Desde os seus primórdios coimbrões – marcados pelo benigno ascendente do chamado fado de Coimbra –, as canções de José Afonso sempre foram a simbiose perfeita de três dons: uma poesia singular, uma voz única (de timbre e coloração inconfundíveis) e um inato talento para a melodia. E ao falarmos de melodia, e também de ritmos, não é possível esquecer a fidelidade desta música às raízes mais profundas da música popular portuguesa, mas também a sua dívida em relação aos ritmos da África e do Brasil, para não falar da irmã Galiza – que sempre soube homenagear este nosso cantor com espectáculos, com discos, com versões recriadas das suas canções e até com uma lápide no Auditório da Galiza, em Santiago de Compostela.
Mas, além da sua qualidade musical intrínseca e da perenidade das suas cantigas (reinterpretadas por tantos artistas: Vitorino e Janita, Cristina Branco, Jacinta e tantos outros), também nos toca e nos marca, cada vez mais fundo, a indissipável aura de José Afonso como antifascista, democrata, lutador radical por um Socialismo verdadeiro. Toca-nos e serve-nos de exemplo a sua dimensão humana de companheiro fraterno e solidário, disponível para todo e qualquer combate em prol dos injustiçados deste mundo: os pobres, os sem-terra, os povos em luta pela sua dignidade e independência, os guerrilheiros da esperança. José Afonso ridicularizou como ninguém o salazarismo, mais tarde a rede bombista e a recuperação capitalista após o 25 de Novembro. Mas cantou também o amor, a amizade, os direitos da mulher. E vazou tudo isto em versos e melodias de alta temperatura musical e poética, mesmo naquelas composições em que não renegou a sua intimidade, a sua experiência pessoal e contradições, e se deixou imbuir (e bem) dos influxos do surrealismo, de um aparente nonsense ou do espírito das facécias populares.
Por muito que muitos o prefiram ignorar, a imagem, a voz e a obra de José Afonso converteram-se em símbolos do 25 de Abril (será necessário recordar a «Grândola», o «Venham mais cinco», «Os índios da Meia-Praia», a «Utopia»?), expressão da resistência de um povo em combate pela liberdade e por uma vida digna.
Vinte e três anos após a sua partida (nasceu em Aveiro, em 2 de Agosto de 1929 e morreu em Setúbal, em 23 de Fevereiro de 1987), a música de José Afonso está mais viva e actuante do que nunca. Venceu, como poucas, a lei da morte e o efémero. Muitos a guardam na memória e em cassetes, velhos discos de vinil e CD. E continuam a escutá-la. Isto porque a rádio, a nossa rádio, a silenciou e só conhece hoje um pacto com a mediocridade, o fácil, o insidioso pensamento único.
José Afonso, esse, está vivo. E bem vivo. A prova é ter-nos deixado alguns recados para o deprimente tempo em que vivemos. Um tempo de «primos convexos» que não parecem aperceber-se das «plantas carnívoras» e dos «corvos» que, cada vez mais, os/nos cercam e «trincam os calos»: os bancos e a alta finança, os grandes grupos económicos, os senhores gestores da riqueza deles e da miséria dos outros, as agências de rating (espécie de rotweilers do capitalismo), os directórios políticos da União Europeia – peritos em garrotear os povos – e os seus representantes em Portugal, que há mais de 30 anos desgovernam este desgraçado país. Termino, por isso, com um poema de José Afonso adequado aos dias de hoje:
Tenho um primo convexo
Tenho um primo convexo
Fadado para amnistias
Em torno dele nadam
Plantas carnívoras
Agitando como plumas
As cordas violáceas
O meu primo dormita
Glu glu entre palmeiras
Suspenso numa rede
De suor e preguiça
Corvos bicam-lhe os pés
Trincam-lhe os calos
Enquanto a tarde jaz
E a mão suspende
O gesto de acordá-lo
E a terra treme
Mas de nada o meu primo se apercebe
José António Gomes
NELA – Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto