sábado, 11 de janeiro de 2014

Relatório ao Comité Central, uma fantasia heróica de Romeu Cunha Reis

Advogado e escritor, Romeu Cunha Reis – natural de Vila do Conde, onde vive actualmente – é autor de crónicas vindas a lume em publicações periódicas diversas, e de três romances: Esta Noite Forniquei com a Liberdade (Braga: Inovação à Leitura, 2005), O Sentido de Estado de Patolino XVI (Vila Nova de Gaia: Calendário, 2008) e, mais recentemente, Relatório ao Comité Central (Vila Nova de Gaia: Calendário, 2013). Conhecido também, desde antes do 25 de abril, pelo seu empenhamento cívico e político em prol da liberdade, da justiça social e da democracia, o autor manifesta na sua escrita um interesse recorrente pela tematização de aspectos ligados à vida política e ao destino de personagens muito marcadas pela estreita relação com as vicissitudes de um determinado tempo histórico. Cultor da ironia e do cómico, ao serviço de uma tessitura crítica e da sátira, designadamente sociopolítica, Romeu Cunha Reis gosta das revisitações ficcionais da História, carregando nas tintas da hiperbolização, introduzindo em alguns dos seus textos elementos de fantástico, jogando com a intertextualidade – no livro em apreço a endoliterária (o Pessoa da Mensagem, num específico passo, porventura também o John Reed de Dez Dias que Abalaram o Mundo) e a exoliterária, sobretudo os escritos de Marx, Engels e Lenine, que adquirem aqui especial relevância semântico-pragmática, considerando o enredo e a temática escolhidos.
Se esta evidente atracção pela História alimenta a ficção de Cunha Reis – e começo a referir-me mais concretamente ao Relatório ao Comité Central, em que tal se verifica –, não é para fazer romance histórico, mas antes para fantasiar a partir da História e narrar não propriamente o que aconteceu – embora o que aconteceu também seja em parte contado – mas sim o que poderia ter acontecido, caso o rumo dos eventos históricos que constituem a base do romance, a partir de certo momento, tivesse sido outro. E tudo isto o autor faz para pôr o leitor a pensar. Efectivamente, Relatório ao Comité Central é não só uma obra actual e oportuna, mas também um texto que reclama um leitor analítico, reflexivo, cultivador da memória histórica, avesso ao pensamento esquemático e simplista, e amigo do diálogo argumentativo. Até porque a escrita deste livro está nos antípodas daquilo a que, à falta de melhor expressão, se continua a chamar literatura light.
Senão vejamos: o cenário fundamental da acção de Relatório ao Comité Central é a União Soviética, em Agosto de 1987, quase sete décadas volvidas sobre a Revolução bolchevique de Outubro. O cenário político, por assim dizer, é a Perestroica, na sequência da publicação do livro de Mikhail Gorbatchev e numa fase, já, de desenvolvimento da política que haveria de aplanar terreno para a ofensiva capitalista, a qual, mais tarde, conduziu ao colapso da União Soviética e do sistema político vigente nos países do chamado Bloco de Leste, bem como à liquidação do socialismo e à destruição de direitos humanos e sociais.
O título da narrativa – de forte poder sugestivo (tudo o que cheire a comunismo, a PCP, a Cunhal, às relações entre o PCP e a União Soviética suscita hoje enorme curiosidade na sociedade portuguesa) – explica-se facilmente: o protagonista, David Ramos, jovem membro do Comité Central do PCP, saído, há pouco, das fileiras da Juventude Comunista Portuguesa, é enviado à União Soviética, em representação oficial do partido, com um propósito. Enquanto cumpre um intenso programa de conhecimento da realidade soviética em 1987, deve observar as alterações em curso originadas pela Perestroica e elaborar um relatório sobre o assunto a apresentar ao Comité Central do PCP. Como afirmará o camarada que o incumbe da tarefa, «Ideias de abertura do sistema social já muitos as enunciaram, mas quase sempre com a intenção de o subverter. É preciso sabermos por nós próprios o que está a acontecer no país dos sovietes; não podemos deixar-nos ultrapassar pelos acontecimentos.» (pp. 7-8).
É esta, pois, a missão do jovem David Ramos, o qual entretanto se irá desenhando aos nossos olhos como um quase herói épico. Efectivamente, no plano teórico, revelar-se-á, ao longo do enredo, personagem de assinalável cultura filosófico-política, versada nos clássicos do marxismo-leninismo, capaz de construir um pensamento crítico próprio sobre o que vê, escuta e lê, pensamento esse alicerçado num confronto da realidade e das palavras dos outros com o que a teoria política de Marx, Engels e sobretudo Lenine lhe ensina. Por outro lado, a figura de David suscita desde logo uma reflexão sobre uma circunstância, no mínimo, bem-humorada: reconhecer-se que, em qualquer turbilhão histórico – como aquele que o livro descreve –, seja em que região do mundo for, encontraremos sempre um português, um pequeno português que, amiúde, não deixa ficar mal o seu país, como aqui acontece.
Durante a permanência em Moscovo, o protagonista não cumpre, porém, apenas, disciplinadamente, o programa de visitas estabelecido e que lhe permite recolher elementos sobre a situação do socialismo e a organização da vida no plano socioeconómico (a exploração da agricultura num kolkhoz, o apoio à juventude, um comité de bairro, etc.); vê também a sua presença solicitada para debates num Clube Lenine, que agrega pensadores «empenhados no desenvolvimento da teoria marxista-leninista» (p. 15) e onde todos os membros adoptam nomes de personagens históricas da política, das artes, das ciências que admirem: Maiakovski, Gorki, Krupskaia, Cholokhov, Gagarine, Chostakovitch… A presença, reiterada, de David Ramos nas discussões do Clube Lenine – as suas intervenções torná-lo-ão uma voz muito apreciada pela lucidez, pelas bases teóricas e pela capacidade de análise política – será a sua rampa de lançamento para vertiginosa participação num sem número de debates, em vários locais (Moscovo, Leninegrado) e organizações, debates esses em que o jovem militante, tomando a obra de Lenine como referência, vai evidenciando um fundamentado discurso crítico sobre a história da Revolução Russa e a construção e possibilidades de desenvolvimento do socialismo, sobre o Partido Comunista da União Soviética (o PCUS) e sobre a Perestroica. Reconhecida a fragilidade e o carácter capcioso do livro de Gorbatchev, que o herói lê e desmonta atentamente, a Perestroica é encarada, de modo cada vez mais consolidado, como a colocação em marcha da ofensiva capitalista e como séria ameaça ao sistema socialista. Comunicando-o, mais tarde ao PCP, David Ramos toma consciência de tal realidade, juntamente com outros camaradas, russos e de outros países, e também com Nina Simonova, sua acompanhante em Moscovo e depois professora de russo, com quem viverá uma relação amorosa. E, naturalmente, vai reunindo elementos para a elaboração do relatório ao Comité Central que, aos poucos, cresce desmesuradamente e adquire um cunho ensaístico, condizente com a qualidade da análise e reflexão do jovem comunista.
Reveladora da assinalável cultura ideológico-política do autor do livro, esta análise e reflexão levada a cabo pelo seu herói é justamente um dos aspectos mais conseguidos e formativos do romance, susceptível de interpelar o leitor e de o estimular, por assim dizer, a uma reflexão marxista sobre as reais causas da derrocada do socialismo na União Soviética, articulando esse momento de derrota da classe trabalhadora com o percurso histórico que vai da Revolução de 1917 à nefasta acção política do último secretário-geral do PCUS e dos seus apoiantes. Acção, registe-se, cujas ondas de choque se continuam a sentir hoje, mais do que nunca, uma vez extinta a União Soviética em 1991, enquanto pólo de resistência ao avanço do capitalismo e às agressões militares dos Estados Unidos e da NATO. Escutemos os justos termos do texto: «Nos tempos de Lenine, o imperialismo começara a tomar corpo, mas as sociedades capitalistas ainda não tinham entrado no beco sem saída do processo contínuo do desemprego-baixa de salários-aumento acentuado da diferença de rendimentos entre ricos e pobres-novas tecnologias-mais desemprego-baixa de salários… Mas agora eram unânimes e consistentes as estatísticas relativamente ao desemprego. Com oscilações, é certo, os números do desemprego eram já, desde há anos, consistentemente crescentes e nada havia que fizesse prever a inversão desta tendência, e, como consequência directa do acréscimo de mão-de-obra disponível, o valor dos salários vinha-se depreciando com regularidade, ao mesmo tempo que cresciam os lucros das empresas. Tudo isto Marx previra que acontecesse na fase mais adiantada do capitalismo (…)» (p. 199).
Para não me alongar, acrescento apenas que David – nome de evidentes ressonâncias bíblicas e elemento de caracterização directa e indirecta da personagem – se alça, da sua juventude e da sua despretensiosa, quase modesta condição de simples representante de um partido comunista estrangeiro, à altura de um novo Lenine (não por acaso, no clube dos pensadores marxistas-leninistas, nenhum dava pelo nome do líder bolchevique). Em suma, David revela-se disposto a enfrentar, com os seus, os Golias da Perestroica e da ofensiva contra-revolucionária. Assumindo, pois, o seu cunho de «ficção histórica» (p. 229), o romance de Romeu Cunha Reis conta como, esgrimindo argumentos, empolgando com a sua lucidez e carisma, evidenciando capacidade de liderança por todos reconhecida, David Ramos chega em glória e de comboio a Leninegrado (como Lenine, em 1917, chegara a Petrogrado) fazendo do emblemático soviete local, carregado de simbolismo, o pólo de arranque da resistência dos trabalhadores soviéticos à ofensiva reaccionária, travestida de democrática, contra o socialismo e contra o poder dos sovietes. 
Seria deslocado desvendar como termina este enredo bem urdido e bem contado por um narrador heterodiegético inteligente e culto, conhecedor dos protocolos de debate e dos registos discursivos da intelectualidade comunista, lírico até, nas passagens em que descreve o idílio amoroso de David e Nina, capaz de fazer o leitor galgar velozmente as páginas em busca do desfecho, e mergulhando-o repentinamente no caldeirão de um novo movimento revolucionário de massas. Qual o papel do PCP, da sua comissão política e do seu secretário-geral de então neste turbilhão social e político de fortes implicações internacionais? Como se desencadeia e processa a solidariedade internacionalista em torno da defesa do socialismo? Que ocorre na Praça Vermelha? Resistem David e Nina Simonova a esta tempestade? Qual o destino da Revolução? Perguntas para as quais o próprio leitor terá de encontrar resposta.
A este propósito, termino apenas citando palavras do segmento conclusivo do livro: «Se a História é um processo em aberto, talvez uma ficção histórica o deva ser também. Qualquer que fosse o desfecho dado a esta narrativa, nada encerraria, muito menos um capítulo da História, que só tem capítulos nos livros que a narram e interpretam. Nada disto impede que cada um possa efabular o remate para esta história que lhe sugerir a imaginação.» (p. 229).
Quanto à discussão sobre a bondade política, a validade teórica e a pertinência desta «fantasia heróica» (subtítulo da obra) de Romeu Cunha Reis, independentemente do seu carácter romanesco e de ficção, o leitor decidirá por si. Fica, no entanto, a sugestão: leia-se e discuta-se o livro, sem preconceitos, com os homens sérios de esquerda e com outros democratas. Nos tempos que correm, não será, certamente, tempo perdido.


José António Gomes

IEL-C – Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais da ESE do Porto (antigo NELA)