto da realidade e
das palavras dos outros com o que a teoria política de Marx, Engels e sobretudo
Lenine lhe ensina. Por outro lado, a figura de David suscita desde logo uma
reflexão sobre uma circunstância, no mínimo, bem-humorada: reconhecer-se que, em
qualquer turbilhão histórico – como aquele que o livro descreve –, seja em que
região do mundo for, encontraremos sempre um português, um pequeno português
que, amiúde, não deixa ficar mal o seu país, como aqui acontece.
Durante a permanência em Moscovo, o protagonista não cumpre,
porém, apenas, disciplinadamente, o programa de visitas estabelecido e que lhe
permite recolher elementos sobre a situação do socialismo e a organização da
vida no plano socioeconómico (a exploração da agricultura num kolkhoz, o apoio
à juventude, um comité de bairro, etc.); vê também a sua presença solicitada
para debates num Clube Lenine, que agrega pensadores «empenhados no
desenvolvimento da teoria marxista-leninista» (p. 15) e onde todos os membros
adoptam nomes de personagens históricas da política, das artes, das ciências
que admirem: Maiakovski, Gorki, Krupskaia, Cholokhov, Gagarine, Chostakovitch…
A presença, reiterada, de David Ramos nas discussões do Clube Lenine – as suas
intervenções torná-lo-ão uma voz muito apreciada pela lucidez, pelas bases
teóricas e pela capacidade de análise política – será a sua rampa de lançamento
para vertiginosa participação num sem número de debates, em vários locais (Moscovo,
Leninegrado) e organizações, debates esses em que o jovem militante, tomando a
obra de Lenine como referência, vai evidenciando um fundamentado discurso
crítico sobre a história da Revolução Russa e a construção e possibilidades de
desenvolvimento do socialismo, sobre o Partido Comunista da União Soviética (o
PCUS) e sobre a Perestroica. Reconhecida a fragilidade e o carácter capcioso do
livro de Gorbatchev, que o
herói lê e desmonta atentamente, a Perestroica é encarada, de modo cada vez
mais consolidado, como a colocação em marcha da ofensiva capitalista e como
séria ameaça ao sistema socialista. Comunicando-o, mais tarde ao PCP, David
Ramos toma consciência de tal realidade, juntamente com outros camaradas,
russos e de outros países, e também com Nina Simonova, sua acompanhante em
Moscovo e depois professora de russo, com quem viverá uma relação amorosa. E,
naturalmente, vai reunindo elementos para a elaboração do relatório ao Comité
Central que, aos poucos, cresce desmesuradamente e adquire um cunho ensaístico,
condizente com a qualidade da análise e reflexão do jovem comunista.
Reveladora da assinalável cultura ideológico-política do
autor do livro, esta análise e reflexão levada a cabo pelo seu herói é
justamente um dos aspectos mais conseguidos e formativos do romance,
susceptível de interpelar o leitor e de o estimular, por assim dizer, a uma
reflexão marxista sobre as reais causas da derrocada do socialismo na União
Soviética, articulando esse momento de derrota da classe trabalhadora com o
percurso histórico que vai da Revolução de 1917 à nefasta acção política do
último secretário-geral do PCUS e dos seus apoiantes. Acção, registe-se, cujas ondas
de choque se continuam a sentir hoje, mais do que nunca, uma vez extinta a
União Soviética em 1991, enquanto pólo de resistência ao avanço do capitalismo e
às agressões militares dos Estados Unidos e da NATO. Escutemos os justos termos
do texto: «Nos tempos de Lenine, o imperialismo começara a tomar corpo, mas as
sociedades capitalistas ainda não tinham entrado no beco sem saída do processo
contínuo do desemprego-baixa de salários-aumento acentuado da diferença de
rendimentos entre ricos e pobres-novas tecnologias-mais desemprego-baixa de
salários… Mas agora eram unânimes e consistentes as estatísticas relativamente
ao desemprego. Com oscilações, é certo, os números do desemprego eram já, desde
há anos, consistentemente crescentes e nada havia que fizesse prever a inversão
desta tendência, e, como consequência directa do acréscimo de mão-de-obra
disponível, o valor dos salários vinha-se depreciando com regularidade, ao
mesmo tempo que cresciam os lucros das empresas. Tudo isto Marx previra que
acontecesse na fase mais adiantada do capitalismo (…)» (p. 199).
Para não me alongar, acrescento apenas que David – nome de
evidentes ressonâncias bíblicas e elemento de caracterização directa e
indirecta da personagem – se alça, da sua juventude e da sua despretensiosa,
quase modesta condição de simples representante de um partido comunista
estrangeiro, à altura de um novo Lenine (não por acaso, no clube dos pensadores
marxistas-leninistas, nenhum dava pelo nome do líder bolchevique). Em suma,
David revela-se disposto a enfrentar, com os seus, os Golias da Perestroica e
da ofensiva contra-revolucionária. Assumindo, pois, o seu cunho de «ficção
histórica» (p. 229), o romance de Romeu Cunha Reis conta como, esgrimindo
argumentos, empolgando com a sua lucidez e carisma, evidenciando capacidade de
liderança por todos reconhecida, David Ramos chega em glória e de comboio a
Leninegrado (como Lenine, em 1917, chegara a Petrogrado) fazendo do emblemático
soviete local, carregado de simbolismo, o pólo de arranque da resistência dos
trabalhadores soviéticos à ofensiva reaccionária, travestida de democrática, contra
o socialismo e contra o poder dos sovietes.
Seria deslocado desvendar como termina este enredo bem urdido
e bem contado por um narrador heterodiegético inteligente e culto, conhecedor
dos protocolos de debate e dos registos discursivos da intelectualidade
comunista, lírico até, nas passagens em que descreve o idílio amoroso de David
e Nina, capaz de fazer o leitor galgar velozmente as páginas em busca do
desfecho, e mergulhando-o repentinamente no caldeirão de um novo movimento revolucionário
de massas. Qual o papel do PCP, da sua comissão política e do seu
secretário-geral de então neste turbilhão social e político de fortes
implicações internacionais? Como se desencadeia e processa a solidariedade
internacionalista em torno da defesa do socialismo? Que ocorre na Praça
Vermelha? Resistem David e Nina Simonova a esta tempestade? Qual o destino da Revolução?
Perguntas para as quais o próprio leitor terá de encontrar resposta.
A este propósito, termino apenas citando palavras do segmento
conclusivo do livro: «Se a História é um processo em aberto, talvez uma ficção
histórica o deva ser também. Qualquer que fosse o desfecho dado a esta
narrativa, nada encerraria, muito menos um capítulo da História, que só tem
capítulos nos livros que a narram e interpretam. Nada disto impede que cada um
possa efabular o remate para esta história que lhe sugerir a imaginação.» (p.
229).
Quanto à discussão sobre a bondade política, a validade
teórica e a pertinência desta «fantasia heróica» (subtítulo da obra) de Romeu
Cunha Reis, independentemente do seu carácter romanesco e de ficção, o leitor
decidirá por si. Fica, no entanto, a sugestão: leia-se e discuta-se o livro,
sem preconceitos, com os homens sérios de esquerda e com outros democratas. Nos
tempos que correm, não será, certamente, tempo perdido.
José António Gomes
IEL-C – Núcleo de Investigação em Estudos Literários e
Culturais da ESE do Porto (antigo NELA)